Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, maio/ago. 2024
História econômica do Rio de Janeiro | Dossiê temático
A dinâmica do ganho na totalidade social
Trabalho escravizado e livre na cidade do Rio de Janeiro (1854-1888)
The dynamics of “ganho” in the social totality: enslaved and free labor in the city of Rio de Janeiro (1854-1888) / La dinámica del “ganho” en la totalidad social: trabajo esclavizado y libre en la ciudad de Río de Janeiro (1854-1888)
Pedro Guimarães Pimentel
Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Professor do Departamento de História do Colégio Pedro II, Brasil.
Resumo
Este artigo trata da dinâmica do “ganho” enquanto fenômeno vinculado aos mercados de trabalho escravista e livre, observando-o na totalidade social, na derrocada da escravidão na cidade do Rio de Janeiro. Partindo dos estudos de Jacob Gorender e Ruy Mauro Marini, investiga-se o ganho na dinâmica de transição entre o escravismo colonial e o capitalismo dependente, apresentando conclusões preliminares para sua compreensão teórica.
Palavras-chave: ganho; escravismo; trabalho livre; Rio de Janeiro.
Abstract
This article deals with the dynamics of “ganho” as a phenomenon linked to the slave and free labor markets, observing it in the social totality, in the collapse of slavery in the city of Rio de Janeiro. Based on the studies of Jacob Gorender and Ruy Mauro Marini, the “ganho” is investigated in the transition dynamics between colonial slavery and dependent capitalism, presenting preliminary conclusions for their theoretical understanding.
Keywords: “ganho”; slavery; free labor; Rio de Janeiro.
Resumen
Este artículo aborda la dinámica del “ganho” como fenómeno vinculado al mercado de trabajo esclavista y libre, observándolo en la totalidad social, en el colapso de la esclavitud en la ciudad de Río de Janeiro. A partir de los estudios de Jacob Gorender y Ruy Mauro Marini, se investiga el “ganho” en la dinámica de transición entre la esclavitud colonial y el capitalismo dependiente, presentando conclusiones preliminares para su comprensión teórica.
Palabras clave: “ganho”, esclavitud; trabajo libre; Rio de Janeiro.
Introdução
No primeiro trimestre de 2020, antes mesmo dos impactos causados pelo catastrófico enfrentamento à pandemia de Covid-19, o Brasil atingiu o recorde histórico de 38,1 milhões de trabalhadores da chamada “economia informal”. Por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística considera como informais os empregados acima de 14 anos sem carteira assinada nos setores privado e público e os trabalhadores domésticos. Além destes, contabilizam-se os empregadores que não possuem CNPJ e os por “conta própria” igualmente sem o cadastro de pessoas jurídicas. Nesses dados não estão somados os quase 13 milhões de “desocupados” nem se distingue o meio urbano do rural. Contudo, sabe-se por este mesmo levantamento que apenas 9,27% da população ocupada vincula-se à agricultura, pecuária e congêneres. Desse modo, é seguro afirmar que a maior parcela dos trabalhadores e trabalhadoras informais se encontra nas cidades, especialmente nos grandes centros (IBGE, 2020).
Apesar do vasto e importante debate em torno do uso do conceito de informalidade (Noronha, 2003), partimos da compreensão utilizada pelo instituto que organizou os levantamentos censitários no país. A partir desta definição, além de fornecerem subsídios para as políticas públicas, os dados coletados permitem a própria investigação científica sobre a realidade da economia e do “mundo do trabalho” brasileiros. Em comum, tais trabalhadores lidam diariamente com a “precariedade do emprego e da remuneração”, como afirma o sociólogo Ricardo Antunes, um dos maiores pesquisadores do tema (Antunes, 2006, p. 52). Além disso, esse grande contingente populacional está apartado da proteção sindical e dos direitos sociais garantidos pelas leis do trabalho, tais como o FGTS e as férias remuneradas. A informalidade é, portanto, o avesso da formalização do trabalho que se consolida no Estado, nas décadas de 1930 e 1940, sob o pacto entre o Estado, comandado por Getúlio Vargas, e as classes trabalhadoras, sobretudo as urbanas, como argumentou Gomes (1988).
O panorama registrado atualmente, entretanto, possui historicidade própria. No pouco mais de meio século que antecede à Consolidação das Leis do Trabalho, a cidade do Rio de Janeiro engendrou uma labiríntica rede de relações de produção que distam consideravelmente das contradições inerentes ao meio rural, representadas pela oposição entre senhorio e escravizados. No meio urbano, libertos e livres se imiscuíam e transitavam em misteres que iam desde os carregadores de detritos pelas ruas até os altos funcionários do Estado, passando pelos comerciantes, operários, médicos, advogados, quituteiras, lavadeiras etc. Entre os escravizados e os livres despossuídos, durante o século XIX, o termo “ganho” expressava a luta diária pela própria sobrevivência e a de seus familiares.
Vende-se, na rua dos Ourives n. 201, sobrado, um preto de meia idade, forte e é de ganho, dá de jornal 1$: dá-se por 500$, negócio decidido e um bom crioulo de 26 anos, bonita peça, vindo da roça, próprio para padaria e todo serviço braçal.1
Antonio Ferreira da Cunha, português, morador a ladeira do Seminário, n. 45, freguesia de São José quer licença para andar ao ganho. Apresenta para seu fiador Domingos da Silva Manahu, estabelecido com quiosque, n. 114, morador na rua Santo Antonio, n. 5. (apud Sarmiento; Menezes, 2015, p. 167)
o artista que não encontra nela [indústria de chapéus] o meio de sustentar-se têm-se valido até de uma carroça ou de um cesto, tornando-se o que se chama ganhadores; outros têm recorrido a empresa Gary, outros a empregos de bonds, etc. etc. (apud Vitorino, 2012, p. 4)
A primeira citação, extraída do Jornal do Comércio de 1870, anuncia a venda de dois homens escravizados. O primeiro deles “é de ganho”, isto é, “alugando seu serviço a outrem, esse escravo deveria retornar ao fim do dia ou da semana levando uma quantia predeterminada”, como define a historiadora Marilene Silva (1988, p. 88). Responsável pelo seu sustento e do seu senhorio, o “preto de meia idade” é apresentado como capaz de remunerar-se a mil réis por dia. A julgar pela presença dessa informação numa propaganda paga no principal diário da cidade, conclui-se que tal quantia era, no mínimo, razoável. Cipriano José Gomes de Araújo, o proprietário do escravizado em questão, “negociante de ouro, prata e pedras preciosas”, segundo o Almanak Laemmert, conhecido anuário de propaganda, pretendia ainda desfazer-se de “uma bonita peça” de seu plantel, um jovem de 26 anos, capaz de “todo o serviço braçal”.2
Antônio Ferreira da Cunha, protagonista do segundo trecho, era um homem livre, português emigrado, e sua solicitação às autoridades municipais demonstra que o ganho não era uma condição especial somente para o escravizado. Os ganhadores livres, tal qual os escravizados, precisavam ter suas andanças pelas ruas afiançadas por outrem. Dessa feita, um provável pequeno comerciante, “estabelecido com quiosque” à mesma ladeira em que habitava Antônio, atualmente desaparecida juntamente com o morro do Castelo.
Finalmente, na apreciação do terceiro documento, escutamos o reclame dos artistas chapeleiros, num momento em que a produção deste acessório ainda não tinha se industrializado por completo no país e dependia de fábricas de pequeno porte ou oficinas menores em que a produção ainda se compreendia enquanto “arte”. A concorrência com os chapéus ingleses e alemães levaria, de acordo com o protesto, à falência de muitos estabelecimentos, reduzindo os artífices, outrora prestigiados, à condição de trabalhadores do sistema de limpeza urbana, de transportes ou, o que parecia pior, “valendo-se de uma carroça ou de um cesto” a compartilhar da rua com os demais ganhadores.
Tomados isoladamente, esses trechos revelam as distintas condições do chamado “mundo do trabalho” carioca do século XIX. Em um dos contextos, a investigação sobre os “escravos-ao-ganho” explicita a complexidade das relações estabelecidas entre os trabalhadores escravizados, o senhorio e o conjunto das forças de repressão da cidade, por exemplo. O português Antonio, aparentemente destacado em outro cenário, contextualiza a condição dos imigrantes pobres e sua equiparação, a nível laboral, com os africanos livres ou libertos e os já brasileiros emancipados, na miserabilidade da luta cotidiana pela sobrevivência. Por sua vez, o último recorte simboliza o exame das circunstâncias em que se deu o longo processo de afirmação da produção industrial nacional perante a importação dos manufaturados das potências centrais.
Contudo, as recentes contribuições da história social do trabalho convergem na proposição de compreender integradamente as realidades descritas, sinalizando, dentre outros aspectos, as “experiências comuns” entre livres, libertos e escravizados (Mattos, 2008). Nossa perspectiva move-se, portanto, no caminho trilhado pelas iniciativas que superam as dualidades escravizado versus livre ou assalariado versus exército de reserva e comprometem-se com a apuração de uma complexa dinâmica que encerre o conjunto dos agentes sociais nos ciclos socioeconômicos (Azevedo, et al., 2009; Eisenberg, 1989; Reis, 2019).
Privilegiamos, neste momento, os mecanismos que se dão no espaço urbano, para o conjunto de indivíduos que lidam com a instabilidade rotineira de condições de reprodução social da própria existência. Homens, mulheres e crianças que têm em comum a incerteza permanente da realização do trabalho e da própria sobrevivência e que se encontram na rua para a oferta de pequenos serviços ou produtos em busca do ganha-pão diário. Camelôs, vendedores e vendedoras ambulantes, trabalhadores informais... Reeditados os termos, considerados os contextos políticos, as alterações nas legislações e os atores num percurso de mais de uma centena de anos, guardariam alguma relação com os antigos ganhadores e ganhadeiras?
