Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, maio/ago. 2024
Memória e história: potências e tensões nos usos de acervos privados | Resenha
O Rio de Janeiro no século XXI: desafios para um desenvolvimento inclusivo e sustentável
Rio de Janeiro in the 21st century: challenges for inclusive and sustainable development / Río de Janeiro en el siglo XXI: retos para un desarrollo inclusivo y sostenible
Mário Jorge de Paiva
Doutor, mestre, licenciado e bacharel em Ciências Sociais pela PUC-Rio e professor da rede estadual de São Paulo.
ISMAEL, Ricardo et al. O Rio de Janeiro no século XXI: desafios para um desenvolvimento inclusivo e sustentável. Rio de Janeiro: Anagramma, 2022.
O livro que apresentamos é um compilado de textos dos membros do Núcleo de Estudos sobre Federalismo, Política e Desenvolvimento (Nufepd), coordenado pelo professor Ricardo Ismael, do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Reunindo pesquisadores com diferentes temas, aportes e interesses, a obra se releva bastante rica, ao tratar diversos aspectos de um mesmo objeto de estudo, no caso, o estado do Rio de Janeiro. Inicia com dois textos de apresentação, um da professora Aspásia Camargo, outro de Ricardo Ismael, e, na sequência, traz dez artigos.
Os destaques positivos, em nossa leitura, envolvem os textos escritos por Gustavo Cravo, Gabriel Rezende e Azevedo e Ismael. Azevedo e Ismael é interessante por ser o único que propõe um conceito novo para análise do tema. Já Cravo e Rezende nos chamam a atenção por causa de nossos próprios interesses de investigação, sendo esses textos os que mais dialogam com nossos aportes e questões. Nesses termos, vale apontar que já trabalhamos com Cravo na chave da sociologia da educação (cf. Azevedo; Paiva, 2022). E o texto de Rezende discute com nossas pesquisas sobre nova direita (cf. Paiva, 2021; 2024; Azevedo; Paiva, 2022).
O primeiro artigo, “Mulher e política: a desigualdade de representação política no Rio de Janeiro”, de Alessandra Monteiro de Castro, é uma frutífera análise sobre a baixa representação feminina no estado, como o título diz. Alessandra aponta que existe ainda uma reduzida participação de mulheres na política no Brasil, apresentando, o país, o 140º lugar no ranking de representação feminina no parlamento, superando apenas Belize (169º) e Haiti (186º) na América Latina. A autora debate aspectos da divisão sexual do trabalho e uma ideologia naturalista, que destina o universo feminino ao frágil e ao privado, existindo diferentes tipos de violência contra mulheres. Aponta que não basta eleger mulheres, mas que elas devem ser comprometidas com pautas femininas. Elucida também, por exemplo, que o movimento feminista possui dificuldades para se conectar com o ativismo de mulheres cristãs conservadoras, o que, inevitavelmente, leva ao debate sobre o poder político dos quadros evangélicos no Rio de Janeiro. Igualmente, discute a lei das cotas para mulheres, inicialmente a lei n. 9.100, de 1995. Essa obrigatoriedade percentual feminina, mesmo tendo seu lado positivo, não resolveu o problema por si só; existem, por exemplo, candidaturas laranjas de mulheres, sem nenhuma intenção real de ganharem. Suscitaram comentários, também, as ex-governadoras Benedita da Silva e Rosinha Garotinho.
