Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, maio/ago. 2024
História econômica do Rio de Janeiro | Entrevista
O dossiê “História econômica do Rio de Janeiro” presta homenagem a uma das pioneiras da historiografia brasileira, Eulália Maria Lahmeyer Lobo. Sua obra e seu legado continuam a provocar as novas gerações de historiadores a pesquisar, refletir e escrever sobre a história econômica e do Rio de Janeiro.
Devido à importância de sua obra e à multiplicidade de temas aos quais se dedicou, optamos por apresentar na entrevista deste dossiê os depoimentos de pessoas que partilharam com Eulália as experiências de formação e trabalho a partir de questões abertas, pontuando sobre as memórias do companheirismo e das oportunidades de ensino e pesquisa por ela proporcionadas.
Para tanto, duas historiadoras e dois historiadores foram convidados: Ismênia de Lima Martins, Francisco José Calazans Falcon, Lená Medeiros de Menezes e Luiz Carlos Soares são pesquisadores que, em níveis distintos, formaram-se e trabalharam com Eulália e foram influenciados por sua obra e/ou por sua atividade na construção de instituições e organizações promotoras do saber histórico.
Ismênia de Lima Martins é professora emérita da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde se graduou e se licenciou em história. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), participou do Programa de Pós-Doutorado Capes-Cofecub na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. É especialista em história do Brasil com ênfase no Segundo Reinado e na Primeira República, e no campo da história socioeconômica. Trabalha principalmente com os temas relacionados à história fluminense, imigração e gênero. Pesquisadora 1A do CNPq (1988-1996). Ex-presidente da Associação Nacional de Professores de História e ex-coordenadora de Editoração e Acervo da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Atualmente, é professora do Programa de Pós-Graduação em História da UFF, onde orienta teses de doutorado. Coordenadora do projeto Portugueses no Brasil, em cooperação com o Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade (Cepese) da Universidade do Lusíada e Universidade do Porto; do grupo de trabalho Imigração, Identidade e Cidadania da Associação Nacional de História (Anpuh) e do projeto Entrada de Imigrantes no Brasil, Listagem de Vapores, do Arquivo Nacional em parceria com o BNDES.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Qual a importância de Eulália Lobo, como professora e autora, em sua formação? A senhora poderia apresentar a trajetória acadêmica de Eulália Lobo, resgatando seu percurso profissional, as dificuldades que enfrentou dentro da academia e na política? Gostaríamos de saber, principalmente, as inovações introduzidas por ela no campo teórico-metodológico e na prática da pesquisa, bem como o que garantiu seu protagonismo em sua geração e a importância de sua obra até o presente na área da história econômica e social, mas especialmente para a historiografia sobre a cidade do Rio de Janeiro.
[Ismênia de Lima Martins] Ao ser convidada por vocês para participar da entrevista em homenagem a Eulália, introjetei tal convite como um desafio! Primeiro, do ponto de vista emocional pois, mais uma vez, relembraria nossa convivência, pessoal e acadêmica, e teria que sofrer a saudade dos bons tempos que passamos como amigas e companheiras de trabalho. O mais importante, porém, era enfrentar o risco da repetição, afinal, desde sua morte, em 2011, proferi muitas conferências sobre ela e sua obra, algumas delas publicadas, além de artigos.
Mesmo em sua presença, mais de uma vez, fui encarregada de homenageá-la, como em 2007, quando ministrei a aula inaugural que marcava o início do ano letivo do curso de história da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), cujo tema era sua trajetória acadêmica. Para que se avalie a importância atribuída à sua presença, a abertura do evento foi presidida pela reitora Malvina Tuttman, primeira mulher eleita para o cargo naquela instituição, que saudou a homenageada por sua importância como figura pública. Após o encerramento desta fala, para espanto de todos, não se retirou, como é hábito nessas situações, sentou-se na primeira fila e assistiu, até o final, minha conferência sobre Eulália e sua obra.
Assim, não poderia faltar-lhe neste ano em que completaria seu centenário de nascimento e deixar de contribuir com mais algumas reflexões, pois foi tão rica sua trajetória como mulher e historiadora, que o risco de me copiar nos elogios, ou o perigo de repetição, não me inibe. Instada a falar sobre a ressonância de sua vida e obra na minha geração, recorro à minha própria experiência do vivido para delinear parte de sua importância.
É preciso dizer, em primeiro lugar, que Eulália e eu, que a tinha como uma referência, tornamo-nos amigas após nossa convivência profissional, iniciada em 1978, quando, ainda antes da anistia, veio lecionar na Universidade Federal Fluminense (UFF) a fim de colaborar na consolidação de seu programa de Pós-Graduação em História, criado em 1971, em nível de mestrado e com áreas de concentração em América e Brasil.
Considerando a ausência de doutores no quadro departamental, no qual havia apenas dois livres-docentes, professores Francisco Falcon e Luiz de Castro Faria, o curso viabilizara-se, até então, por meio da contratação de historiadores de prestígio nacional, não obrigatoriamente docentes universitários, como José Honório Rodrigues e Artur César Ferreira Reis. Já Pedro Freire Ribeiro, catedrático da Universidade do Estado da Guanabara, tornou-se responsável pela área de América. Foi importante a participação de professores estrangeiros, sobretudo norte-americanos com o apoio da Fundação Fulbright, brasilianistas, como, por exemplo, Richard Graham e Stanley Hilton, entre muitos outros.
A titulação de três docentes departamentais ‒ eu estava entre eles ‒, em 1973, a contratação de Eulália, Maria Yedda Linhares e Ciro Flamarion Cardoso e a participação de professores visitantes brasileiros, não mais os intelectuais de prestígio, mas docentes universitários, inclusive de outras áreas, impactaram muito positivamente o curso. Além disso, a mudança das áreas de concentração de Brasil e América para História Social, Econômica e das Ideias, sem limites cronológicos ou espaciais, provocou a consolidação de linhas e projetos de pesquisa, ampliando a demanda pelo curso, permitindo o fortalecimento e a expansão do programa que, em 1985, inaugurou seu curso de doutorado.
Assim, compartilhei com Eulália inúmeras experiências e, agora que já ultrapassei os cinquenta anos de docência e sou uma historiadora octogenária, ao desincumbir-me desta tarefa, inevitavelmente, afloram as lembranças da minha luta pela profissionalização. Daí, também, as confidências e os limites tênues entre a memória e a história que marcarão essas páginas.
Todo o meu percurso como mulher e historiadora foi impactado não somente por Eulália, mas por mulheres tais que, como nossa autora, assumiram o tempo como seu e viraram o mundo de ponta-cabeça! Inspirada nas musas da minha geração, Eulália e Maria Yedda Leite Linhares, que foram colegas de graduação e cujas trajetórias são quase inseparáveis, eu queria o caminho da profissionalização e da pesquisa que elas lograram trilhar.
Quando vim ao mundo em 1942, no seio de uma família cujo patriarca foi um imigrante português muito bem-sucedido, Eulália, então com 18 anos, já cursava Geografia e história na Universidade do Brasil. No entanto, nossas lutas pela profissionalização ocorreram de forma diversa, pois, eu, aos vinte e um anos, casada e mãe de dois meninos, fui sistematicamente desestimulada pela família a seguir estudando e a profissionalizar-me, pois eles consideravam as repercussões negativas em nosso círculo social, já que mulheres de tal condição deviam dedicar-se ao lar e não cursar faculdade à noite (mesmo sendo o único turno ofertado à época) e almejar um doutoramento em São Paulo!