Nosso objetivo neste artigo é apresentar a compreensão da multiplicidade de trabalhos, irregularmente realizados e remunerados, através do termo aglutinador ganho, conduzindo-o ao status de conceito que exprime conclusões preliminares acerca da sua recorrência como fenômeno urbano até os dias de hoje. O processo histórico em análise envolve não somente a passagem do trabalho escravizado para o livre, a partir de supostos pontos fixos como a Abolição e a industrialização, mas a própria vigência da escravidão e o processo de urbanização, acompanhados evidentemente do crescimento demográfico e da diversificação produtiva.
Com base nos estudos de Jacob Gorender (1980) e Ruy Mauro Marini (2005), compreendemos o percurso histórico de derrocada da escravidão e afirmação do trabalho livre não apenas como uma transformação das relações de trabalho em um conjunto mais amplo de relações capitalistas, mas como a transição entre modos de produção na formação social brasileira, isto é, a passagem do escravismo ao capitalismo dependente (Pimentel, 2022).
Quando falamos em transição, não queremos remontar à historiografia que compreendia o escravizado (mais que a própria escravidão) como elemento desajustado ao trabalho livre e à cidadania republicana, devendo, deste modo, ser substituído pelo imigrante, preferencialmente branco, este sim “adaptado ao trabalho” (Lara, 1998). Assim, não procuramos reeditar o paradigma da transição entre trabalho escravizado e trabalho livre. O recurso ao termo “transição” possui, aqui, outra conotação. Entendemos o período que vai da cessação do tráfico atlântico, em 1850, até a Abolição, em 1888, como itinerário que altera a relação de dominância entre modos de produção numa formação social específica.
Partimos do pressuposto de que a escravidão não era uma anomalia – econômica ou moral – numa trajetória de constituição do capitalismo ao redor do planeta, a partir da expansão marítima europeia dos séculos XV e XVI, mas um modo de produção específico com suas particularidades e leis tendenciais (Gorender, 1980, p. 302-317).
As recentes abordagens que privilegiam o conceito de “segunda escravidão” para lançar luz sobre a ascensão e consolidação do capitalismo dos países centrais por meio da indústria durante o século XIX chamam a atenção também para o aprofundamento do trabalho escravizado nos cenários ainda marcados pelo viés colonial, como o sul dos EUA, Cuba e Brasil (Marquese; Salles, 2016). Entretanto, como já tivemos oportunidade de discutir (Pimentel, 2019), o aumento da demanda pelo algodão, pelo café e pelo açúcar, em que pese tenha provocado um incremento exponencial da captura, escravização e tráfico de seres humanos originários de África, não alterou as características da produção com base na força de trabalho escravizada nessas localidades, isto é, não modificou as leis tendenciais do modo de produção escravista colonial.
Tampouco o fez a modernização da cadeia produtiva através da instalação de ferroviais, das máquinas de beneficiamento do café e do açúcar e das reformas dos portos de Santos e do Rio de Janeiro. Pelo contrário, as reforçou e reiterou num contexto geopolítico em que o abolicionismo inglês combatia o tráfico transatlântico (Pimentel, 2019, p. 2-17). O século XIX, contudo, assistiu à ascensão do movimento emancipacionista nacional e internacional, estes sim responsáveis, juntamente com a insurreição generalizada dos escravizados rurais e urbanos entre 1885 e 1888, pela derrocada, em solo nacional, do escravismo colonial, após quase três séculos e meio (Pimentel, 2022, p. 143-173).
Por outro lado, a dominância de tal sistema socioeconômico no território nacional não excluiu a presença, ora complementar, ora concorrente, das relações capitalistas, durante o período em questão, especialmente no meio urbano. Essa aparente contradição provocada pela coexistência de dois modos de produção numa mesma formação social foi por nós interpretada a partir da proposição de um “ciclo transicional do capital” em que ora a acumulação auferida a partir das relações escravistas de trabalho servia de capital para o investimento em fábricas com trabalho assalariado, ora o lucro obtido nestas instalações e no comércio de importação auxiliava na aquisição de um novo plantel de escravizados para a produção cafeeira paulista (Pimentel, 2022, p. 95-132). Foi neste momento também que examinamos o “caráter da dependência durante a transição” no intuito de forjar um elo interpretativo entre contribuições alegadamente díspares como as de Jacob Gorender e as da teoria marxista da dependência.
Este trabalho segue o mesmo roteiro e procura, neste momento, deslocar-se do olhar macroeconômico e macrohistórico para a apuração da ação prática dos sujeitos históricos. Compreendamos o ganho como um sistema mais complexo do que se tem convencionado admitir, em razão de conglomerar uma realidade social que, na verdade, alastrava-se pela cidade. Ademais, Cipriano, Domingos, Antônio, o “preto de meia-idade”, o “bom crioulo” e os “artistas chapeleiros” desempregados compunham uma hierarquia social própria a essa dinâmica, estando o primeiro no topo, embora não necessariamente ocupando posição semelhante na estratificação a partir de uma perspectiva global.
A dinâmica do ganho agrupa agentes sociais de distintas origens e aquiesce sua abordagem como uma realidade na qual diversos indivíduos ocupam posições relativas entre si. Outrossim, vincula-se aos demais níveis produtivos que têm na cidade seu ponto de passagem (comércio do café, de escravizados etc.) ou seu ponto de origem (fábricas, produção artesanal), ou ainda seu ponto permanente (serviços urbanos). Assim, o ganho não se desassocia da urbanicidade da produção, encarada sob o ponto de vista dos ciclos dos capitais, interferindo, de fato, nela.
Com efeito, nosso objetivo ao propor tal escalonamento perspectivo diz respeito à possibilidade de apresentar um marco teórico para o trabalho urbano “ao ganho” que circunscreva as estruturas produtivas em questão, vistas em sua evolução temporal no conjunto das transformações do período transicional. A plantagem escravista, a escravidão urbana, a produção fabril, o comércio e o transporte, o trabalho livre e o assalariado se encontram, no nível mais rebaixado de remuneração e dignidade humana, na dinâmica do ganho.
Como insistimos numa transição entre modos de produção, é imperativo afirmar que a estrutura do ganho não é estática, alterando-se à medida que os conflitos subjacentes à transformação da sociedade brasileira e, em especial da carioca (ocaso da escravidão e disseminação das relações capitalistas), tenderam a se consolidar.
O ganho e o mercado de trabalho
O Código de posturas da Ilustríssima Câmara Municipal do Rio de Janeiro, de 1854, ao determinar que “ninguém poderá ter escravos ao ganho sem tirar licença da Câmara Municipal” e “quando o ganhador for pessoa livre deverá apresentar fiador que se responsabilize por ele”, denota, ao ratificar as normas já contidas nos códigos anteriores (1830 e 1838), o uso corrente do termo “ganho” como uma atividade laboral destinada à sobrevivência advertidamente reconhecida pelo Estado como “honesta”.
Essa percepção deve-se ao fato de que o artigo 5º encontra-se sob o “Título sétimo”, que trata “de negócios fraudulentos de vadios, de tiradores de esmolas, de rifas, de ganhadores e de escravos”. O ganho, regulado e admitido, era, portanto, o reverso da vadiagem:
§ 2° Toda a pessoa de qualquer cor, sexo ou idade, que for encontrada vadia, ou como tal reconhecida, sem ocupação honesta e suficiente para sua subsistência, será multada em 10$000 rs., e sofrerá 8 dias de cadeia, sendo posta em custódia até decisão do auto, e depois remetida ao chefe de polícia para lhe dar destino.3
Para fins desta discussão, não é necessário que busquemos a origem do termo e sua evolução histórica precedente ao período que nos interessa; tarefa que, ainda que interessante do ponto de vista da história do trabalho urbano, poderá ficar a cargo de outros estudos. Ao valer-se do termo na normativa jurídica, o Estado brasileiro se faz entender pelos seus súditos à medida que estabelece sanções para aqueles que descumprirem as posturas. Do ponto de vista legal, o ganho, portanto, era uma iniciativa de regulação do trabalho das ruas, além de possibilitar a arrecadação de impostos por parte da estrutura administrativa municipal.
O trabalho recente de João José Reis (2019) narra o conflito entre ganhadores – escravizados, libertos e livres – e a Câmara Municipal de Salvador, no contexto de tentativa de normatização do trabalho urbano e de expulsão dos africanos (rebeldes “em potencial”, após a revolta dos malês de 1835). Nossa discussão é, portanto, posterior ao período abordado por Reis, contendo elementos resultantes e convergentes do processo histórico no qual o bloco no poder, fosse ele carioca ou soteropolitano, transcorreu para aperfeiçoar o controle sobre os ganhadores e ganhadeiras.
Ao lembrarmos que, apesar da regulamentação, através da solicitação e emissão de licenças pela Câmara Municipal, a postura ainda considerava necessário arremeter à cadeia e multar “toda pessoa de qualquer cor, sexo e idade” reconhecida como vadia ou sem ocupação, é de se concluir que muitos não preenchiam os requisitos e acabavam recolhidos pela polícia da corte, além de arcar com uma multa equivalente a semanas ou meses de trabalho.
Esse dado revela um primeiro aspecto fundamental para a nossa abordagem: o sistema produtivo urbano era incapaz de afixar permanentemente os indivíduos em postos de trabalho, denotando certa volatilidade entre a existência de uma ocupação remunerada e sua ausência, a “vadiagem”. O ordenamento jurídico do Império, ao considerar o ganho como uma prática laboral, sinaliza uma característica essencial das sociedades modernas: a incompletude do mercado de trabalho, transportando-nos para a separação entre os trabalhadores e os meios de produção.
Como contradição intrínseca à apropriação privada do excedente produzido, a expropriação e sua correlata proletarização criaram, além das mercadorias, um outro excedente vendável: a força de trabalho; daí o “exército de reserva”. Evidentemente, o escravizado não se enquadra como expropriado nos termos capitalistas, contudo, ao libertar-se do jugo do cativeiro, deveria competir com os demais livres e libertos para proletarizar-se, isto é, empregar-se como trabalhador remunerado regularmente.