O próximo artigo, “Instituições como bússolas na gestão de políticas públicas”, de Ana Luísa Vieira de Azevedo e Ricardo Ismael, discute o conceito proposto de instituições bússolas, sugerindo aplicá-lo ao Instituto de Segurança Pública (ISP). Há uma discussão sobre o ciclo de políticas públicas e como no Brasil existe uma disparidade na qualidade e na disponibilidade de dados sobre segurança, que se somam aos entraves institucionais e mesmo da cultura organizacional. Instituições bússolas são espaços técnicos para tomada de decisões, visando o bem público, e envolvem elementos como transparência, prestação de contas, produção de dados estatísticos, uso de bons recursos tecnológicos, continuidade administrativa, relações institucionais etc. (Ismael et al., 2022, p. 62-63). O ISP ainda é uma instituição jovem, porém parece se encaixar no perfil elencado de instituição inteligente, ao lado, por exemplo, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em “A preservação do patrimônio histórico e cultural como dimensão do desenvolvimento inclusivo e sustentável”, Felipe Pereira apresenta uma discussão sobre patrimônio cultural. Seus resultados de pesquisa, envolvendo o PAC Cidades Históricas (PAC CH), apontam para obras paradas, falta de recursos etc., principalmente com o governo de Jair Bolsonaro, a partir de 2019. Relembra, por exemplo, o incêndio no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2018, e como ele não é um fato, em si, isolado. Embora a tarefa de preservação seja responsabilidade das três esferas do poder – federal, estadual, municipal –, o que vemos é um baixo grau de implantação dos projetos no Rio de Janeiro, por diferentes fatores. O autor vê a crise como modelo, em um novo paradigma reducionista, flertando com uma regulação moral da cultura e primazia ideológica excludente (Ismael et al., 2022, p. 134).
Gabriel Rezende, em “A crise representativa e a ascensão política dos evangélicos no estado do Rio de Janeiro”, discute uma crise da democracia liberal e o decréscimo da confiança nos representantes políticos, em uma velha dicotomia de nós, o povo, contra eles, as elites corruptas. Esse quadro de corrupção e problemas no estado abriu portas para novos atores sociais entrarem no cenário político, pois, como Rezende aponta (Ismael et al., 2022, p. 155), não há vácuo de poder. Um contexto que não é, necessariamente, de inovação, mas um deslocamento, e que contribuiu para a vitória de Marcelo Crivella em 2016, para a prefeitura, e de Witzel, um juiz federal desconhecido, para o cargo de governador em 2018.
O autor fala de uma fratura na hegemonia estabelecida pós-redemocratização, apontando dados, contundentes, sobre uma perda de confiança da população em certas forças políticas. O Ministério Público perdeu 22 pontos percentuais de confiança, e mesmo o governo federal caiu 23 pontos, de 2014 a 2017. Esse tipo de quadro fortalece o discurso do nós versus eles, polarizado, o que, como o autor mostra (Ismael et al., 2022, p. 163), corroborou para a emergência de partidos e políticos radicais, envolvendo medo e pânico moral, que exploram ambiguidades e distorcem fatos e informações. É algo que emerge como reação contra transformações socioculturais que o Brasil experimentou, com uma abertura e intensificação de políticas públicas direcionadas aos direitos humanos e de gênero (Ismael et al., 2022, p. 165). Sobre a questão de gênero, aqui acreditamos que pode haver interessante discussão, por exemplo, com os trabalhos de Alexandre Bortolini (2020). É um quadro capaz de esgarçar e abrir espaço para intolerância e polarização (Ismael et al., 2022, p. 165). Rezende não menciona isso, mas vale lembrar como Olavo de Carvalho foi um grande mentor dessa nova direita radical no Brasil. Carvalho dizia, por exemplo, ser mentira que gays são marginalizados e perseguidos (Paiva, 2024), e colocava em questão até o formato do planeta (Paiva, 2021, p. 16).
O artigo de Getulio Fidelis, “O Rio de Janeiro como um pêndulo”, discute parcerias entre a União e o Rio de Janeiro, cooperação intergovernamental, que não necessariamente legou profundas melhoras estruturais ao Rio, recentemente. Fala o autor de todo o problema econômico e social existente hoje, e lembra como, em 2016, o governador em exercício, Francisco Dornelles, decretou estado de calamidade pública, sendo necessário um grande aporte federal, uma doação de 2,9 bilhões de reais, para o Rio manter seu funcionamento normal. Logo, o estado seria quase eternamente dependente de recursos federais, mesmo sendo uma unidade da federação com grande potencial de desenvolvimento econômico.