Eulália, que enfrentou muitos desafios na profissionalização, ao contrário, na fase dos estudos, recebeu grande estímulo familiar. Apesar de seu pai ter origem portuguesa, diferente de meu avô, ele não era mais um imigrante comum que alcançaria o sucesso!
Antônio Dias Leite (1870-1952) era natural da cidade do Porto, filho de um pequeno industrial, e vivenciou a primeira infância e o início da adolescência ‒ segundo seu próprio registro, em carta datada de 1902 ‒ em uma ambiência tranquila, doméstica e semirrural, onde frequentou a escola que lhe ensinou as primeiras letras. Após a morte do pai, quando tinha apenas 13 anos, teve que partilhar as responsabilidades e dar suporte à família. Prover o sustento impediu-lhe de concluir os estudos. No entanto, a força de vontade, inteligência e aptidão para línguas estrangeiras garantiram-lhe sucessivamente melhores posições. Sua grande oportunidade surgiu quando foi apontador e tradutor da companhia Eiffel, que construiu a bela ponte d. Luís sobre o rio Douro. Esta atividade ampliou seus contatos e fez com que ele obtivesse oferta para gerenciar uma quinta vinícola próxima de Coimbra. Nessa ocasião, sistematizou seus estudos da língua inglesa, sob a orientação de um professor de Coimbra, o que o habilitou para um emprego no Banco de Londres. O clima nevoento, o ar poluído da cidade, além dos padrões puritanos que se expressavam na vida social, o desgostavam e sentiu-se aliviado quando, em 1890, retornou a Portugal a fim de prestar serviço militar obrigatório, do qual foi isento, posteriormente, por ser responsável pela mãe viúva. Resolvida essa situação, foi trabalhar na Livraria Gomes, em Lisboa, onde teve oportunidade de aprofundar suas leituras e conhecer a elite intelectual do país, inclusive Eça de Queiroz. Envolvido pelo clima de efervescência política, decorrente da crise econômica de grandes repercussões sociais, como o desemprego na cidade e no campo, participou da Revolta Republicana de 1891 e, temendo a repressão, refugiou-se na Espanha. Apaziguada a situação, retornou a Lisboa, onde empregou-se em um banco inglês, mas, vislumbrando as possibilidades da emigração, optou pelo Brasil, para onde veio em 1893, já com proposta da firma Costa Pacheco, grande atacadista de artigos de moda e anexos. Depois da dureza dos primeiros tempos, destacou-se e passou à condição de caixeiro-viajante, percorrendo os mercados dos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Passou por todos os postos da hierarquia da firma e, em 1902, foi encarregado de compras internacionais, viajando para a Inglaterra e, no ano seguinte, tornou-se sócio, passando a visitar, a cada dois anos, as praças de Londres, Berlim, Praga e Viena, o que lhe permitia não apenas bons negócios, mas ampliou sua cultura e refinamento, destacando-se na comunidade portuguesa do Rio de Janeiro.
Esta longa referência à trajetória de Antônio Dias Leite justifica-se por dois propósitos. O primeiro é a sua caracterização como um imigrante diferenciado, não apenas por sua inteligência e aptidões, mas por ter aproveitado as oportunidades para cultivá-las, inclusive investindo no aprendizado de idiomas estrangeiros, como francês e inglês. Também diferenciava-se por suas vivências no mundo urbano, em trabalhos qualificados no Porto, Londres e Lisboa. O segundo deles é revelar, pela primeira vez neste texto, a erudição, a formação teórica e a capacidade crítica, mas também a sensibilidade de Eulália como historiadora.
Todas as informações sobre Antônio acima relacionadas, foram retiradas do livro que escreveu sobre o seu pai, publicado em 2005 (Lobo; Maia, 2005), tendo como fonte principal uma expressiva coleção de cartas e outros documentos pessoais. É particularmente interessante como Eulália apresenta as diferentes conjunturas em que se moveu seu personagem, fazendo-o emergir de seus próprios textos, sem sufocá-lo em suas análises originais e competentes.
Em artigo que publiquei em 2006, um ano após o lançamento de seu livro, intitulado O imigrante e a historiadora (Martins, 2006), analisei a importância daquela pequena obra, que permitia à historiadora, em seu último livro publicado, resgatar, como diria Gilberto Freyre, “um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um, uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço pela pesquisa e pelos arquivos”.
Enfim, Eulália coroou sua carreira em um feliz cruzamento entre o existencial e a história!
No seio de uma família que valorizava o aprimoramento cultural, pois sua mãe, Georgeta Furquim Lahmeyer Leite que, pelo lado materno, descendia de cafeicultores do Vale do Paraíba, estudou no Colégio Sion, em Petrópolis, era uma mulher ilustrada, Eulália recebeu não apenas uma educação esmerada, mas diferenciada daquela oferecida mesmo às filhas da elite da época. Isso porque a preocupação paterna era, também, instruir suas filhas em vários campos de conhecimento e nas línguas estrangeiras, o que ultrapassava, em muito, o padrão previsto para jovens casadoiras. Antônio facultou-lhe o caminho do conhecimento, conferindo-lhe estímulo intelectual e ânimo para assumir os desafios de seu tempo e, como outras poucas mulheres naqueles dias, adentrar o mundo masculino da universidade.
Ressalte-se que todas as filhas de Antônio completaram cursos superiores. A primeira, Valentina, estudou letras anglo-saxônicas na Inglaterra; Laura estudou Belas Artes e Filosofia na Universidade do Brasil; a terceira, Luiza, estudou Psicologia e, tendo domínio de vários idiomas, tornou-se uma pioneira no campo profissional da tradução. Seu único filho homem, Antônio, estudou Economia e Engenharia, o que, na época, era também original, uma vez que os portugueses bem-sucedidos estimavam ter o filho homem à frente de seus negócios.
A caçula, Eulália, formou-se em história na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil e foi a única que trilhou uma carreira com grande visibilidade social e sucesso, ainda que repleta de desafios. No entanto, também nessa fase contou com o apoio familiar. Casada com o eminente professor de Histologia da Universidade do Brasil, Bruno Lobo, e mãe de três filhos ‒ a primeira nascida em 1948, quando completava sua formação nas universidades da Carolina do Norte e Columbia, em Nova York ‒, viveu as pressões do casamento e da maternidade de forma muito diversa da minha, isso duas décadas antes, um tempo mais ingrato às mulheres.
A adesão existencial ao seu ofício não permitiu que a estrutura familiar aprisionasse a historiadora, que subvertia com graça os trabalhos domésticos, ora com o apoio de dr. Bruno, ora resolvidos por ele, enquanto lançava-se com voracidade à pesquisa nas fontes, que resultaram em mais de duzentos trabalhos, entre livros e artigos!