Portanto, um primeiro elemento que conecta a dinâmica escravista ao trabalho livre numa totalidade mais ampla é o fato de que, especialmente no meio urbano, a posse de escravizados – status social até para famílias pobres – não se direcionava prioritária ou exclusivamente ao emprego da força de trabalho nos setores produtivos típicos da plantagem, ou mesmo da manufatura de valores de troca. Na verdade, o ganho para o senhorio significava a inserção do escravizado na mesma dinâmica de excedente de mão de obra que deveria competir, na rua, pela remuneração diária.
Durante o século XIX, a cidade do Rio de Janeiro verificou crescimento demográfico considerável. De 116.444 habitantes em 1821, metade deles escravizados, passa a 137.078 em 1838, para atingir 266.466 em 1849 e, finalmente, 274.992 em 1872 (Soares, 2007, p. 363-372). Considerando que os levantamentos anteriores ao primeiro censo geral realizado no Império (com exceção do de 1870, não computado acima) desprezaram a classificação da população segundo as ocupações profissionais, devemos iniciar nossa análise pelo ano de 1872.
As estimativas e verificações registradas até aquele momento, imprecisas e muitas vezes super ou subestimadas, atendiam a interesses eleitorais, de arrecadação ou de alistamento militar. O recenseamento de 1872 é o primeiro a dar-se com o objetivo de traçar um perfil da sociedade brasileira que incluísse padrões minimamente modernos de ordenação, classificando os indivíduos, dentre outras coisas, pela condição civil (escravizado ou livre), sexo, idade, cor, religião e profissão (Bissigo, 2014).
Enquanto as “profissões liberais”, que incluíam treze ocupações, contavam com 14.449 indivíduos, os “operários”, “costureiras”, “pescadores” e “lavradores” somavam 47.920 pessoas. Aparentemente, temos um equilíbrio típico de uma sociedade capitalista, pendendo inclusive para uma composição de setores intermediários acima da média esperada. Entretanto, em que ocupações se localizam os restantes 212.623 habitantes da cidade do Rio de Janeiro? No topo da hierarquia social, entre os “capitalistas e proprietários” e os “manufatureiros e fabricantes”, encontram-se 2.826 munícipes. Na sequência, temos 5.474 “militares”, 8.039 “marítimos”, 23.481 “comerciantes, caixeiros e guarda-livros”, 25.686 “criados e jornaleiros”, 55.011 dedicados ao “serviço doméstico” e, finalmente, 92.106 “sem profissão”.4
Ainda que esses números suscitem diversas questões, focaremos nossa análise na busca por uma compreensão das características da estrutura produtiva urbana nesse período, especialmente no tocante à dinâmica do ganho. A fotografia registrada pelo censo de 1872 comprova a dificuldade de enraizamento da produção manufatureira no país. Mesmo após o pequeno surto entre os anos 1850 e 1860, a quantidade de pessoas dedicadas às “profissões manuais ou mecânicas”, particularmente as de caráter manufatureiro ou artesanal – em metais, madeiras, tecidos, couros e peles, tinturarias, vestuários, chapéus e calçados –, atingia 12.611, metade aproximada dos números oficiais para os “criados e jornaleiros”. Nesses dados, onde se localizam os ganhadores e ganhadeiras?
Orientados pela classificação do recenseamento, deveríamos situá-los imediatamente nos “criados e jornaleiros”, mas particularmente entre os “jornaleiros”, aqueles remunerados pelas jornadas diárias. Entretanto, nos sentimos obrigados a ampliar essa classificação. Para além da concepção clássica da economia política marxista do trabalho produtivo – que envolve a produção de mais-valor na indústria (ou fábricas e oficinas artesanais) e na agricultura, estendendo-se, em algumas análises, para o setor de transportes e de comércio –, optamos por empregar como critérios: a) a volatilidade da recomposição da força de trabalho (por meio de remuneração diária, semanal ou mensal suficiente) e b) a razão entre a intensidade do trabalho e sua remuneração como definidores do ganho. Isto é, se excetuarmos os trabalhadores e trabalhadoras classificados como “operários” (12.611), “lavradores”, “pescadores” e “criadores” (18.237), os 8.039 “marítimos”, os 9.428 “artistas” (por sua difícil conceituação)5 e, evidentemente, os profissionais liberais, os militares, os proprietários e os “sem profissão”, alcançamos a cifra de 86.527 indivíduos, cerca de 31,46% da população total.
Que “profissionais” se incluem nessa quantificação? Os “criados e jornaleiros”, “as costureiras”, os de “edificação”, os “canteiros e calceteiros, etc.” (até então excluídos propositadamente dos “operários”) e os de “serviço doméstico”. A fim de justificarmos os critérios listados, é mister narrarmos as condições de trabalho às quais estavam submetidos esses indivíduos. Com base nos relatos de Debret, Ewbank e Agassiz, Jacob Gorender resume:
Um escravo cangueiro, por exemplo, devia trazer diariamente ao amo, sob pena de castigo, de 48 a 64 vinténs — ou seja, de 960 a 1.280 réis —, à época de Debret. Como o transporte mais simples e curto, feito por dois homens, pagava-se de 16 a 20 vinténs, cada negro recebendo a metade dessa quantia, cada cangueiro precisaria conduzir de 6 a 8 volumes de peso descomunal por dia, somente para ganhar a renda devida ao dono dele. E ainda devia obter um excedente sobre a renda, ao menos a fim de atender às despesas mínimas da própria alimentação. [...] A média de vida profissional de um carregador de sacos de café, no cais do porto, não excedia os dez anos. Segundo Schaefler, o prazo de vida útil dos carregadores do Rio era ainda menor, de cerca de sete anos tão somente. (1980, p. 459, grifos no original)
Nos serviços urbanos, como transporte (de cargas e de pessoas), limpeza, carregamento de água e de dejetos, mudanças, iluminação etc., escravizados e livres conviviam e competiam pelo ganho diário, individualmente ou arregimentados por empresas de prestação de serviços. Segundo Luiz Carlos Soares, apesar do sistema de esgoto ter sido implementado por inciativa particular a partir de 1857, sua cobertura não era satisfatória, o que impunha que “‘a abominável peregrinação’ dos tigres, com seus barris em direção às praias da cidade, tal como relatou Expilly, também continuaria até as vésperas da abolição da escravatura” (2007, p. 162).
Em virtude dos tecidos de algodão, lã, linho e seda figurarem entre as principais importações brasileiras da Inglaterra, e “como a moda passava pela comercialização dos tecidos, muito mais do que pela produção em escala industrial de roupas”, como informa Joana Monteleone (2016, p. 249), inúmeras mulheres encontravam na profissão de costureira uma oportunidade de trabalho ou complemento de renda familiar, o que atesta o elevado número, caracterizado exclusivamente como feminino pelo censo: 11.592, dentre elas, 1.384 escravizadas. Uma vez que tal produção dependia da demanda, isto é, alguém deveria comprar um tecido e, posteriormente, adquirir o serviço das costureiras, tal atividade era altamente volátil, podendo-se inferir assim que as mulheres que declararam ao censo serem “costureiras” não tinham roupas para costurar diariamente, passando longo período sem trabalho.6
Na cidade do Rio de Janeiro, o comércio da moda possuía sua hierarquia própria. Enquanto a modista francesa Mme Alida Laffiteau, moradora de um sobrado à rua da Ajuda, 23, anunciava, ocupando um significativo espaço no Jornal do Comércio de 6 de maio de 1870, que “trabalha particularmente em chapéus de senhora e crianças, enfeitando-os com o maior gosto, perfeição e brevidade”, assim como “se encarrega de fazer vestidos, cintos e tudo quanto pertence à sua arte, etc.”,7 outro reclame comunica em 9 de janeiro do mesmo ano que “uma senhora deseja arranjar-se de costureira em casa de família de tratamento, levando sua máquina de costura; na rua das Marrecas, n. 26, loja”.8 Como também as escravizadas eram treinadas para a costura,
vende-se, pela primeira vez, uma crioula retinta, cria de casa de família, bonita figura, de 24 anos de idade, perfeitíssima costureira, modista, corta por figurino de todas as modas, corta e faz camisas de homem, esteve 13 anos em uma casa francesa, por isso está habilitada para ensinar como costureira em casa de família respeitável: o motivo da venda é por falecido seu senhor, sendo o produto para credores; na rua dos Pescadores, 101.9
Finalmente, O Auxiliador da Indústria Nacional, periódico vinculado a uma associação homônima, relatando as insatisfações dos fabricantes nacionais quanto às tarifas alfandegárias dos produtos importados no ano de 1881, calcula a remuneração das costureiras no fabrico de chapéus de sol de sarja: $200 num total de 3$096 (envolvendo as matérias-primas), isto é, seis por cento. Ainda pelas informações da publicação, estimando que para concorrer com os chapéus ingleses, que, no momento, eram vendidos a 6$, a participação do salário no preço final da mercadoria cai para 0,3% e a taxa de mais-valor fica em 1.452%.10
Quanto aos trabalhadores envolvidos com construções e reparos de ruas e calçadas (arrolados pelo censo como “cavouqueiros, calceteiros, etc.” e os “em edificação”), Eulália Lobo informa:
Em 1882, segundo Christopher Columbus Andrews, o alojamento do trabalhador no Rio de janeiro, numa estalagem composta de um quarto, uma sala, de 3 metros quadrados cada peça, e uma cozinha bem menor, custava de aluguel de 14.060 a 22.496 por mês. O aluguel de um quarto de cortiço para casal variava de 9.842 a 12.654 réis por mês. No cortiço havia uma cozinha comum para todos os moradores. O aluguel de quarto de cortiço de solteiro variava de 7.030 a 8.436 por mês. Nesse ano, um servente de pedreiro ou carpinteiro recebia em média 49.400 e se tivesse família teria de despender uma média de 11.248 réis de aluguel de quarto de cortiço, o que representava 22,8% da sua renda mensal. O servente tinha o padrão salarial de escravo de aluguel e de ganho. (Lobo et al., 1971, p. 256, grifos nossos)