“A oferta de ensino médio pela rede pública estadual do Rio de Janeiro”, artigo de Gustavo Cravo de Azevedo, traz um amplo panorama da educação, fazendo uma análise quantitativa e qualitativa muito rica, que conclui por uma melhora, mesmo que uma série de questões continue. Lembra Cravo, aportado em Marcelo Burgos, como a popularização da escola é um fenômeno recente, e isso, claro, acarretou vários desafios. Há repetência, um percentual considerável de professores sem licenciatura em suas áreas, alto índice de adoecimento dos docentes etc.
O artigo de Lucas Nasra, “O novo modelo de concessão do serviço de esgotamento sanitário no estado do Rio de Janeiro”, trata de problemas graves nos serviços de coleta e tratamento de esgotamento sanitário – no Rio apenas 66,9% da população possui acesso aos serviços. Estamos falando de falta de acesso aos serviços fundamentais para uma vida digna, em um entrave para o desenvolvimento sustentável (Ismael et al., 2022, p. 226). Logo, falta capacidade dos poderes de acompanharem tais formas de ocupação, informal e irregular, com obras de infraestrutura (Ismael et al., 2022, p. 227). O artigo se dedica, mormente, a uma comparação de eventos legais existentes em 2012 e no modelo que se está tentando pôr em prática agora. Assim, o foco maior de Nasra é comparar o contrato de concessão, de 2012, com a minuta dos firmados no ano de 2021 (Ismael et al., 2022, p. 230). Esse novo marco trouxe uma série de mudanças, como, por exemplo, o saneamento básico ser competência exclusiva do estado, e alguns avanços para se levar serviços básicos aos espaços de loteamento irregular e favelas, mesmo que seja uma análise preliminar.
“Articulação entre educação básica e ensino superior no Rio de Janeiro”, de Marcella Coelho Andrade, aborda a questão da educação, dando principal enfoque ao nível superior e ao Rio de Janeiro. O Rio é um polo de ensino superior, mesmo com sérios problemas na educação básica, como já visto. Nesses termos, é necessária uma reflexão sobre como transformar essa qualidade de ensino, esse polo científico, em algo que não esteja só restrito aos segmentos universitários. E como fortalecer, por exemplo, o elo entre universidades e indústrias, em uma possível parceria entre instituições de ensino superior, poder público e indústrias.
O texto de Paula Azem, “Políticas de transportes de passageiros para a região metropolitana do estado do Rio de Janeiro”, também se revela bem interessante, por ser uma leitura ampla do cenário dos transportes no Rio de Janeiro, falando de sua história e de suas diferentes modalidades. Mostra como os transportes foram afetados profundamente pela pandemia de Covid-19, sendo que mesmo depois da pior fase do vírus, o índice de usuários desses serviços continuou bem abaixo do elemento modal antes existente, logo a crise continua. Fala a autora de um novo normal, e coloca questões de urgência, que, ao serem resolvidas, podem ser uma forma de modernização e avanço inteligente nessa agenda de melhoria dos transportes.
O último artigo, de Ruth Espínola Soriano de Mello, “Mulheres e o empreendedorismo de propósito socioambiental positivo”, é uma ampla análise sobre o quadro de mulheres no mercado de trabalho, trazendo também uma diferenciação conceitual de alguns modelos, sendo que esses empreendimentos socioambientais positivos são um campo para desenvolvimentos interessantes. A autora possui uma bibliografia significativa, e levanta pontos de máxima relevância, como no começo do texto, ao discutir como o Brasil não é um país pobre, entretanto possui uma massa de população pobre com vidas indignas, com diferenças abissais de renda e um legado histórico de injustiças sociais.