Mas a questão que me traz essa lembrança é a determinação de Eulália, nos longínquos anos de 1940 e 1950, numa conjuntura em que as mulheres lutavam contra todos os tabus. Acreditava que possuía o direito de profissionalizar-se, desafiando o machismo e o paradigma da erudição vigente na academia. Enquanto as mudanças se davam, Eulália completava sua formação em universidades no exterior, refutando a história de citação dos nossos eruditos pela história problema; planava rumo à pesquisa em arquivos inóspitos, com guias de fontes ligeiros, escrutinando-os com perguntas de toda sorte, assim como adentrava universos masculinos com teimosia.
Também, nas diversas crises que enfrentou dentro da universidade, procurou caminhos alternativos. Na década de 1950 desenvolveu um trabalho na embaixada da Indonésia; mais tarde, nos duros anos de chumbo, afastada da vida acadêmica, lançou-se à atividade de tradutora em seminários e congressos no campo privado; ministrou, seguidamente, cursos nas universidades norte-americanas e, de modo pioneiro, também, conseguiu recursos da Ford Foundation para dar seguimento aos seus estudos e custear uma equipe de pesquisadores que viriam se tornar seus parceiros. Eulália pesquisava e articulava ao mesmo tempo. E enquanto o paradigma de Cronos se dissolvia, levantava temas de pesquisa inéditos ancorando-se, como já mencionei, na história social e na história econômica para pensar o presente à luz de novas reflexões sobre o passado.
Seu temperamento forte nunca permitiu que ficasse parada, e no seu caminho de profissionalização foi, mais uma vez, pioneira ao convencer a Capes a lhe dar uma bolsa de estudos, transformando-se na primeira bolsista Capes ainda nos anos 1960.
Em 1968, Eulália, Yedda, Maurício de Albuquerque, José Américo Mota Peçanha, entre outros ilustres professores da Faculdade Nacional de Filosofia, foram atingidos pelo AI-5 e aposentados compulsoriamente. No ano seguinte, 1969, Eulália foi presa, passagem que em diversas ocasiões ela própria contou e que eu recontei nas homenagens que fiz, pela força de sua autoridade moral e pelo constrangimento que provocou no militar que a interrogava, perguntando se ele, como representante do Exército brasileiro, de tantas glórias, não se sentia envergonhado: “O Exército que combateu a caça aos escravos, que proclamou a República vem agora prender os cidadãos que não estão armados... O Exército que tem tantas tradições gloriosas, está reduzido a isso?” (Martins, 2007). E a ordem se inverteu: o comandante se defendendo e Eulália atacando.
Se, de um lado, sua luta pela carreira e pela própria profissão de historiadora foi nossa inspiração, de outro, a obsessão pela pesquisa em fontes primárias e sua preocupação com a metodologia marcou sua trajetória e se imprimiu na minha geração e nas seguintes de forma indelével.
Assim, como professora e autora, Eulália legou um exemplo de compromisso com a pesquisa. Sua obstinada paixão pelos arquivos, precisão metodológica e prática interdisciplinar foram exercidas com maestria. Como disse certa vez Arno Wehling, tais procedimentos impediram-na de “mimetizar os traços epistemológicos e metodológicos tipicamente históricos, recusando-se às simplificações de considerar nosso território mero objeto de uma economia do passado ou uma sociologia retrospectiva” (2011).
Sobre sua paixão pela pesquisa documental, lembro-me, sempre com um sorriso, dos embates para que tivéssemos acesso à documentação do porto do Rio de Janeiro, dos sindicatos e de fábricas. Também lutava pelo melhor funcionamento dos arquivos. Eduardo Stotz, professor da Fiocruz, e Bernardo Kocher, da UFF, então bolsistas do projeto da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) que coordenávamos, presenciaram ao meu lado sua “peleja” junto à direção do Arquivo Edgard Leuenroth, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para que o atendimento começasse antes do horário previsto! Sob sua liderança nos prostávamos na entrada desde às oito horas da manhã. Afinal tínhamos vindo do Rio e dispúnhamos de uma semana para a pesquisa. Acabou conseguindo!
Outro episódio ocorreu em Buenos Aires, quando participamos com José Murilo de Carvalho de seminário internacional sobre cidades na América Latina. As sessões ocorriam à tarde e a manhã era livre. Apesar das noites tanguenhas, todos os dias eu a acompanhava para esperar a abertura do arquivo. Estou falando de um tempo sem computadores ou digitalização. Eulália solicitava várias caixas de documentos e tudo era copiado à mão! Na sessão em que apresentou o seu estudo, informou que, até o governo Vargas, não houve no Rio de Janeiro uma política habitacional para os trabalhadores, pois os únicos registros eram as vilas operárias construídas e mantidas pelas fábricas. Quando o professor argentino expôs o caso de seu país, afirmou que lá reproduzia-se a situação apresentada por Eulália e que não havia fontes sobre o assunto. Ela então comunicou que havia encontrado muitas informações e, com a intenção de contribuir para a pesquisa do colega, dispôs-se a emprestar o seu bloquinho para que ele anotasse tudo o que havia descoberto! É lógico que seu intuito não era de promover o debate ou constranger, mas fruto de sua generosidade e esforço em divulgar todas as fontes e as possibilidades de análise que detinham.
O pioneirismo de Eulália foi outra marca indelével que legou à nossa geração e não se encerra na sua condição de primeira doutora mulher, como se registra no Dicionário de Mulheres do Brasil ou naquela de primeira bolsista da Capes, pois espraia-se no mundo acadêmico. Ciro Flamarion Cardoso registrou em sua resenha de Portugueses en Brasil en el siglo XX, da Editorial Mapfre (1994), que ela foi precursora em seus interesses e pesquisas, “desde que empreendeu uma comparação sistemática dos sistemas administrativos espanhol e português na América; ao interessar-se pela questão de preços, salários e níveis de vida no Rio de Janeiro no século XIX e primeiras décadas do século XX; a elaboração de vasta síntese sobre a história econômica do Rio de Janeiro e interessar-se por um tema muito negligenciado: a imigração portuguesa na cidade, não limitando-se às variáveis demográficas, econômicas e sociais, mas abordando temas comuns à literatura, às relações culturais oficiais, ao associativismo, à cultura operária, à cultura popular” (Cardoso, 1994, p. 78-79). Enfim, trata-se de uma historiadora ímpar no cenário brasileiro ainda hoje.
Ademais, sua sincronia com as questões de seu tempo, o estudo sobre a história política da América Latina e sua projeção no mundo em um contexto de efervescência na região, superando as teses da pretensa superioridade brasileira no continente; seu interesse por uma etnohistória dos nativos “chibchas” da Colômbia, estudo publicado na famosa Encyclopédie de la Pleiade. Sua adesão aos pressupostos dos Annales e sua filiação ao campo da história econômica, de onde partiu para a investigação sobre a industrialização, o movimento operário e seus diversos desdobramentos com o mundo do trabalho, algo que é hoje tão importante e prestigiado, assim como da história da industrialização, passando a investigar as transformações do capital em suas diversas especificidades, agências e redes, tendo no Rio de Janeiro um lócus privilegiado de pesquisa.
Não há, portanto, como dimensionar a influência da historiadora Eulália Lobo em minha geração acadêmica, que conheceu, nos bancos universitários, uma história acrítica, aprisionada no passado e na erudição ornamento. Enfim, gosto de dizer que fomos apresentadas em nossas graduações a uma Clio empoeirada, e Eulália, ao lado de outras pioneiras, entre as quais destaco Alice Piffer Canabrava, Emília Viotti e Nícia Vilela Luz, conferiram-lhe o brilho devido.