Para se ter uma ideia da variedade de serviços que tais profissionais se dispunham a fazer, basta ler o anúncio de João Lamberti no Diário do Rio de Janeiro em 7 de outubro de 1863: ele mesmo “encarrega-se de fazer qualquer obra de pedreiro, carpinteiro e calceteiro, por preço cômodo, de empreitada ou direção; tira rumos de agulha, nivela terrenos, calcula obras, tira riscos, avalia casas e etc.”11 Esses profissionais estavam submetidos aos mais graves acidentes de trabalho, como relata a Gazeta de Notícias em maio de 1876: “um português cavouqueiro que trabalhava na pedreira de S. Diogo, foi vítima de uma enorme pedra que deslocando-se ontem pela manhã matou-o instantaneamente”.12
Numa carta assinada por “o despertador”, um leitor do Diário do Rio de Janeiro em 28 de dezembro de 1860, ao afirmar que não são os “mandões do Estado, nem os fardões bordados”, fazendo referência aos políticos e a elite da sociedade carioca, nem os “aristocratas enfatuados” ou os “fidalgos improvisados”, afirma que somente os “homens da classe laboriosa e honesta” podem avaliar a “existência de uma vida penosa e miserável” que enriquece os primeiros, dando relato preciso das condições de trabalho da época:
Falem os artistas que vivem de seus trabalhos! O sapateiro que bate a sola até alta noite; o ferreiro que bate o pesado malho sobre a bigorna; o fundidor que vive abrasado nas fornalhas ardentes de Vulcano; o maquinista que constantemente vela no aturado serviço dessas fumegantes máquinas a vapor; o pedreiro, o canteiro e o calceteiro que escala as já calosas mãos sobre as duras pedras; o caldeireiro que constantemente lida com os duros metais, sofrendo a música infernal das batidelas; o desgraçado marinheiro que arrisca sua vida sobre as embravecidas ondas, sempre exposto ao mais rude trabalho; o pobre soldado que expõe o peito à bala em defesa de sua pátria e sempre maltratados e ludibriados pela prepotência dos consenhores, reduzido a desprezível escravo; o agricultor que faz que a natureza forneça os produtos da terra para nossa comum subsistência; a indústria que nos fornece de todos os meios de facilidade a vida; enfim toda a classe ocupada nos diferentes ofícios, o armeiro, o joalheiro, o barbeiro, o saveiro, o compositor, o encadernador, o cuteleiro, o dourador, o marceneiro, o ourives, o escultor, o entalhador, o chapeleiro, o serrador e outros muitos homens de artes e ofícios não valem muito mais que todos esses zangões conservadores, inimigos do progresso, e dessa grande faculdade da inteligência, com que o grande autor da natureza dotou o homem para o seu bem estar cá na terra?13
Quanto ao “serviço doméstico” e aos “criados”, a situação era muito semelhante. Em busca realizada no sítio eletrônico Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, somente para o Jornal do Comércio, a palavra “mucama”, expressão que designava as mulheres escravizadas que exerciam as mais diversas tarefas domésticas nas casas de seus senhores e senhoras, retornou 2.577 ocorrências para o período que vai de 1º de janeiro de 1870 a 31 de dezembro de 1879, em sua absoluta maioria acompanhadas dos reclames de “vende-se”, “aluga-se” e “precisa-se”: “Vendem-se uma mucama, crioula, de 19 anos, e um moleque de 14, ambos são peças especialíssimas; na rua de S. Januário, n. 14, em S. Cristóvão”. Imediatamente abaixo, lê-se “Vende-se um preto pescador e chacareiro, é forte, sadio e inteligente, por 650$”, no mesmo endereço. As tarefas realizadas por criados e criadas vão desde a amamentação dos rebentos dos senhorios até o cuidado com a área externa das casas, passando pelo ato de cozinhar, lavar, passar e engomar.14
Segundo Flávia Fernandes de Souza, as autoridades municipais “procuravam inserir no conjunto dos serviços domésticos uma ampla gama de profissões – tal como o faziam com os trabalhadores de hotéis, cafés, casas de pasto, hospedarias, etc.” (2009, p. 8), para além do entendimento clássico dos que habitam o local de trabalho, fossem eles e elas criados “porta adentro” ou “porta a fora”. Considerando que dos 55.011 indivíduos classificados como “serviço doméstico” pelo recenseamento de 1872, 22.842 eram escravizados (14.184 mulheres), esta atividade ocupava 32.169 habitantes da corte (24.278 mulheres e 7.891 homens ou 11% da população total), provando inclusive que, como afirma a autora, “essa esfera de trabalho parecia ser, de fato, um campo fértil para a atuação de agenciadores dispostos a alugar a força de trabalho que o serviço doméstico mobilizava no Rio de Janeiro no final do século XIX” (p. 9).
Toda essa descrição nos devolve para a caracterização teórica das relações de trabalho. Deveremos, portanto, abordar individualmente cada uma delas para, em seguida, recompor as características da dinâmica produtiva.
O ganho na totalidade da produção
De acordo com Marcelo Badaró Mattos, valendo-se dos estudos de Mary Karasch e Luiz Carlos Soares, os escravizados exerciam nas ruas da cidade do Rio de Janeiro atividades como: “carregadores, almocreves (condutores de animais de carga), estivadores, aguadeiros, carregadores de dejetos, barqueiros, marinheiros, barbeiros, cirurgiões, acendedores de lampiões, varredores de rua e vendedores ambulantes” (2008, p. 48). Além de “cocheiros, barbeiros, tocadores de realejo, músicos, quitandeiros, barqueiros, pescadores, caçadores e ‘naturalistas’”. Gorender elenca ainda, com base nos relatos de Ewbank, os ofícios de “carpinteiros, pedreiros, calceteiros, impressores, pintores de tabuleta e ornamentação, construtores de móveis e carruagens, fabricantes de ornamentos militares, de lampiões, artífices de objetos de prata, joalheiros, litógrafos, alfaiates, sapateiros, cabelereiros, curtidores, ferreiros, ferradores, etc.” (1980, p. 454).
Em primeiro lugar, devemos abordar o significado da escravidão urbana no interior do escravismo colonial. Segundo Gorender, os “escravos urbanos [têm] uma existência peculiar no âmbito geral do modo de produção escravista colonial” (1980, p. 451). Uma vez que o escravismo moderno se voltava para a produção de mercadorias no campo, decorre que, na formação social brasileira, a posse de escravizados se torna imperativo de diferenciação e status social, o que explica e justifica sua presença nas cidades. Para o autor, o trabalho manual era envilecido tanto sob a perspectiva feudal em Portugal, mas mais ainda sob a ideologia escravista no Brasil. Enquanto artesão português, apesar de pertencer a um estrato inferior, não deixava de nutrir algum orgulho e, aqui, “encontravam dignificação na posse de escravos e na demonstração de enfatuado desprezo do trabalho” (p. 454).
Dito isto, é preciso distinguir o significado econômico das atividades produtivas e, finalmente, o caráter do ganho enquanto remuneração. Como característica do período de transição que discutimos, o fato de muitas fábricas empregarem escravizados ao lado de colonos e trabalhadores assalariados condiciona tanto a acumulação quanto a regulação do salário (Siqueira, 1984; Lobo, 1971, p. 252-256), uma vez que o capitalista promovia uma inversão que esterilizava o capital, como definiu Gorender (1980, p. 172-215).15 Ao mesmo tempo, lançava mão do capital variável na remuneração dos trabalhadores livres.
Supondo, no entanto, que estes escravizados fossem alugados, a recomposição do capital investido ficava a cargo do proprietário do escravizado, a partir dos valores tratados semanal ou mensalmente, e o industrial poderia contabilizar todas as despesas com pessoal enquanto capital variável, indistintamente. Nesse caso, é possível afirmar que o empresário promovia um movimento duplo, reiterando, por um lado, uma relação escravista e, por outro, fazendo mover-se o ciclo tipicamente capitalista, em que os trabalhadores livres, os libertos, todos expropriados, eram submetidos formalmente ao capital.
Com o ganho, a situação se altera ligeiramente, e essa complexidade suscitou uma importante discussão no âmbito da historiografia. Estamos de acordo com as conclusões de Leila Algranti (1988, p. 72) e Luiz Carlos Soares (2007, p. 139), que negam a existência de uma “brecha assalariada” no interior da economia escravista. Pensamos que essa posição se confirma se efetuarmos a mesma análise que fizemos para definir o caráter da acumulação numa indústria que se valha do trabalho escravizado. Se levarmos em consideração que o trabalhador escravizado é duplamente expropriado – dos meios de produção e da liberdade de negociar sua força de trabalho – e que a existência de capital e de dinheiro é difusa na cidade, propiciando a instalação de fábricas e oficinas ou a necessidade de transporte de cargas etc., o mercado de trabalho no qual o escravizado ao ganho “negocia” sua remuneração é regulado pelos proprietários.
Não é o escravizado que escolhe “livremente” (ainda que sob uma coerção econômica de expropriado) vender sua força de trabalho, mas o senhor, não encontrando na cidade mais fábricas, oficinas ou demais serviços urbanos ou domésticos em que possa empregar sua propriedade e tendo ele a necessidade de pagar a inversão inicial de seu capital-dinheiro além de obter o seu próprio sustento, impõe, sob o domínio do chicote e das forças públicas de repressão, que o escravizado saia à rua em busca de qualquer atividade que possa remunerá-lo – isto é, ao seu senhor.
Em uma economia em transição, na qual as relações escravistas convivem ou competem com as capitalistas, fica claro que para o empregador (grande empresário ou pequeno comerciante) que contrata o serviço de um trabalhador livre ou aluga o de um escravizado ao ganho, a permanência da escravidão acrescenta à coerção econômica uma não econômica. Enquanto o trabalhador livre está sujeito a vender sua força de trabalho para remunerar-se de modo a reproduzir-se enquanto ser vivente, o escravizado está duplamente obrigado. Regressar à casa de seu senhor sem a quantia estipulada para o dia ou para a semana poderá significar castigos cruéis ou sua negociação para outro amo, fosse na cidade ou no campo.