Mello aborda liberdade como algo em diálogo com a efetivação da justiça social, em uma chave ligada aos aportes analíticos de Amartya Sen, discorrendo sobre liberdades instrumentais, as quais potencializam a liberdade humana; desenvolvimento como eliminação de privações, que minam escolhas e oportunidades dos sujeitos. Sendo a pobreza uma privação de capacidades básicas, não é somente uma renda inferior. Dando sequência a essa discussão, entra no tópico das desigualdades de gênero. A questão é relevante, por exemplo, pelo fato de que hoje 34 milhões de mulheres são responsáveis, no Brasil, pela renda de suas famílias. E não é raro que elas sejam menos reconhecidas e vivenciem obstáculos maiores no desenvolvimento de suas carreiras. A autora coloca que há mulheres que terminam demandando flexibilidade na jornada laboral, pois também exercem trabalhos domésticos per se e de cuidado da alteridade, filhos, idosos, enfermos etc. Também aponta os custos econômicos da desigualdade de gênero, porque sua eliminação acarretaria um esperado crescimento econômico. Mello menciona um possível crescimento de até 35% do PIB (Ismael et al., 2022, p. 317). Enfim, não podemos tratar de todos os elementos construtivos e interessantes, mas vale resumir como há entraves ao empoderamento feminino e ao empreendedorismo, que ao serem discutidos, problematizados, abrem espaço para potências criativas e econômicas.
O livro, como visto, é bastante amplo. Serve de aporte para diferentes temas referentes a políticas públicas e ao Rio de Janeiro. Há algumas pequenas questões de revisão e edição, mas, obviamente, o saldo final é positivo. E o Nufepd soube mostrar bem sua relevância, enquanto grupo que possui potência para crescer e muito produzir nos próximos anos.
Como crítica – esse é igualmente o papel de uma resenha –, vale mencionar que, em alguns momentos, o grupo poderia abordar mais proposições pragmáticas. O que queremos dizer? Algumas conclusões são bem consensuais, mas que meios poderiam ser usados, empiricamente, para se chegar a elas? Que uma gestão moderna, competente, sem corrupção, técnica é algo bom, por exemplo, parece consensual; ou que devemos defender o patrimônio arquitetônico, combater radicalismos etc. Mas o que pode ser feito, como meios, para desenvolver melhor, por exemplo, esse modelo técnico, diante dos problemas institucionais, culturais e econômicos existentes? Essa seria nossa maior provocação, em algumas partes, diante de certas passagens mais normativas.
Referências
AZEVEDO, Gustavo Cravo de; PAIVA, Mário Jorge de. Introdução para uma análise sobre o pensamento conservador brasileiro no período mais recente da presença obrigatória da Sociologia no Ensino Médio (2008-2018). Educação Unisinos, v. 26, p. 1-13, 2022.
BORTOLINI, Alexandre. LGBTQ education, gender ideology and the new far right in Brazil. Clacls Cuny GC, 25 maio 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?fbclid=IwAR2utp5GQ8vm9MXBrcOxGGohiITCd_3KT9VNHaWw94G54sHCcaZSOChUcpM&v=3UAYqg4DKTM&feature=youtu.be. Acesso em: 5 jan. 2021.
ISMAEL, Ricardo et al. O Rio de Janeiro no século XXI: desafios para um desenvolvimento inclusivo e sustentável. Rio de Janeiro: Anagramma, 2022.
PAIVA, Mário Jorge de. Olavo de Carvalho e as pautas LGBTI+: análise introdutória do artigo “Mentiras gays”. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 7, n. 22, p. 1-23, 2024.
PAIVA, Mário Jorge de. Introdução ao pensamento conservador do século XX e início do século XXI: das ideias de G. K. Chesterton até a nova direita brasileira. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2021.
Recebida em 24/10/2023
Aprovada em 6/5/2024
Esta obra está licenciada com uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.