Antes mesmo de sua expulsão da universidade, e em conjunto com Maria Yedda Linhares, Eulália já conduzia um estudo sobre o Rio de Janeiro, que considerava pouco e mal estudado, sobretudo economicamente. Com a aposentadoria compulsória, Yedda exilou-se em Paris e Eulália continuou sozinha esse estudo, com recursos obtidos na Ford Foundation e no Social Science Research Council, que, pela primeira vez, abriu mão de seus estatutos para financiar a pesquisa de uma historiadora sem vínculos acadêmicos, como era o seu caso naquela conjuntura. Mais uma vez, foi uma pioneira!
Eulália passava, então, um semestre no Brasil e outro nos Estados Unidos ministrando cursos, enquanto sua equipe, que reuniu a saudosa professora Maria Bárbara Levy, então coordenadora de pesquisa do Ibmec, os estagiários Ricardo Salles, que viria consagrar-se, mais tarde, como um dos mais importantes pesquisadores do chamado “longo século XIX”, e que também partiu deixando uma obra de referência; Ângela Borba Cavalcante, Gilda Guilhon, e, ainda como voluntária, Lúcia Lobo, sua filha historiadora. Mapearam, então, todas as fontes referentes à economia do Rio de Janeiro, com destaque para a demografia, os setores produtivos e profissões, o que resultou no levantamento maciço e inédito de dados a partir dos arquivos da Brahma, da América Fabril, da Fábrica Corcovado, da Fábrica Bangu e do Moinho da Luz, para os quais usou, de modo inédito, computadores. Tais fontes permitiram-lhe investigar processos econômicos e a qualidade de vida da mão de obra na cidade do Rio de Janeiro, e também, no que se refere ao mundo do trabalho, pesquisar alimentação, mobilidade, habitação, salários e transformações da mão de obra, uma vez que o recorte temporal abrigava todo o longuíssimo século XIX e início do XX, período de grandes transformações estruturais.
Um livro monumental resultou da alentada pesquisa e foi publicado, baseado no método quantitativo e na história serial. História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro, de 1978, refutou a hegemonia do pensamento cepalino e a teoria da dependência, fortemente enraizados na USP e na Unicamp, considerando que “a transformação do capital comercial carioca na segunda metade do século XIX em capital industrial e financeiro foi decisiva para a preponderância do Rio de Janeiro até o século XX, criticando o binômio café-indústria destacado nas obras de Wilson Cano e Sergio Silva”, entre outros, o paradigma vigente para explicar o sucesso paulista no novo século, como muito bem apontam Carlos Gabriel Guimarães e Luiz Fernando Saraiva em artigo preparado especialmente para o centenário da autora (Guimarães; Saraiva; 2024).
A teoria cepalina, inicialmente bem acolhida por Eulália, que privilegiou a questão dos choques adversos, a teoria da dependência e a questão da modernização, foi um avanço importante quando surgiu, em uma conjuntura em que os trabalhos empíricos se ajustavam às interpretações generalizantes. No entanto, na década de 1970, foi considerada esgotada por Eulália, entre outros autores, na medida em que era possível procurar respostas em escalas locais às questões geradas em escalas maiores.
Importante ressaltar que o uso da quantificação, que à época criou polêmicas no meio historiográfico, foi admitido por Eulália como forma de incluir, implicitamente, os fatos repetidos seriados na categoria de fato histórico.
Eulália inovou, também, no uso de computadores, possível somente pelo seu prestígio como historiadora e sua capacidade de articular recursos e redes de apoio nacionais (mesmo aposentada pela ditadura) e internacionais. Segundo Luiz Fernando Saraiva, ela foi uma das primeiras historiadoras no mundo a utilizar a nova tecnologia para fins de pesquisa histórica, ao lado de Engerman e Fogel nos Estados Unidos e Pierre Chaunu na França. Para tanto, contou com a colaboração do Ibmec, do Centro de Processamento de Dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Hidrologia S.A.
A já citada História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro tornou-se uma obra seminal, marco na historiografia brasileira, que influenciou as abordagens da história social e econômica, consagrando-se como paradigma na década de 1980, ainda hoje exerce fascínio e, para o historiador do presente, munido de novas questões, apresenta caminhos de pesquisa e fornece dados.
No ano de lançamento do referido livro, 1978, portanto antes da anistia, Eulália e Maria Yedda, conforme já referido, foram contratadas pela UFF, sem o famoso atestado ideológico então exigido pelo governo autoritário. Tal façanha foi alcançada graças ao prestígio institucional de Aidyl de Carvalho Preis, fundadora do programa de mestrado e coordenadora do curso, uma autêntica liberal, que logo se entusiasmou com nossa proposta de tentar o apoio da Finep para o desenvolvimento da pesquisa no programa. A dificuldade principal residia na intenção daquela instituição em financiar pesquisas na área de exatas, tecnológica e biológica, pois o primeiro Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT) excluía as ciências humanas e sociais aplicadas, e o formulário do projeto era, naturalmente, orientado para aquelas áreas. No entanto, não havia qualquer restrição formalizada para apresentação de projetos em nossa área. Contando com o entusiasmo da professora Aidyl e a simpatia e apoio discreto de funcionárias progressistas comprometidas com os ideais democráticos, particularmente Madalena Diegues Moreira Alves, irmã de Cacá Diegues e esposa do famoso deputado cassado Marcito Moreira Alves, preenchemos, Eulália e eu, o citado formulário, respondendo, inclusive, a questão considerada mais importante: Explicite as formas de incorporação dos resultados do projeto aos setores produtivos da economia nacional. Considerando que o projeto se intitulava “Cidade campo no complexo regional fluminense (1890-1930)”, não havia como fazê-lo. Mas Eulália e eu fizemos! Inclusive formatamos o texto de quase três páginas e itens e subitens cujo conteúdo não consigo recuperar porque, de certa maneira, era nonsense! Dessa vez fomos pioneiras juntas, coordenando o primeiro projeto de pesquisa histórica aprovado pela Finep, e ultrapassamos os obstáculos que a burocracia militar impunha à pesquisa em ciências sociais.
Na verdade, até então, a história do Brasil era pensada por meio de grandes sínteses produzidas a partir das áreas hegemônicas, sobretudo São Paulo, e ainda na área da economia. Foi a nossa geração que consolidou a história econômica como campo, trazendo-a para os domínios da história, sobretudo da econômica e social e das especificidades regionais. Tal processo, abraçado pelos demais colegas da pós-graduação e intrinsecamente vinculado à abertura da história a novos temas e abordagens teórico-metodológicas que chegavam ao país junto com os ventos da redemocratização, estimulou os estudos regionais/locais, gerando grande renovação na historiografia brasileira. Veja-se o caso, por exemplo, do já citado Raízes da concentração industrial em São Paulo, de Wilson Cano, que afirmava que o Rio de Janeiro se caracterizava pelo investimento do capital na esfera da circulação e não da produção, como em São Paulo. Ana Maria Monteiro, minha orientanda, demonstrou exaustivamente que banqueiros e comerciantes foram os grandes investidores dos esforços industrializantes na Primeira República, ou seja, o livro de Cano, apesar de sua coerência interna, não correspondia à realidade concreta historicamente determinada do Rio de Janeiro.