Nesse momento, advém uma questão: mas, e o pecúlio, instituído oficialmente pela Lei do Ventre Livre de 1871, que garante ao escravizado direito à propriedade, e que já era prática comum extralegal? Aqui temos uma contradição na lógica escravista exatamente porque a lei 2.040, de 28 de setembro, rompe o segundo pilar do modo de produção – a reprodução biológica – anunciando um fim, ainda que sem prazo, da escravidão.16 Contudo, no rol das análises que apresentamos até aqui o pecúlio não se equipara a salário.
Ao permitir que o escravizado disponha de parte do ganho adquirido na rua, em verdade, o senhor transfere parte da sua renda obtida às custas de sua propriedade humana para o próprio escravizado – na forma dinheiro –, que passa, então, a dispor dessa quantia para comprar sua alforria ou adquirir propriedades, inclusive outros escravizados. O fato do escravizado, porventura, repassar ao senhor cada vez menos não altera em nada essa assertiva, pois isso acarreta somente prejuízo para o senhor, que leva mais tempo para repor sua inversão inicial, bem como aumenta a capacidade de sustento do escravizado.
Esse último aspecto chama a atenção para as dimensões do mercado de trabalho, uma vez que o prolongamento da escravidão condicionava o trabalhador livre e, eventualmente, o liberto, a complementar a sua renda por meio da aquisição de um trabalhador escravizado que seria colocado “ao ganho” (Mattos, 2008, p. 37-82). Ou mesmo dispensar, temporária ou permanentemente, a sua própria força de trabalho. Isto é corroborado pelo fato de que a pequena propriedade escrava (até dez escravizados) era a tônica no meio urbano carioca no período entre 1850 e 1888, segundo Luiz Carlos Soares (2007, p. 68-85).
Por isso, dizia Gorender: “O homem livre, cuja pobreza o impedisse de possuir ao menos um escravo, dificilmente escapava da marginalidade. O ócio digno de milhares de escravistas, grandes e pequenos, tinha no reverso o ócio “antissocial” de número muito maior de desclassificados” (1980, p. 461).
Mais uma vez recorrendo a Reis (2019), obtemos uma compreensão um pouco mais dilatada sobre a escravidão e o trabalho livre urbanos, na medida em que o autor confere atenção à atuação dos africanos libertos nas atividades de ganho de Salvador, no segundo e terceiro quartéis do XIX baiano. Não são poucas as passagens em que o historiador vislumbra o ganho como uma dinâmica mais vasta do que o ato do senhorio de dispor de um escravizado que sai às ruas em busca de remuneração diária:
O próprio ganho vinha às vezes de fontes pouco ortodoxas: da exibição de capoeira, do batuque pago, do curandeirismo, da prática de adivinhação, da venda de amuletos, de pequenos furtos. [...] sob a denominação de ganhadores deviam também se abrigar as mais diversas atividades, inclusive o pequeno comércio ambulante e o ofício mecânico. [...] dezenas de ganhadores do mar – chamemos assim aos saveiristas africanos (l.1.025; 1.920; 2.107).
André Nunes de Azevedo avançara um pouco mais e percebera o conjunto dessas dinâmicas como uma “economia da salvação diária”. Sendo outro seu objeto de pesquisa, não levou às últimas consequências a potência interpretativa dessa interessante noção:
Essa realidade de instabilidade e imprevisibilidade econômica, reveladora de uma situação de alta desproteção material, e forte dependência do desempenho diário do sucesso do seu trabalho, gerou o que denominei de ‘economia da salvação diária’, [...] derivada da necessidade, insegurança e precariedade material do trabalhador desafortunado do Rio de Janeiro – que constituía a maioria dos habitantes da cidade. (2018, p. 195)
Faltou a ambos o passo adiante, a compreensão da produção enquanto momento da totalidade, quer dizer, examinar as relações de produção enquanto partes constitutivas de um todo que abrange o mercado de trabalho, as relações sociais, o ordenamento jurídico, a circulação de mercadorias e a inserção do Estado-nação no mercado mundial (Kofler, 2010, p. 55-79).17
O ganho nos ciclos dos capitais
De acordo com Luiz Carlos Soares (2007, p. 421), as licenças apresentadas à Câmara Municipal registravam a seguinte variedade de atividades para os escravos ao ganho: carregadores, cocheiros, serventes de obras e vendedores (de café, carne, fazendas, frutas e legumes, artigos de armarinho, pão e biscoito, peixe e calçados). Além disso, existiam alguns com a designação “ao ganho com cesto” e, como absoluta maioria, “ao ganho”, sem nenhuma especificação. Fato que leva o autor a sugerir que parte considerável deles estaria no transporte de cargas. Ainda segundo ele, seria possível encontrá-los também como barbeiros, tocadores de realejo, quituteiros, quitandeiros, curandeiros e cirurgiões (2007, p. 129-135). Todos explorados ao ganho pelos seus senhores.
Para facilitar a análise, resumimos estas atividades em quatro grandes categorias: comércio (vendedores ambulantes, quitandeiros), transporte (carregadores), serviços (obras de reparo, estética e cura) e pequena produção (quituteiros, costura, edificações). Nossa intenção é compreender o significado econômico de cada uma delas.
Essas categorias estão vinculadas ao debate acerca do trabalho produtivo versus trabalho improdutivo indicada parcialmente acima. Para nosso auxílio, recorremos à compreensão elaborada por Ruy Mauro Marini em uma curta “nota metodológica”.
Ao lembrar que “a reprodução do capital não se esgota na produção, mas compreende a circulação e a distribuição”, Marini caracteriza dessa forma o trabalho no transporte: “A única situação na qual o que aparece como gastos de circulação agrega valor à mercadoria é a do transporte, pela simples razão de que ‘o valor de uso das coisas pode exigir seu deslocamento de lugar e, portanto, o processo adicional de produção da indústria do transporte’”. Contudo, no comércio, o ato de “fazer rentável” certo capital, em específico, o comercial, apesar de fazer do trabalhador um trabalhador produtivo, não agrega valor à mercadoria (2005, p. 198-200).
Essas situações se referem à realidade de um grande capital individual capaz de subsumir a força de trabalho. Isto é, podemos imaginar uma grande loja que arregimenta quantidade expressiva de trabalhadores e quantidade maior ainda de mercadorias a serem comercializadas, bem como uma média ou grande companhia de transportes que organiza o deslocamento dessas mercadorias de seu local de origem até as lojas de comércio, contando com inúmeros trabalhadores e os mais diferentes meios de locomoção. Este não é o nosso caso. Tratamos aqui de trabalhadores individuais, livres ou escravizados, que se prestam a realizar tais atividades. Em que essa explicação de Marini nos auxilia?
Tomemos como exemplo as lojas de “secos e molhados por atacados” existentes na cidade do Rio de Janeiro em 1872. Segundo os anúncios publicados no Almanak Laemmert, a corte contava com 54 casas comerciais desse gênero, 38 delas de proprietários associados. Por outro lado, os estabelecimentos dedicados ao comércio de varejo somavam 1.164 proprietários individuais e ao menos 319 associados. Se lembrarmos que, segundo o recenseamento realizado no mesmo ano, 23.481 pessoas estavam classificadas como “comerciantes, caixeiros e guarda-livros”, 6,5% desse total fazia parte dessa variedade de mercadorias, enquanto patrões. Número relativamente alto se levarmos em consideração que não distinguimos os demais ramos da atividade comercial.18
Esses dados sugerem a dimensão do negócio mercantil vinculado ao consumo direto: apenas 3,51% dos 1.537 armazéns eram de grande porte, trabalhando no atacado, e, dentre eles, apenas 16 (29,62%) de proprietários individuais, o que aponta a necessidade de combinar capitais para a inserção no ramo atacadista. No polo varejista, a proporção se inverte e o capital individual logra a marca de 78,48% de proprietários, fato que denota serem pequenas casas que, muito seguramente, empregavam poucos trabalhadores e trabalhadoras.
Seguindo a orientação de Marini, devemos considerar que o pequeno capital varejista participa, por meio da exploração de seus trabalhadores, da acumulação da qual se origina a mercadoria. Disso, depreende-se, naturalmente, que a atividade mercantil não se opõe a uma produção escravista, ainda que a primeira se realize mediante remuneração monetária. Aqui, se exclusivamente a origem desses artigos for a agricultura baseada na mão de obra escravizada, o lucro do pequeno lojista é parte integrante da renda escravista, não resultando numa acumulação capitalista. Analogamente, se a mercadoria vendável tiver origem na produção industrial ou manufatureira, o lucro mercantil será parte do lucro industrial numa relação capitalista. Finalmente, se a mercadoria derivar de uma produção artesanal, o lucro do comerciante é parte integrante de uma minúscula acumulação que o artesão logra obter.
Até então discorremos sobre os trabalhadores livres e assalariados no comércio. Resta entendermos a situação dos vendedores ambulantes ao ganho – livres e escravizados. Cumpre notar que o censo não registrou absolutamente nenhum trabalhador ou trabalhadora escravizados na categoria de “comerciantes, caixeiros e guarda-livros”. Isto sugere que para o comerciante, de acordo com a lógica que expusemos acima, não era rentável valer-se de mão de obra escravizada num processo sensivelmente reduzido de acumulação que a atividade comercial permitia à época.
No entanto, como afirma Luiz Carlos Soares (2007, p. 125), “o comércio ambulante do Rio de Janeiro apresentava uma grande variedade e quase todas as mercadorias eram vendidas por escravos de ganho pelas ruas da cidade”, além daqueles que improvisavam pequenas barracas ou circulavam com tabuleiros e cestos. Isto significa que aquilo que o recenseamento omitiu na rubrica destinada ao “comércio”, outras fontes revelaram – como as licenças emitidas pela Câmara Municipal, examinadas por Soares –, atestando um diversificado comércio de alimentos, por exemplo, oriundos de uma produção autônoma por parte dos ganhadores e ganhadeiras. Neste caso, livres, libertos e escravizados competiam entre si e com os estabelecimentos no que se refere a sabores, gostos e preços com a finalidade de obter o sustento.