Ao lado do esforço de rever tais sínteses, o referido projeto, que de certa forma dava sequência ao que Eulália já estava fazendo, propiciou, no âmbito da pós-graduação, o envolvimento de diferentes áreas do programa. Eulália e eu conduzimos a parte referente à história urbana, às migrações internas e externas, Yedda dedicou-se à área de história agrária e Robert Slenes, à escravidão. Recuperou-se, então, a importância da pesquisa documental, que sustentou várias teses que deram origem a contribuições relevantes à historiografia regional e brasileira.
Muitos trabalhos de mestrado, verdadeiras teses, se tornaram referência historiográfica, como os de Gladys Sabina Ribeiro, Hebe Mattos, Sidney Chalhoub, Sheila de Castro Farias, Martha Abreu, entre outros. O programa produziu, também, um conjunto de teses que afirmava que a decadência da lavoura cafeeira do Vale do Paraíba não provocou o empobrecimento da Velha Província em virtude das sucessivas frentes cafeeiras, como da Região Serrana e do Noroeste fluminense, que tiveram seus polos em Cantagalo e Itaperuna.
Nesse caso, gosto sempre de lembrar minha parceria com Eulália na perspectiva dos enfoques regionais, muito além dos ufanismos e das idealizações, pensando-os em suas especificidades e como respostas a questões que se geravam nos quadros mais amplos da política nacional e até do capitalismo mundial.
Também a imigração e o movimento operário foram temas abordados que trabalhamos juntas no projeto e fazíamos circular seus resultados em congressos internacionais e da Anpuh. No caso do movimento operário, Eulália, mais uma vez, valeu-se de uma abordagem diferenciada. Sem desconsiderar o prisma da legislação trabalhista e da organização sindical, Eulália e Bernardo Kocher centraram sua análise, não preciso dizer que inovadora, nas condições de vida dos trabalhadores, na questão da consciência de classe, na derrubada do sindicato tradicional, nas comissões de fábrica e na produção de arte do operariado. Eulália e Kocher chegaram a produzir uma antologia de contos operários.
Enfim, compartilhei com Eulália as emoções desse período de profundas transformações em nossa disciplina. Na história da UFF nos anos de 1980, Clio se tornaria exuberante e, para tanto, contribuiu sua monumental capacidade de trabalho e brilho intelectual. Sobre aquele período há uma entrevista que concedeu ao professor Cezar Honorato, em que reflete sobre o grau das transformações na forma de pensar e fazer história da época, que merece citação: “Ocorreu um processo de revisão profundo da história, questionando seu caráter científico. O objeto da história, a realidade, seria inalcançável e apenas perceptível o seu reflexo. O espaço e o tempo não existem em si mesmo para esses críticos. O tempo único, universal, foi substituído pelo tempo subjetivo, de curta ou longa duração, individual ou coletivo, o espaço físico, geográfico, poderia ser recortado em função do objetivo do pesquisador, da disponibilidade das fontes acessíveis. Houve também a ampliação do objeto da história, incluindo e valorizando temas tais como gênero, família, redes familiares, o cotidiano, o privado, o marginal, os vencidos, os pobres etc.” (Honorato, 2003, p. 234-250). Tal reflexão mostrará aos jovens colegas que lerão esse dossiê tanto a efervescência da época como a importância que tem para o historiador abrir-se às renovações do seu ofício.
Importante dizer que quando Eulália foi reintegrada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela manteve a relação acadêmica com a UFF, todo o projeto e a orientação de teses foi concluída.
Destaque-se, ainda, que a autora envidou todos os seus esforços a favor da história econômica, tornando-se, em 1993, uma das fundadoras da Associação Brasileira de Pesquisadores de História Econômica (ABPHE), tendo papel bastante relevante na sua consolidação, onde fez parte da primeira diretoria (1993-1995) e foi organizadora do II Congresso Brasileiro de História Econômica e da III Conferência Internacional de História de Empresas, realizados no Rio de Janeiro em 1996. Eulália teve, também, importante participação na edição da Revista do Rio de Janeiro.
A partir de 1978 até o seu falecimento, convivemos muito estreitamente, companheiras de congressos, viagens e esticadas. Passei a conhecê-la não apenas como professora, orientadora, profissional da história, escritora, mas também como a amiga dos amigos, solidária aos oprimidos desconhecidos, amante da arte e da beleza. Eulália era uma mulher de temperamento forte, uma pessoa que não se dava a damices, era muito simples, criativa, amava a vida. Já idosa e adoentada, fomos a um congresso em Fortaleza e ela quis passear de jangada! Assim, Eulália foi de musa à amiga, com quem pude liderar, distante das hierarquias acadêmicas, projetos pioneiros que consagraram a UFF como um programa de referência nacional e contribuíram para a institucionalização da pós-graduação em ciências sociais no país.
Pelo exposto neste texto, mobilizei minhas energias para, neste ano de seu centenário, organizar uma celebração que ultrapassasse os limites da festividade para trazer à tona o melhor de Eulália, ao reeditar em e-book essa obra extraordinária que é História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro, acrescida de uma introdução, dois artigos e uma série de mapas que facultarão ao leitor novas possibilidades de pesquisa. Para tanto, contei com a colaboração de vários colegas como os já mencionados Carlos Gabriel Guimarães e Luiz Fernando Saraiva, além dos jovens Guilherme Giesta e Matheus Sinder.
Já concluindo, resgato a importância da contribuição política e social de nossa homenageada, valendo-me das palavras de Arno Wehling em seu discurso de recepção a Eulália no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB): “O norte para o qual apontavam e apontam os interesses intelectuais de Eulália Lahmeyer Lobo é o da interpretação do Brasil, para melhor compreensão e atuações no presente. Seu saber não é uma torre de marfim, elaborar uma ciência pela ciência, semelhante ao ideal parnasiano da arte pela arte. Vivendo num país subdesenvolvido, preocupada ao longo de toda a sua vida com os angustiantes indicadores sociais que oprimem nossa sensibilidade, sua obra voltou-se para interpretações do Brasil e das outras experiências coloniais na América, como forma de melhor contribuir para que entendamos nossos erros, nossos obstáculos e nossas potencialidades. Soube, entretanto, em suas valorações preservar a seriedade da pesquisa e das interpretações, mostrando-se capaz, como poucos grandes historiadores, de compatibilizar rigor investigativo e compromisso social” (Wehling, 2011).
Caracterizada a atualidade e o vigor de seu esforço historiográfico, não poderia encerrar sem trazer para o presente algo que ressoe para as novas gerações como um alerta que evidencia o valor da história social. Para tanto, recorro a mais um trecho da referida entrevista de Eulália ao professor Cezar Honorato, em que ela se mostra aberta às novas abordagens da história. Diz a autora: “Nenhuma abordagem deve ser excludente, mas não se pode correr o risco de se deixar de estudar em que economia e em que sociedade as pessoas viviam sua sexualidade, suas questões étnicas e de gênero” (Honorato, 2003). Tais palavras, certamente, em um momento em que o identitarismo avança tanto no campo político como no interior da pesquisa histórica, contribuirão para refletirmos tanto sobre os caminhos da história como sobre o ofício do historiador.
Referências
CARDOSO, Ciro. Migrações portuguesas. Revista Rio de Janeiro, 1994.
GUIMARÃES, Carlos Gabriel; SARAIVA, Luiz Fernando. Revisitando histórias: Eulália Maria. In: LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro. 2. ed. revista e ampliada. São Paulo: Hucitec, 2024 (edição comemorativa em e-book).
HONORATO, Cezar. Eulália Lobo: entrevista. Com a colaboração de Lana Lage. Revista Rio de Janeiro, n. 10, maio./ago. 2003.
LOBO, Eulália Maria Lahmeyer; MAIA, Laura Lahmeyer Leite. Cartas de Antônio Dias Leite (1870-1952): um olhar sobre uma época de transformação. Rio de Janeiro: Editora Lidador, 2005.
MARTINS, Ismênia de Lima, O imigrante e a historiadora. In: MARTINS, Ismênia de Lima; SOUSA, Fernando (org). Portugueses no Brasil: migrantes em dois atos. Niterói: Muiraquitã, 2006.
MARTINS, Ismênia de Lima. História e vida: a trajetória de Eulália Maria Lahmeyer Lobo. 2007. Aula inaugural Unirio.
WEHLING, Arno. Discurso de recepção a Eulália Maria Lobo. Revista do IHGB, n. 453, 2011.
Francisco José Calazans Falcontem pós-doutorado e livre-docência pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui graduação em História e Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi professor da UFRJ, UFF e PUC-RJ. Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Salgado de Oliveira. É especialista em história moderna e contemporânea com ênfase no Mercantilismo e na Ilustração portuguesa, destacando-se no período Pombalino.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Como foi seu convívio com Eulália Lobo em sua formação na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil dos anos 1950?
[Francisco José Calazans Falcon] A professora Eulália Lobo lecionava na cadeira de História da América, então ocupada pelo professor Silvio Júlio de Albuquerque Lima na segunda metade década de 1950, quando já lecionamos como auxiliar de ensino, na cadeira de História Moderna e Contemporânea.
Temos uma lembrança da professora Eulália, muito jovem, lecionando em uma das salas do quinto andar da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi). Era elogiada pelos alunos por sua competência e diria mesmo pelo entusiasmo, porém, seu catedrático só se referia à nova assistente com reticências e expressões pejorativas. Mas, felizmente, a professora Eulália não deu importância a essas hostilidades e foi em frente na carreira. Na realidade, porém, meu contato com Eulália era meio intermitente, mas sempre nos demos muito bem, com ela e com seu marido, o professor Bruno Lobo, da Medicina da UFRJ. Recordo-me com muita nitidez de que, na noite em que foi assinado o AI-5, eu estava jantando com Eulália e Bruno no apartamento deles, no Jardim Botânico.
Vieram os anos de chumbo e Eulália, até onde sei, foi para o Estados Unidos. Na minha memória ela só reapareceu em 1978 ou 1979, primeiro no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, convidada pela professora Gebran a assumir a coordenação da pós-graduação, isto é, transformar num verdadeiro curso de mestrado em história aquela geringonça que o Eremildo havia criado em 1971-1972 e que jamais conseguiu ter credibilidade sequer no Conselho Universitário da UFRJ.
Logo depois nos tornamos colegas também no curso de mestrado em história da UFF (1979-1980), no qual ela logo se destacou como sucessora do professor Jose Honório Rodrigues, se eu não me engano.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Quando do retorno da professora ao Brasil, passando a trabalhar na UFF e inserindo-se no Programa de Pós-Graduação em História, qual a influência mais importante exercida por Eulália enquanto docente e historiadora naquele contexto?
[Francisco José Calazans Falcon] É difícil, para mim, fazer uma avalição nos termos constantes da pergunta. Fui subcoordenador e mais tarde coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da UFF. Até onde sei, ou me recordo, a professora Eulália era estimada e elogiada pelos seus alunos e orientandos, tanto pela sua competência quanto pelo espírito dinâmico e empreendedor.
Convém notar que meus anos de convívio com a Eulália na UFF não foram tantos assim: de 1979 ao final de 1983 (quando fui para Lisboa) e de 1985 até metade de 1986 (quando assumi a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFF).
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Como percebe a presença e a atuação de Eulália na construção institucional, na articulação e execução de projetos, e na promoção de associações fundamentais para o fortalecimento da ciência histórica no país?
[Francisco José Calazans Falcon] Percebo de maneira bastante positiva, embora genericamente, ou, a distância, como foi o caso, por exemplo, da Associação de História Econômica. Não disponho, porém, de dados mais precisos, mas nos parece inegável que existe um reconhecimento praticamente consensual de que Eulália recuperou a credibilidade acadêmica da cadeira de História da América e promoveu várias e importantes atividades de pesquisa, sobretudo sobre o Rio de Janeiro.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Quais as principais influências da obra de Eulália Lobo na historiografia brasileira, principalmente sobre a história econômica e do Rio de Janeiro?
[Francisco José Calazans Falcon] Acredito que Eulália influenciou muito, de diversas maneiras, a historiografia brasileira. Foram vários os temas por ela abordados, mas creio que o tema da cidade no Novo Mundo e, em particular, no Brasil, foi um dos seus prediletos. E aí, é claro, deteve-se no Rio de Janeiro, talvez o mais querido.
Lená Medeiros de Menezes é professora emérita da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), titular de História Contemporânea e pesquisadora visitante do Programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade, tendo recebido, no ano de 2015, a medalha da Ordem de Mérito José Bonifácio, da Uerj, e o título de Grão-Mestre da referida ordem. É doutora em História Social pela USP, com pós-doutorado na PUC-SP, mestra em História Social das Ideias pela UFF, especialista em História da América pela UFF e licenciada em História pela Uerj. Entre janeiro de 2008 e julho de 2015, ocupou a função de sub-reitora de Graduação da Uerj e de coordenadora institucional do Programa Ciência Sem Fronteiras. Foi responsável pela elaboração de projeto e implantação do mestrado e do doutorado em História na Uerj, sendo a primeira coordenadora do programa (1995), coordenadora geral por mais dois mandatos (2000-2002 e 2002-2004) e coordenadora do curso de doutorado (2004-2006), pertencendo, desde 1995, ao quadro permanente do programa. Tem larga experiência de docência e pesquisa na área de história, dedicando-se à investigação das seguintes temáticas: movimentos migratórios, imigração urbana (ênfase ao Rio de Janeiro e às imigrações francesa e portuguesa), expulsão de estrangeiros, movimento operário, anarquismo, prostituição e tráfico internacional de mulheres, estudos de gênero, imprensa e discurso midiático, imagens e representações, relações internacionais. Fundou e coordena o Laboratório de Estudos de Imigração (Labimi), vinculado aos programas de pós-graduação em História e Relações Internacionais da Uerj. Foi agraciada com moção de aplausos e congratulações por suas contribuições ao ensino e à cultura pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (1998 e 2009) e pela Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro (2019). É sócia efetiva do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro (IHGRJ) e ocupou a presidência da instituição.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Qual a importância de Eulália Lobo, como professora e autora, em sua formação?