Em relação ao transporte, pelo fato de adicionar valor às mercadorias, como recorda Marini, nos deparamos com uma margem de acumulação mais ampla, se comparada ao pequeno comércio de gêneros alimentícios, por exemplo. O que dizer, porém, dos ganhadores que retiram sua renda dessa atividade?
Incapazes de extrair mais-valor (como faz o grande ou médio capital do setor de transportes), estes trabalhadores, livres ou escravizados, estão sujeitos a competirem (e, ocasionalmente se solidarizarem) pelo máximo de cargas que possam conduzir por uma quantia que, do ponto de vista da acumulação do capital produtivo, era irrisória. Não é sem razão que Debret se espantou “com o costume de transportar enormes fardos à cabeça”, pois qualquer inovação técnica no sistema de transporte urbano de mercadorias “comprometeria dentro de pouco tempo” a existência de “maior parte da população” que dependia dos vinténs que os “negros todas as noites trazem para casa” (apud Gorender, 1980, p. 456).
O relato do cronista francês amplia na estrutura produtiva do ganho um interdito tecnológico para além de sua funcionalidade enquanto mecanismo que dimensionava mercado de trabalho. A existência de um elevado número de escravizados (em 1849 ultrapassou a casa dos cem mil, decaindo com o fim do tráfico e com a comercialização para as zonas cafeeiras) e livres despossuídos na cidade, mas principalmente dos primeiros, impunha à cidade a necessidade de manter “oportunidades” de ganho que justificassem a aplicabilidade da mão de obra escravizada, ou seja, do próprio escravismo no meio urbano.
Sem dúvida, seria na pequena circulação de mercadorias pelas ruas e vielas da corte que o senhorio ao ganho iria obter sua renda numa cidade que crescia continuamente, atraindo, cada vez mais, imigrantes e migrantes (libertos ou livres). Essa constatação se difere das formulações que defendem uma incompatibilidade orgânica entre o escravismo e a absorção do desenvolvimento tecnológico, como já tivemos oportunidade de argumentar (Pimentel, 2022, p. 158-173). Na pequena circulação urbana de mercadorias a questão é outra. E a permanência do escravismo na cidade aprofunda o problema.
Uma vez que a existência de grandes capitais ligados à produção industrial ou manufatureira era relativamente baixa e incapaz de, até o momento (1850 até 1871), enfrentar a pequena ou grande acumulação escravista, o senhorio urbano não poderia renunciar a sua renda, principalmente aqueles que viviam exclusivamente do ganho do escravizado e não possuíam outra ocupação.
Além do comércio ambulante e do transporte, o senhorio e a administração municipal aplicavam a mão de obra escravizada, juntamente com a livre, na realização de serviços urbanos, como abertura e reparo de ruas e calçadas, manutenção de praças e florestas, iluminação, limpeza etc. Não importa muito nos aprofundarmos nesse tema, pois uma grande parcela desses serviços era custeada senão pelo Estado, pela fração mais abastada da sociedade carioca.
Assim, a remuneração devida ao senhorio ou ao trabalhador livre se origina ou da arrecadação fiscal da administração municipal ou do próprio excedente acumulado pelos proprietários (escravistas, capitalistas ou rentistas). Esses serviços compreendem o trabalho improdutivo, como ressalta Marini, que excluía, contudo, os trabalhadores assalariados “cuja remuneração corresponde simplesmente aos gastos da mais-valia, como é o caso do empregado doméstico, do burocrata, os membros do aparato repressivo do Estado” (2005, p. 201).
A exposição de Marini merece objeção no trecho destacado. Estudos recentes liderados por mulheres vinculadas ao materialismo histórico-dialético chamam a atenção para o caráter produtivo do trabalho doméstico. A italiana Silvia Federici sustenta que “os três tomos de O capital foram escritos como se [...] os trabalhadores se reproduzissem no capitalismo simplesmente consumindo os bens comprados com o salário. Tais suposições [...] ignoram o trabalho das mulheres na preparação desses bens de consumo” (2017, p. 12). Isso quer dizer que, enquanto mercadoria que precisa ser recondicionada a transferir valor a uma outra mercadoria, a força de trabalho humana necessita ser produzida e reproduzida.
Ainda segundo Federici, o deslocamento das mulheres para o papel de donas de casa, enquanto “redefinição da família como lugar para a produção da força de trabalho”, criou as condições favoráveis para a institucionalização daquilo que a autora denomina como “patriarcado do salário” (2017, p. 188). Em outras palavras, a presença preferencial dos homens no mercado de trabalho – ao menos nas etapas mais avançadas da revolução industrial – permitirá aos capitalistas remunerar o conjunto da força de trabalho através exclusivamente do salário dos homens, uma vez que, não reconhecendo o trabalho feminino no lar como produtivo, a reprodução da força de trabalho era, portanto, trabalho não pago (p. 193-198).
Com base nesses argumentos, consideramos, então, o “serviço doméstico” como trabalho produtivo, na medida em que garante ao capitalista vivacidade da força de trabalho de modo a extrair mais-valor. No Rio de Janeiro do século XIX, 38.462 mulheres foram arroladas na categoria “serviço doméstico” pelo censo de 1872, 13,98% da população. Dentre elas, 14.184 escravizadas, 28,98% do total de cativos ou 58,96% das mulheres escravizadas. Esses números demonstram, mais uma vez, a concatenação da ideologia escravista de aversão ao trabalho com a submissão das mulheres à realização das tarefas domésticas e dão razão à sugestão de Federici, para quem “o grupo de trabalhadores que, na transição para o capitalismo, mais se aproximou da condição de escravos foram as mulheres trabalhadoras” (2017, p. 195).
Essa discussão nos direciona, finalmente, para a última categoria a ser analisada, a pequena produção artesanal. Tomemos como exemplo as 11.592 costureiras. Ao lado delas devemos colocar os 2.738 operários de edificações, todos homens, e os 1.216 pescadores, que também não contam com nenhuma mulher. Seria preciso ainda destacar dos operários “em vestuário”, que contabilizam 2.519, os 153 alfaiates anunciados pelo Almanak no mesmo ano, 32 deles associados a outros profissionais. Somados, esses quantitativos nos levam a 15.699 pessoas, ou 5,7% da população, dedicada à pequena produção.19
Levando em consideração que se deve aditar a esse nicho porção considerável dos escravizados ao ganho e tantos outros libertos e livres que produzem, artesanalmente, muitas outras mercadorias (quituteiras, por exemplo), suspeitamos que essa cifra se eleve. Segundo Marx, esses trabalhadores e trabalhadoras não estão envolvidos no trabalho produtivo, pois o dinheiro usado na compra de um vestido ou de uma calça não exerce a função de capital, é “simples meio de circulação”. Acompanhemos a conclusão do autor:
É possível que a quantidade de trabalho que o alfaiate me fornece seja maior que a contida no preço que de mim recebe. E isso é mesmo provável, pois o preço de seu trabalho é determinado pelo preço que os alfaiates produtivos recebem. Mas esse assunto não me interessa. Uma vez dado o preço, para mim tanto faz que o alfaiate trabalhe 8 ou 10 horas. Trata-se apenas do valor de uso, a calça, e aí, tanto faz comprá-la de uma maneira ou de outra. (1987, p. 401)
Semelhante compreensão pode ser estendida para os trabalhadores “em edificações” desde que não estejam submetidos como trabalhadores assalariados para micro ou médio empreiteiros e realizem suas construções de forma autônoma. É evidente que convertem trabalho em valor de uso e que este valor de uso – um prédio, um galpão, uma casa – pode adquirir preço muito acima do que originalmente deveriam possuir pelo somatório do dinheiro investido no pagamento dos pedreiros e da compra de material necessário. O que importa aqui não é apontar as razões que levam à especulação imobiliária, mas o fato de que “é possível que a quantidade de trabalho que o alfaiate [ou a costureira, o pedreiro, a quituteira etc.] me fornece seja maior que a contida no preço que de mim recebe”, como destacado acima.
Isso significa que, se de um lado a especulação imobiliária tende a extrair cada vez mais salário dos que vendem sua força de trabalho ou renda e mais-valor daqueles que a exploram, a produção autônoma, para concorrer com a fabril ou industrial, deve rebaixar cada vez mais a remuneração relativa à quantidade de trabalho empregada se quiser manter seu preço competitivo.
Toda essa longa explanação objetivou caracterizar os dois critérios elencados acima – a volatilidade da recomposição da força de trabalho e a razão entre a intensidade do trabalho e sua remuneração – como justificadores da noção de ganho que desenvolvemos neste artigo. Tributa-se a utilização desses critérios ao conceito de superexploração da força de trabalho forjado por Ruy Mauro Marini no âmbito dos seus estudos sobre a dependência, que, em linhas gerais, é definido como um mecanismo de compensação à troca desigual no mercado mundial. Nela compreende-se “o aumento da intensidade do trabalho” pelo reforço da exploração do trabalhador; “a prolongação da jornada de trabalho”, aumentando simplesmente o tempo de trabalho excedente; e, finalmente, uma terceira forma que consiste em “reduzir o consumo do operário mais além do seu limite normal”, que nos acostumamos a chamar de redução do poder de compra, que, de fato, obriga o trabalhador a trabalhar mais a fim de manter certo padrão de consumo (2005, p. 154-155).
Em nosso auxílio, Marini reconhece que a utilização dessas categorias “não implica o suposto de que a economia exportadora latino-americana se baseia já na produção capitalista”. Ainda assim, é importante admitir, como alerta Mathias Luce, o que a superexploração “não é”. Interessa-nos, particularmente, o primeiro item, “persistência de formas antediluvianas do capital”, ou seja, a “existência de formas pré-capitalistas do capital” (2018, p. 136).
Em nosso caso, devemos tratar, portanto, do capital escravista colonial – não necessariamente pré-capitalista, mas não capitalista – como uma dessas formas. Acentuando a distinção entre o trabalho escravizado e o assalariado, especialmente quanto ao caráter desacumulador do dispêndio de capital-dinheiro na aquisição do plantel pelo escravista (Gorender, 1980, p. 207-211), a leitura de Luce implica em considerar que somente com a subsunção real do trabalho ao capital é que se torna “possível produzir a desvalorização real da força de trabalho”, logo superexplorá-la também (2018, p. 137-138).
Visto que o conceito de superexploração se adequa ao grau de exploração da força de trabalho numa economia dependente, é possível então fazer coincidi-lo com a noção de ganho? De largada, descartamos sua aplicação ao trabalho escravizado produtivo, uma vez que Marini assume a lei tendencial da população escravizada – exposta por Gorender (1980, p. 318-332) – de forma comparativa: “a superexploração do escravo, que prolonga sua jornada de trabalho além dos limites fisiológicos admissíveis e redunda necessariamente no esgotamento prematuro, por morte ou invalidez, somente pode acontecer se é possível repor com facilidade a mão de obra desgastada” (2005, p.157). Entretanto, o que se dá com os escravizados ao ganho ou com aqueles alugados às fábricas e indústrias?
Acreditamos que é preciso alargar a noção de superexploração para dar conta da realidade transicional. Suas formas, reorganizadas por Luce, caracterizam-se pelo “pagamento da força de trabalho abaixo de seu valor”, pelo “prolongamento da jornada de trabalho além dos limites normais”, pelo “aumento da intensidade do trabalho além dos limites normais” e pelo “hiato entre o pagamento da força de trabalho e o elemento histórico-moral do valor da força de trabalho” (2018, p. 179).
Apontamos acima que, no caso da indústria que aluga trabalhadores escravizados, quem recebe a remuneração devida, o salário, é o senhorio proprietário do cativo, transformada em renda. Se todos esses mecanismos combinados atuam na exploração daquele escravizado, que afinal de contas transfere valor às matérias-primas tornando-as mercadorias vendáveis, de forma a compensar “o efeito da troca desigual”, teremos razão em afirmar que, de acordo com Marini, “isso permite baixar a composição valor do capital, o que [...] faz com que se elevem simultaneamente as taxas de mais-valia e lucro” (2005, p. 156). Portanto, nos deparamos com uma forma transitória de superexploração.
Vale recordar que, neste caso, não estamos na presença de um “capital antediluviano”, mas de um capital capitalista20 que lança mão do uso de mão de obra cativa, muito provavelmente pelo fato de que pode prolongar sua jornada ou aumentar a intensidade de seu trabalho devido a uma coerção extraeconômica. Neste caso, a responsabilidade de “repor a mão de obra desgastada” não é do dono da fábrica, mas do proprietário do escravizado que se contenta em receber a quantia combinada, não se importando com a forma pela qual ela foi adquirida, pelo menos até certo limite.
Não estamos com isso querendo dizer que o escravizado é superexplorado tal qual um trabalhador livre, porém, do ponto de vista da possibilidade de compensar a deterioração dos termos de troca, resultante da condição de dependência, o empregador industrial ou fabril deve proceder pelos mecanismos característicos da superexploração. A conclusão análoga deveremos chegar para todos os trabalhadores e trabalhadoras empregados nos demais setores produtivos. O caráter transitório dessa situação se explica pela eventualidade do senhorio de se ver desfeito de sua propriedade e obrigado a vender sua força de trabalho. Imediatamente, supondo seu emprego no posto ocupado pelo escravizado, ele se submente à condição de superexplorado.
Como conduzir, no entanto, essa discussão no que diz respeito aos trabalhadores não empregados em setores produtivos? Novamente recorremos a Marini quando afirma que “a aplicação excludente do conceito de classe operária aos produtores imediatos de valor de uso é passível de objeção” (2005, p. 196), pois “corresponde a perder de vista o processo global de produção” (p. 201). Isso se justifica pelo fato de que “o operário coletivo compreende diferentes tipos de trabalhadores e se organiza em diferentes estratos, em alguns dos quais seus membros se movem “à margem” dos produtores diretos do valor” (p. 198).
Além disso, “se por um lado, devido ao aumento da produtividade do trabalho, tende a se reduzir a quantidade de trabalhadores ligados diretamente à produção, por outro lado, incrementa-se o número dos trabalhadores empregados na esfera da circulação e da distribuição” (Marini, 2005, p. 202). O processo global de produção deve incluir, portanto, aqueles produtores diretos de valor de uso, mesmo que estes não valorizem o capital.
No nosso caso, resgatemos o exemplo das costureiras e dos alfaiates – que pode ser estendido para as demais atividades artesanais que secundam a agricultura (quituteiras e doceiras) ou a indústria (artigos de decoração etc.). Supondo que todos eles adquiram sua matéria-prima – um tecido, frutas, placas de ferro etc. – e imprimam sua força de trabalho na produção de uma nova mercadoria que, estabelecida a um preço competitivo, deve reproduzir sua força de trabalho, como são então superexplorados?
Julgamos que pela deterioração dos termos de troca, via preços, no âmbito do trabalho individual. Imaginemos uma costureira que adquire um tecido e demais materiais necessários à sua arte a 5$. Com esta peça ela é capaz de produzir um vestido e vendê-lo no valor de 6$; a diferença de 1$, portanto, remunera sua força de trabalho. Suponhamos agora que, devido a diversos fatores como taxa de câmbio etc., este mesmo material passe a custar 5$500. Impedida de transferir ao consumidor a elevação do custo de produção por completo, esta mesma costureira tabela seus vestidos à 6$250.
Enquanto para o fabricante do tecido e demais artigos necessários à produção do vestido houve um acréscimo de 10% em seu lucro – desde que não haja outros fatores que interfiram em sua formação – e para o consumidor 4,16% do preço, para a costureira, sua remuneração reduziu-se em 25%, isto é, de mil réis para $750. Que opções restam à costureira? Para recuperar parte de sua renda perdida, ela deve justamente aumentar sua jornada de trabalho ou intensificá-la, produzindo, em ambos os casos, mais vestidos. Fato este que, de acordo com a demanda, não é tão seguro assim. Em outras palavras, do ponto de vista do “processo global de produção”, ela superexplora a si mesma.
Considerações finais: um marco teórico para o ganho?
Se o “operário coletivo” de Marini está para além do operário da fábrica que gera mais-valor absoluto ou relativo, a superexploração deve exceder sua aplicabilidade ao chão da indústria de modo a dar conta da produção individual. Deste modo, ganho é uma proposição para a compreensão da estrutura produtiva e social urbana que leva em conta a superexploração em seus diversos níveis e caracteres transitórios numa economia periférica, na qual um modo de produção, o escravismo colonial, cedia lugar a outro, o capitalismo dependente.
Assim, nossa opção pela vinculação teórico-metodológica a estas linhas de análise se dá pelo entendimento de que o caminho percorrido pela historiografia pós-1980, ainda que tenha aberto um vasto leque de compreensão do cotidiano e das formas multifacetadas de relações sociais, de trabalho e de poder, pode encontrar nos referidos estudos das décadas anteriores um suporte teórico capaz de engendrar novas interpretações.
Diante do exposto, somos capazes de aditar que o ganho, na qualidade de remuneração monetária diária, se origina de variados ciclos que têm em comum o espaço urbano de circulação do equivalente universal da troca, o dinheiro, como meio de pagamento. No ciclo escravista da plantagem, por exemplo, é a percentagem do transporte por carregadores de sacas, previamente calculada no preço final da mercadoria, acrescendo seu valor.
Por outro lado, no comércio varejista de rua (alimentos, pequenos objetos ou “fontes pouco ortodoxas”), pode captar tanto a massa salarial de operários e outros trabalhadores e trabalhadoras que recebem um “ordenado”, quanto a própria renda escravista (de grandes ou pequenos proprietários) e imobiliária, e mais-valores não transformados em lucro dos grandes “capitalistas”.
Finalmente, ainda absorvendo salário, renda e mais-valores, o ganho pode surgir de pequenas produções de subsistência, artes, como a capoeira, e modestos serviços como os barbeiros e mezinheiros. A existência de uma grande parcela da população vivendo ao ganho – e destes ganhadores e ganhadeiras uma considerável fração produzindo diretamente valores de uso –, associada à acumulação privada do escravismo e do emergente capitalismo, gera um circuito vicioso no qual a capacidade consumidora do mercado urbano é constrangida pela remuneração abaixo do valor da reprodução da força de trabalho (a própria superexploração), por um lado, e pelo frequente barateamento da oferta de produtos e serviços “populares”, por outro.
Nesse artigo, apresentamos argumentos e conclusões preliminares que caracterizam o ganho como mecanismo dilatado de sobrevivência entre os setores mais oprimidos da classe trabalhadora que ou estava sob o jugo escravista ou não obtinha remuneração regular nos postos assalariados. A permanência de um enorme contingente da população atual vivendo na “informalidade” nos leva a questionar as razões da sobrevivência de uma dinâmica que não sendo exclusiva do escravismo, tampouco do capitalismo, mas ao mesmo tempo inerente a ambos, parece guardar relações intrínsecas com o chamado exército de mão de obra de reserva e o caráter exponencialmente urbano da vida social.
No trecho final da escravidão, João José Reis (2019, l.4.789) observou para Salvador que as “mudanças estruturais na economia” e a “conjuntura econômica depressiva da década de 1880” provocariam um espraiamento do trabalho urbano de rua, em dois sentidos. Em primeiro lugar, o deslocamento de antigos escravizados das zonas rurais para a zona urbana ampliaria o contingente de ganhadores, levando a Câmara Municipal a um exaustivo esforço de matricular e organizar todos os ganhadores, agora em elevado número, num detalhado Livro de matrícula. Reis anota a forte presença de africanos ou brasileiros, contudo “pretos” e “pardos” em sua maioria. Em paralelo, no Rio de Janeiro, serão os imigrantes, sobretudo os portugueses, que cumprirão função semelhante aos migrantes baianos. De acordo com o levantamento de Juliana Farias (2015, p. 156), 42,1% dos ganhadores livres matriculados entre 1879 e 1885 eram portugueses, 13,2% italianos e 9% espanhóis; africanos somavam 28,4%, restando aos brasileiros 6,8%.
Em segundo lugar, e como decorrência do crescimento populacional oriundo de diversas “fontes”, o trabalho de ganhador se torna condição em que o indivíduo, ainda que treinado num ofício específico, está em permanente procura de um ganho diário: “Os muitos sapateiros, alfaiates, seleiros, empalhadores, chapeleiros e cordoeiros — todas profissões listadas em 1887 — podiam, enquanto esperavam carrego, dedicar-se a consertar ou confeccionar sapatos, roupas, selas, esteiras, cestos e chapéus no local mesmo onde se reuniam” (Reis, 2019, l.4.770).
Parece-nos que esse fenômeno se precipita na cidade do Rio de Janeiro décadas antes do que João Reis percebe para a antiga capital: tal dinâmica expressaria “a volatilidade do emprego fixo na Salvador daquele tempo”, isto é, as duas últimas décadas do século XIX (Reis, 2019, l.4.765, grifos nossos). Para o Rio, o constante afluxo de imigrantes não aguardaria a mudança estrutural da economia para alargar a quota dos “sem profissão”... ou seriam “operários”?
Mais ganho do que ganhadores, aqueles que se dedicavam exclusivamente a mercadejar passarão a ser denominados pelo poder público como ambulantes. A postura de 2 de março de 1886 delimitava que o “serviço de ganhador” feito ainda sob matrícula e licença correspondia ao “ato ... de conduzir”; seu objetivo, assim como as posturas promulgadas em Salvador e que teriam levado à “greve negra” de 1857, era coibir e controlar, identificando os responsáveis por possíveis extravios da “carga”. Apenas um ano e meio após a Abolição, em 17 de dezembro de 1889, ainda “sobre a exibição de licenças ao público”, os dedicados aos “negócios ambulantes, engraxadores, etc.” deveriam exibir “permanentemente” suas autorizações, “em lugar visível”, tais como “em cima das caixas, taboletas etc.”. Já em 1893, numa “circular dirigida aos agentes da Prefeitura”, o prefeito Henrique Valadares chama “a vossa atenção para a fiel execução das posturas relativas a amostras e toldos nas casas de negócio e mercadores ambulantes”.21
No clímax da transição, os ambulantes seriam, afinal, todos eles ganhadores e ganhadeiras. Livres e despossuídos, tornam-se alvos das regulações dos aparelhos estatais. Muito antes de o “prefeito bota-abaixo” investir firmemente na normatização da estética e do asseio urbanos, a Câmara Municipal e o Senado, e outros chefes do executivo municipal, já haviam proibido “rolar pelas ruas pipas, tonéis e barris, vazios ou cheios” (dec. 18 nov. 1874), “todos os jogos de parada ou aposta” em casas públicas (dec. 9 mar. 1875, ratificado em 4 abr. 1884); licenciado e uniformizado o transporte de café (dec. 29 nov. 1876); limitado a criação de porcos (dec. 5 dez. 1876) a “uma linha que abranja em seus limites extremos o campo de S. Cristóvão, a rua de S. Francisco Xavier do Engenho Velho, e a rua da Real Grandeza e largo dos Leões na freguesia de S. João Baptista da Lagoa, inclusive os morros situados neste perímetro”; e tornado “sujeitos os seus donos ou mercadores à apreensão e inutilização dos ditos gêneros” caso vendessem carne verde ou peixes frescos “pelas ruas ou lugares próprios” após o meio-dia (dec. 25 nov. 1), legislações que, sem dúvida, dificultavam a “salvação diária” do ganho.22
O mais importante, contudo, é que a mediação realizada cada vez mais pelo Estado como agente da dominação de classe em substituição ao senhorio que desaparecia – e, por isso, o papel crescentemente destacado da polícia como fiscalizadora dos misteres de rua em detrimento dos agentes civis da Câmara (art. 2º do dec. 2 mar. 1886), tal como ocorrera em Salvador – fora acompanhada de medidas que abriam “espaço para a exploração do abastecimento alimentar da população pelo grande capital comercial, ligado ao poderoso comércio atacadista do Rio e ao capital estrangeiro”, como anotou Jaime Benchimol (1992, p. 283). E, de fato, não exclusivamente à alimentação, mas também a diversos serviços urbanos (lixo, esgoto, transporte de cargas e pessoas), que iam, gradativamente, passando da coletividade difusa e estagnada tecnologicamente dos ganhadores para a individualidade monopolista de empresários e companhias que, ainda que precisassem assalariar condutores, cocheiros e outros profissionais, não o faziam certamente na mesma quantidade em que os retiravam das ruas e do ganho.
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Recebido em 30/10/2023
Aprovado em 30/4/2024
Notas
1 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, ano 49, n. 4, 4 jan. 1870, p. 6. Disponível em: https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=364568_06&pagfis=17.
2 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro para o Ano de 1870. Redigido por Carlos Guilherme Haring... Fundado por Eduardo von Laemmert... Vigésimo-Sétimo Ano. Segunda série XIX. Rio de Janeiro: Em casa dos editores-proprietários Eduardo & Henrique Laemmert, 1870, p. 687. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=313394x&pagfis=30499.
3 Código de posturas da Ilustríssima Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Emp. Tip. Dois de Dezembro de P. Brito Impressor da Casa Imperial, 1854, p. 65-66. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008523&bbm/3880#page/6/mode/2up. Acesso em: 5 ago. 2024.
4 IMPÉRIO DO BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento geral da população do Império do Brasil a que se procedeu no dia primeiro de agosto de 1872. v. 5. Município Neutro. Rio de Janeiro: Diretoria Geral de Estatística, 1876, p. 61.
5 O termo “artista” não possuía o sentido contemporâneo como aqueles que vivem das artes plásticas ou teatrais, mas referia-se ao conjunto de trabalhadores das chamadas “artes e ofícios”, que denota, em 1872, o momento ainda artesanal, pré-industrial (e mesmo pré-manufatureiro) da fabricação nacional. Como entre eles havia 498 escravizados, entendemos se tratar, de fato, de produção mercantil.
6 Destaca-se que as informações acerca das profissões fornecidas aos recenseadores não significavam estar empregado regularmente no momento do levantamento.
7 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, ano 49, n. 123, 06 maio 1870, p. 2. Disponível: https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=364568_06&pagfis=584.
8 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, ano 49, n. 9, 09 jan. 1870, p. 8. Disponível: https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=364568_06&pagfis=50.
9 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, ano 49, n. 128, 11 maio 1870, p. 4. Disponível: https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=364568_06&pagfis=619. Acesso em 15 out. 2018.
10 O Auxiliador da Indústria Nacional: Ou Coleção de memórias e notícias interessantes. Rio de Janeiro, 1881, p. 277. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/302295/per302295_1881_00001.pdf.
11 Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano 43, n. 274, 7 out. 1863, p. 3. Disponível em: https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=094170_02&pagfis=17663.
12 Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, ano 2, n. 121, 2 maio 1876, p. 3. Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/103730/per103730_1876_00121.pdf.
13 Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano 40, n. 272. 28 dez. 1860, p. 2. Correspondências, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=094170_02&pagfis=14238.
14 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, ano 49, n. 1, 1 jan. 1870, p. 6. Disponível em: https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=364568_06&pagfis=6.
15 Isto é, os fundos gastos na compra do escravizado só poderiam ser recuperados pelo senhorio através da apropriação do trabalho excedente. Estudos recentes (Penna, 2023, p. 229-261) revelam que a propriedade de escravizados servia de garantia para empréstimos, hipotecas, letras e outras formas de crédito (como as penhoras judiciais), especialmente no meio urbano. Fato este que permitiria ao escravista reaver a quantia utilizada na aquisição do trabalhador. Entretanto, para a teoria econômica, isso não anula o significado da inversão inicial enquanto esterilização do capital, uma vez que era somente à custa do sobretrabalho do escravizado que o proprietário poderia saldar a dívida contraída e descontar gasto inicial.
16 Interessante investigação sobre o fim do princípio romano do partus sequitur ventrem pode ser encontrada em Santos (2016). Já uma minuciosa análise do significado mais amplo da Lei do Ventre Livre está em Saes (1985).
17 Atenção ao trabalho urbano não regular como principal fonte de renda também pode ser encontrada em realidades socioeconômicas distintas do escravismo brasileiro, como em Scholliers; Schhwarz (2003); Fontaine (2014).
18 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e da Capital da Província do Rio de Janeiro com os Municípios de Campos e de Santos para o Ano de 1872. Rio de Janeiro: em casa dos proprietários E. & H. Laemmert, 1872, p. 589-619. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/titles/88#?c=4&m=0&s=0&cv=0&r=0&xywh=-1659%2C-198%2C5588%2C3942.
19 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e da Capital da Província do Rio de Janeiro com os Municípios de Campos e de Santos para o Ano de 1872. Rio de Janeiro: em casa dos proprietários E. & H. Laemmert, 1872, p. 673-676. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/titles/88#?c=4&m=0&s=0&cv=0&r=0&xywh=-1659%2C-198%2C5588%2C3942.
20 A aparente redundância se justifica pela necessidade de diferenciar o capital escravista do capitalista, ou, mais apropriadamente, os distintos ciclos.
21 Código de posturas. Leis, decretos, editais e resoluções da Intendência Municipal do Distrito Federal. Compilação feita por ordem da Prefeitura, pela repartição do Arquivo Geral. Prefeito Dr. Henrique Valadares. Diretor-Arquivista Melo Moraes Filho. Rio de Janeiro: Papelaria e Tipografia Mont’Alverne, 1894, p. 281-282; 298-299; 413-414.
22 Ibid., p. 225; 226; 274; 241; 243; 278-279.
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