[Lená Medeiros de Menezes] Não fui propriamente aluna de Eulália Lobo, embora pertença a uma geração de mestrandos por ela formados quando de seu retorno ao Brasil e ingresso na UFF. Meu contato com ela em sala de aula restringiu-se a uma conferência por ela ministrada na disciplina Estudos de Problemas Brasileiros, quando ingressei no mestrado em história da UFF e a universidade já havia reformado a disciplina no contexto da abertura, tornando-a um espaço privilegiado de discussão sobre o Brasil. Esse pequeno contato – colocado na contramão dos objetivos de doutrinação pretendidos pelos idealizadores de uma disciplina basilar da ditadura militar – bastou para que eu me deslumbrasse com sua erudição, postura política, vibração ao partilhar suas análises sobre o Brasil e o lado dadivoso e acolhedor da professora.
A Eulália estudiosa do Rio de Janeiro, do Rio operário e da imigração portuguesa eu conheci em maior profundidade quando elegi a expulsão de estrangeiros como objeto de minha tese de doutorado. Foi então que percebi que ela tinha um papel verdadeiramente de vanguarda nesses temas, praticamente virgens de cultivo. Os três livros se tornaram referências no doutorado e nas pesquisas que se seguiram. Até hoje guardo com carinho a dedicatória por ela feita quando do lançamento da segunda edição (a primeira foi publicada na Espanha) de sua obra sobre a imigração portuguesa no Brasil. Como fã incondicional daquela que se tornara referência para mim, levei o livro que havia comprado para que ela autografasse, o que ocorreu por ocasião de sua posse como sócia do IHGB. O que ela escreveu é uma demonstração inequívoca não só de que tinha conhecimento de meu trabalho quanto de sua extrema generosidade: “À amiga Lená ofereço este trabalho que trata de temas de nossos interesses comuns – Eulália”.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Quando do retorno da professora ao Brasil, passando a trabalhar na UFF e inserindo-se no Programa de Pós-Graduação em História, qual a influência mais importante exercida por Eulália como docente e historiadora naquele contexto?
[Lená Medeiros de Menezes] Deixado de lado a Eulália de história da América, vou colocar o foco na Eulália dos estudos econômicos-sociais do Rio de Janeiro e dos estudos sobre a imigração portuguesa. Esta, até Eulália elegê-la como objeto de reflexão, tinha o que venho chamando de “invisibilidade pela presença”, pois o foco dos estudos de e/imigração estavam voltados para nacionalidades mais exógenas, o que não era o caso dos portugueses, de mesma língua e heranças culturais muito próximas. Observe-se que também o Rio de Janeiro, até por conta da presença maciça de portugueses, era visto como uma espécie de terra sem imigrantes, distanciado de estados como São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, mais um fator a apontar para a vanguarda exercida por Eulália Lobo nesse campo de conhecimentos.
Com relação à imigração portuguesa, me posiciono como sua seguidora, da mesma forma que quero reforçar minha dívida com seu trabalho sobre a história econômica do Rio de Janeiro e sobre o Rio de Janeiro operário, que foram importantes referências bibliográficas para que eu pudesse dar conta do processo de expulsão que, ademais, em determinadas tipificações criminais, atingiu muitos portugueses.
Em um trabalho no qual os processos de expulsão constituíram as fontes primordiais de minha pesquisa, eu, que sou da área de história contemporânea e não da área de história do Brasil, precisava de referências confiáveis para contextualizá-los – e aí entram os volumes da História do Rio de Janeiro. Dados apresentados na obra influenciaram as reflexões e análises sobre as tipificações que ensejavam a expulsão, do anarquismo presente nos sindicatos ‒ em especial, no de construção civil e das padarias, onde os portugueses, diferentemente de São Paulo, constituíam a base do movimento ‒, aos criminosos e contraventores afetados pela pobreza, com destaque para aqueles que viviam na indigência e foram expulsos como “vadios incorrigíveis”.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Como você percebe a presença e a atuação de Eulália na construção institucional, na articulação e execução de projetos, e na promoção de associações fundamentais para o fortalecimento da ciência histórica no país?
[Lená Medeiros de Menezes] Sem dúvida, alinho-me entre aqueles que proclamam que Eulália Lobo é uma referência obrigatória no ensino universitário de história no Brasil, promovendo sempre a relação necessária entre ensino e pesquisa, embora não me sinta a pessoa mais apropriada para falar sobre essa dimensão de seu trabalho. Foi apenas na UFF – e de forma não muito próxima – que conheci sua capacidade de subverter o que já estava posto e buscar caminhos na direção do culto a um espírito crítico, tendo colaborado, efetivamente, para dar outra conformação ao mestrado da universidade, que veio a se tornar um dos principais programas do país. Foi por meio de suas obras que a conheci melhor, podendo comprovar o lugar de vanguarda que ocupou, não só com relação a temáticas mas também a abordagens, movida sempre por uma espécie de inconformismo frente ao conhecimento “cristalizado”.
Como nunca é demais reforçar, já que, por vezes, impõe-se a tendência do culto a uma memória de curta duração, que leva ao apagamento de figuras importantes da historiografia, quero mencionar a contribuição dada por Eulália na criação de associações e determinados projetos. Foi ela uma das fundadoras da ABPHE (Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica), fundada em 10 de setembro de 1993, tendo participado da organização do II Congresso Brasileiro de História Econômica e da III Conferência Internacional de História de Empresas, realizada no Rio de Janeiro, em 1996. Além disso, aliou-se a historiadores como Antonio Edmilson Rodrigues na criação da Revista do Rio de Janeiro, lançada em dezembro de 1985, no contexto da abertura política, tendo integrado seu primeiro conselho editorial. A revista, embora venha conhecendo uma vida de interrupções, é referência importante para os pesquisadores sobre o Rio de Janeiro, que a ela acorrem em busca de reflexões sobre a história da cidade. O prestígio da revista eu posso testemunhar pela repercussão de um artigo que escrevi no ano de 2007: “Re/inventando a noite: o Alcazar Lyrique e a cocotte comédienne no Rio de Janeiro oitocentista” (n. 20-21, jan./dez. 2007), hoje disponibilizado na internet.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Quais as principais influências da obra de Eulália Lobo na historiografia brasileira, principalmente na história econômica e do Rio de Janeiro?
[Lená Medeiros de Menezes] Como já mencionei com outras palavras, o lugar ocupado por Eulália Lobo na historiografia brasileira foi e continua a ser o da audácia na abertura de novos caminhos, com propostas de inovação em termos de temas, metodologias e abordagens. A trajetória que ela seguiu também foi ímpar, com trânsitos pela história da América, história política e empresarial, história econômica e social e história urbana, com aportes importantíssimos no tocante ao movimento operário no Rio de Janeiro e aos estudos sobre imigração portuguesa, sendo estes últimos os que me falam mais de perto. Lembrar de Eulália Lobo, sob o meu ponto de vista, ainda que eu não tenha privado de uma relação mais profunda com ela, é pontuar seu dinamismo, seu vanguardismo, sua audácia, sua postura política ‒ que lhe valeu prisão e exílio ‒, sua generosidade e amor ao magistério e à história. Que as novas gerações nunca a esqueçam, o que não acontecerá se inciativas como esta continuarem a manter vivo o legado deixado por aquelas e aqueles que dedicaram a vida a propor caminhos de presente e futuro.
Luiz Carlos Soares é licenciado, bacharel e mestre em História pela Universidade Federal Fluminense e doutorado em História pelo University College London, na Inglaterra. Atualmente, é professor titular aposentado da área de História Moderna e Contemporânea do Departamento de História da UFF, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História da Ciências da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual de Feira de Santana, sócio da Associação Nacional de História, sócio da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, membro vitalício do Conselho de Representantes da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica e sócio da Sociedade Brasileira de História da Ciência. Foi presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (1997-1999); Associação Nacional de História (2003-2005); e Sociedade Brasileira de História da Ciência (2006-2010). Foi ainda vice-presidente da Divisão de História da Ciência e da Tecnologia da União Internacional de História e Filosofia da Ciência e da Tecnologia, com sede em Paris (França, 2017-2021). Tem experiência na área de história, com ênfase em história moderna e contemporânea, história da ciência e da tecnologia e teoria e filosofia da história, atuando principalmente nos seguintes campos de estudos: história social do Rio de Janeiro no século XIX e história da ciência e da tecnologia na Inglaterra no século XVIII.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Qual a importância de Eulália Lobo, como professora e autora, em sua formação?
[Luiz Carlos Soares] Eu não fui aluno da professora Eulália. Eu a conheci pessoalmente em 1979, quando já era professor colaborador da UFF e fazia mestrado em história nesta universidade. Já tinha feito todas as disciplinas necessárias do curso, mas tive o prazer de assistir a algumas aulas e conferências da professora Eulália e logo fiquei encantado com o seu conhecimento sobre temas diversos, sobretudo sobre a história do Rio de Janeiro, pois, poucos anos antes, ela tinha publicado a sua monumental História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro, em dois volumes. Este livro foi de grande utilidade para mim, pois, na ocasião, elaborava uma dissertação de mestrado sobre as manufaturas na região fluminense no período 1840-1880 e pude encontrar nessa obra um vasto material que me ajudou bastante na redação do trabalho. No início dos anos 1980, fui para Londres fazer doutorado em história, no University College London, e só retornei em 1987, ficando algum tempo sem contato com a professora Eulália. Mas, depois de meu retorno, pude conviver profissional e socialmente com ela, participando de eventos no país e no exterior e na vida de entidades da área de história, principalmente na Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE), organizando também alguns eventos desta entidade.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Quando do retorno da professora ao Brasil, passando a trabalhar na UFF e inserindo-se no Programa de Pós-Graduação em História, qual a influência mais importante exercida por Eulália como docente e historiadora naquele contexto?
[Luiz Carlos Soares] Como mencionei acima, os dois volumes da História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro foram da maior importância para o desenvolvimento da minha dissertação de mestrado sobre as manufaturas na região fluminense no período 1840-1880. Mas esta obra continuou fundamental para o desenvolvimento da minha tese de doutorado, defendida em janeiro de 1988 no University College London, sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Certamente, a utilização maior que fiz desta obra foi em seu primeiro volume, mas toda ela é perpassada por uma rigorosa e vasta pesquisa em arquivos sobre diversos temas da história econômica e social do Rio de Janeiro, com análises muito precisas e objetivas, sustentadas por uma base factual muito impactante. Destaco, aqui, o vasto aparato estatístico e quantitativo construído pela professora Eulália que não só embasa as suas análises como também fornece elementos importantes para todos os pesquisadores de história econômica e social que têm o Rio de Janeiro como lócus de suas pesquisas. Esse rigor e aprofundamento investigativo também estiveram presentes em seus outros trabalhos sobre a imigração portuguesa, o movimento operário, o sindicalismo e as condições de vida da população.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Como você percebe a presença e a atuação de Eulália na construção institucional, na articulação e execução de projetos, e na promoção de associações fundamentais para o fortalecimento da ciência histórica no país?
[Luiz Carlos Soares] A professora Eulália sempre foi uma profissional e uma cidadã muito participativa e preocupada com as questões sociais, questões institucionais da área de história e com a vida associativa. Sua participação militante em diversas esferas é inquestionável e não foi por outra razão que ela foi cassada pela ditadura civil-militar brasileira, a partir de seu endurecimento, no final de 1968. A professora Eulália sempre esteve presente na vida de diversas entidades do campo histórico, como a Associação Nacional de História (Anpuh) e, mais recentemente, a Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE). Nesta última entidade, ela teve um papel importante na sua fundação e fez parte da sua primeira diretoria eleita, como vice-presidente. No âmbito do ensino de graduação e pós-graduação em história, tanto na UFRJ como na UFF, sua atividade foi incessante, ministrando cursos diversos e orientando muitos alunos em monografias de final de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Mesmo quando esteve afastada do ensino universitário, em boa parte dos anos 1970, a professora Eulália realizou diversas pesquisas, organizando e dirigindo equipes de pesquisadores envolvidos com as atividades investigativas por ela coordenadas. Todavia, gostaria de ressaltar aqui o caráter pioneiro da sua atuação, pois ela foi uma das primeiras mulheres (juntamente com Maria Yedda Leite Linhares) a se tornar professora catedrática de uma importante universidade pública brasileira, na então Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Esse pioneirismo também se manifestou nas diversas temáticas originais de suas pesquisas, tanto no âmbito da história das Américas, com a publicação de trabalhos diversos (livros e artigos), com variadas temáticas do período colonial ao século XX, como no da história do Brasil e do Rio de Janeiro.
[Cezar Honorato e Thiago Mantuano] Quais as principais influências da obra de Eulália Lobo na historiografia brasileira, principalmente sobre a história econômica e do Rio de Janeiro?
[Luiz Carlos Soares] Gostaria de destacar, mais uma vez, a importância pioneira da obra da professora Eulália na historiografia brasileira, particularmente no que se refere à historiografia sobre o Rio de Janeiro. Seus diversos trabalhos são fundamentais para conhecermos a história econômica, social e mesmo demográfica dessa cidade de central relevância na vida do país. Todos os seus estudos – vinculados à trajetória econômica, industrial e comercial da cidade dos primórdios coloniais ao século XX, à imigração portuguesa, aos trabalhadores portugueses, ao movimento operário e ao sindicalismo, às condições de vida do operariado, à evolução dos preços e ao padrão de vida na cidade etc. – são desenvolvidos com uma ampla base de exploração de fontes primárias, o que permite a elaboração de vastos quadros factuais e aparatos quantitativos que, por sua vez, são fundamentais para alicerçar as análises e considerações mais teóricas que realiza. Talvez um aspecto a ser ressaltado na obra da professora Eulália é que suas análises e considerações de natureza teórica não são extensas e repetitivas, mas se caracterizam, sim, pela precisão e objetividade, o que dá uma falsa impressão de empirismo a muitos críticos apressados de sua obra. Ela sabia muito bem desenvolver a sua pesquisa a partir de um trabalho rigoroso com fontes primárias, construir a sua base factual e, a partir dela, elaborar as suas análises e considerações sobre as temáticas e os processos investigados.
Entrevista realizada pelos editores do dossiê “História econômica do Rio de Janeiro”, Cezar Honorato, doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), e Thiago Mantuano, doutor em História pela UFF e professor visitante adjunto do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc).