Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, maio/ago. 2024

História econômica do Rio de Janeiro | Dossiê temático

Independência, desigualdade e mobilidade social no Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX)

Independence, inequality and social mobility in Rio de Janeiro (first half of the nineteenth century) / Independencia, desigualdad y movilidad social en Río de Janeiro (primera mitad del siglo XIX)

Carlos Alberto Medeiros Lima

Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista de produtividade em pesquisa, nível 2, do CNPq. Professor titular de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil.

carlima3@gmail.com

Resumo

Abordam-se indicadores de grande aumento da desigualdade no Rio de Janeiro por volta de 1820. A pesquisa sobre a desigualdade conduz a abordar igualmente aspectos dos movimentos das populações livre, escravizada, migrante e liberta em localidades selecionadas da cidade, de seus arredores e da província do Rio de Janeiro. Chama a atenção a redução dos vestígios da mobilidade social no núcleo urbano no decorrer do século.

Palavras-chave: desigualdade; mobilidade social; escravidão; migrações; libertos.

Abstract

The article takes into account data showing that inequality was rising rapidly in Rio de Janeiro around the period of Brazilian Independence. Alongside this information, the article deals with indirect data on the evolution of free, slave, migrant and freed populations in selected parishes of the city, of its surroundings and of the province. Research on inequality conduces to pay attention to issues related to the progressive rarefaction in the urban center of signs of ascendant social mobility.

Keywords: inequality; social mobility; slavery; migrations; freedmen.

Resumen

Tomanse en cuenta indicadores de fuerte avance de la desigualdad en Río de Janeiro alrededor de 1820. La investigación de la desigualdad conduce a abordar también datos indirectos para observar los movimientos de las poblaciones libre, esclava, migrante y manumitida en localidades seleccionadas de la ciudad, de sus adyacencias y de la provincia de Río de Janeiro. Llama la atención la progresiva rarefacción de los vestigios de movilidad social ascendente en el núcleo urbano conforme transcurrió el siglo XIX.

Palabras clave: desigualdad; movilidad social; esclavitud; migraciones; manumitidos.

Neste artigo, o objetivo é chamar a atenção para um enorme avanço da desigualdade no Rio de Janeiro durante o processo de Independência política de 1822, ou em seguida a ele. Além de detectá-lo, serão observadas algumas de suas características, o que se fará dando atenção a processos de acumulação (expressos na participação escrava na população, na presença de movimentos de crescimento ou decréscimo desse contingente e em características dessa população, como a masculinidade e o grau provável de dependência do tráfico de africanos). Para isso, serão usados os registros de óbito do Rio de Janeiro e de outros locais da província a fim de preencher de modo imperfeito (mas útil) lacunas de informação censitária. Questões como a da movimentação dos investimentos e fluxos migratórios estiveram implicadas de alguma forma com o avanço da desigualdade, e é por isso que se insistirá tanto na comparação dos dados sobre o Rio de Janeiro com os de outras localidades da província. Trabalhos como os de Alencastro (1988), Brown (1986) e Fragoso e Florentino (2001) conduzem a que se pense no Rio de Janeiro sempre em articulação com sua hinterlândia. Os assentos de sepultamento, por outro lado, serão usados para uma abordagem a respeito da presença de libertos nas populações observadas, enxergando nessa presença um indicador acerca da importância dos mecanismos de mobilidade social.

Expectativas sobre a desigualdade no período

É difícil formular expectativas acerca da desigualdade quanto ao mundo anterior ao capitalismo industrial. O marxismo preferiu, historicamente, acentuar as concepções dicotômicas da estratificação (Souza, 2018, p. 43-53), o que o levou por outros caminhos. Mas contribuiu com uma noção importante, ao indicar que, nas situações pré-capitalistas, todo ganho era renda, isto é, poder e monopólio sobre alguma coisa:

À diferença do que ocorre sob o capitalismo, nas condições pré-capitalistas a renda e a mais-valia são idênticas; portanto, a renda não é neste caso uma renda do solo; inclui também o resultado do exercício do poder de coação extra-econômica sobre trabalhadores submetidos a diversas formas e graus de dependência pessoal. (Cardoso, 1982, p. 53, grifo do autor)

Para quem busca insights sobre a desigualdade, o que aparece em trechos como esse é a expectativa da vigência no passado de altíssimos patamares de iniquidade.

Inversamente, há algo nas formulações mais próximas do marxismo que faz esperar níveis menos elevados de disparidade de condições entre pessoas livres. É o que transparece quando se discute ter-se tratado de sociedades de pequenos produtores, em alguma medida, e essa medida não é vista como pequena nem mesmo quando a reflexão focaliza sociedades escravistas. Até quanto a esse tipo de sociedade se aponta para a magnitude da população livre e, portanto, da pequena produção – lembre-se a proverbial maioria livre de quase todas as sociedades escravistas não caribenhas (Florentino, 2009, p. 72; Finley, 1991). Esse fato faz esperar níveis de desigualdade menos elevados entre as pessoas livres.

Outras tradições intelectuais também não conseguem comunicar expectativas mais pacíficas. Para referir uma tese polêmica, a curva de Kuznets associa-se à ideia de que a desigualdade decole juntamente com o início do desenvolvimento econômico (para cair depois).1 Isso implicaria a estimativa de que a iniquidade fosse baixa antes daquele desenvolvimento. A perspectiva de Bértola a respeito da desigualdade no Uruguai parece fazê-lo estimar índices de Gini baixos antes de sua disparada, coincidente com a chamada Primeira Globalização, começada por volta de 1870 (Bértola, 2005). As estimativas de desigualdade funcional de Robert C. Allen (isto é, aquelas feitas dispondo de informações sobre os preços e a participação na renda nacional do trabalho, da terra e do capital) apontam para uma elevação da desigualdade na Inglaterra durante a primeira metade do século XIX, alavancando a Revolução Industrial (Allen, 2009). Isso significa que, antes da disparada da industrialização, a desigualdade era mais baixa, mas também – dado a que se voltará adiante – que a iniquidade variava de modo às vezes muito brusco em prazos extremamente curtos.

Há, no entanto, resultados díspares quanto a essas articulações. Pensando tanto na desigualdade de propriedade quanto na de renda na França entre 1780 e 1880, Piketty enxerga indicadores estacionados mais ou menos no mesmo nível ao longo de todo esse século (Piketty, 2020, p. 130). Mais à frente, no entanto, sumariando um raciocínio mais longo, torna a enunciar os problemas da análise e adianta quanto à desigualdade patrimonial na França:

Essas comparações com os períodos anteriores ao século XIX são difíceis de estabelecer com certeza, de um lado porque os dados disponíveis geralmente incidem sobre cidades ou territórios específicos e nem sempre cobrem toda a população pobre, e de outro porque a própria noção de propriedade era então associada a privilégios legais e jurisdicionais difíceis de quantificar. Seja como for, essas fontes imperfeitas indicam índices de concentração patrimonial sensivelmente mais elevados nos séculos XV-XVIII do que aqueles observados no século XX. (Piketty, 2020, p. 382)

Numa versão, os níveis teriam sido estacionários ao longo do século XIX. Na outra, teriam sido decrescentes.

Scheidel (2020, p. 569) caminha em direção diversa, pensando em trajetos de mais longo prazo: “Quanto mais produtiva uma economia, maior a concentração de recursos nas mãos da minoria que ela consegue sustentar”. Isso condiz com sua noção de que quedas eventualmente substanciais da desigualdade foram sempre resultantes de catástrofes, tais como epidemias, falências do Estado ou guerra generalizada. Mas a dificuldade implícita no questionamento é muito grande. O próprio Scheidel enuncia logo em seguida, em chave próxima a Piketty, embora fazendo referência a período diferente: “O comum foi a Revolução Industrial sustentar as disparidades materiais, ou até intensificá-las ainda mais”, situação verificada tanto nos “países em processo de industrialização quanto nos países produtores de commodities nos séculos XIX e XX” (Scheidel, 2020, p. 571-572). Assim é que, refletindo conjuntamente sobre “os casos de França, Inglaterra, Holanda, Espanha e colônias espanholas na América, por volta de 1800”, escreveu: “Ao que saibamos, a desigualdade era elevada ou crescente em todos esses lugares já fazia algum tempo” (Scheidel, 2020, p. 577).

É possível que dessa dificuldade em obter-se uma expectativa mais assentada a partir de uma bibliografia respeitabilíssima possa resultar uma percepção embaraçosa: a de que os patamares de desigualdade entre pessoas livres tenham sido no passado bem mais variáveis, às vezes no interior de intervalos curtos, do que se costuma pensar. Afinal, como ficou expresso em muitas análises marxistas, as tendências em operação eram contraditórias.

Estimativas realizadas com muito cuidado exibem essa variabilidade extrema. Bértola e Reis, por exemplo, examinando a situação do Rio de Janeiro, mostram índices de Gini variando de 0,300 a 0,400 entre 1839 e 1859, para continuar oscilando para cima e para baixo daí em diante (Bértola et al., 2006, p. 8-11, 17-20). No presente artigo, examinam-se algumas evidências que permitem entrever oscilações semelhantes.

O crescimento econômico ocorrido durante os anos finais do século XVIII2 e no início do seguinte havia aumentado enormemente o tráfico de escravizados e a desigualdade social, o que se cristalizou exatamente na conjuntura da Independência.3 A preponderância mercantil consolidada durante o período colonial tardio provavelmente logrou extremar-se, em face do enorme avanço do tráfico de escravizados e da expansão do comércio, inclusive interno, por sua vez resultante do crescimento econômico (Fragoso; Florentino, 2001). Estudos sobre estruturas de posse de escravizados em São Paulo mostraram avanço na desigualdade na passagem do século e especialmente após a Independência (Motta, 1999, p. 142-143; Luna; Klein, 2005, p. 153-155).

Um dos indicadores usados quanto à disparidade de condições é o índice de Gini da desigualdade da distribuição de patrimônios (como se sabe, ele parte das percentagens acumuladas para descrever a distribuição através de um número; quanto mais próximo de um estiver, maior a iniquidade). O que tem estado à disposição de historiadores é a avaliação da concentração dos patrimônios, o que não é a mesma coisa que a distribuição da renda, especialmente em uma sociedade que contém muitos pequenos produtores, com boa parte deles franca e cruelmente explorados por mecanismos ligados à dominação mercantil (Fragoso, 1992), situação que faz esperar que a desigualdade de renda tenha sido bem maior que a de patrimônios. Mas observar as mudanças, no tempo, da distribuição desses patrimônios ajuda a ver tendências. Acresce que o índice de Gini costuma ser muito marcado pela situação vigente entre os grupamentos intermediários da distribuição, talvez tanto quanto pela distância entre os extremos. Dessa forma, importa muito agregar uma outra medida, relacionando as parcelas dos patrimônios detidas pelo quinto superior e pelo quinto inferior.

Mas, antes, e voltando ao debate sobre a desigualdade, é importante lembrar a caracterização feita por Fragoso e Florentino (2001) do período colonial tardio (estendido até o fim dos anos 1830). O arcaísmo era um projeto porque a persistência do Antigo Regime na estruturação das atividades econômicas, das instituições e das formas de estratificação implicava a preservação de formas aristocráticas e corporativas de dominação, mesmo que encaminhadas por setores da mercancia. Quanto à situação da desigualdade dentro da cidade do Rio, no entanto, esse aporte pode inspirar hipóteses diferentes. Afinal, os autores apontam que os grandes patrimônios podem ter saído da cidade, seguindo o modelo da “esterilização que não esgota”, ou seja, respondendo à impossibilidade de permanecer indefinidamente na atividade comercial por ser esta sujeita a riscos e flutuações enormes; além do mais, seu predomínio era capaz de, no limite, prejudicar as possibilidades de expansão agrária. Assim, era próprio de negociantes coloniais, diante da necessidade de diversificar atividades, ou até mesmo em função da execução das inevitáveis dívidas produzidas por sua atividade preponderante, transitarem também para o agro, contraditoriamente permitindo a continuidade do avanço agrícola. Dessa forma, o extremo superior da distribuição da riqueza poderia estar se ausentando dos dados relativos à cidade do Rio de Janeiro.

No Rio de Janeiro

As informações acerca da distribuição dos patrimônios são congruentes com a possibilidade de que o período da Independência tenha sido momento de realização plena do “arcaísmo como projeto” (Fragoso; Florentino, 2001). Observe-se a Tabela 1, a seguir, onde se resumem informações relevantes acerca dessa distribuição no tocante ao Rio de Janeiro, a que se acrescentaram, como comparação esclarecedora, dados relativos a uma antiga vila canavieira baiana, São Francisco do Conde.

É imediatamente perceptível em ambos os indicadores o quase constante e muito forte crescimento da desigualdade, especialmente a partir de 1810. Se a evolução do índice de Gini é impactante, a da relação entre os maiores e os menores patrimônios é escandalosa. E deve ser notado que se trata da desigualdade entre proprietários, sem levar em conta a muito mais dramática forma de iniquidade expressa nas relações entre livres e escravizados.4 Fragoso (1992, p. 255-256) compulsou informações de inventários post mortem da praça mercantil do Rio e mostrou progressão da desigualdade dos montes brutos entre 1797 e 1830 (anos de 1797-1799, 1810, 1820, 1825 e 1830). Assim é que, em estimativas feitas em associação com Lyman L. Johnson, Zephyr Frank concluiu que o índice de Gini da distribuição da riqueza permaneceu inalterado (e altíssimo) no Rio de Janeiro entre as décadas de 1820 e de 1850 (Johnson; Frank, 2006, p. 663).

Tabela 1 – Índice de Gini e relação entre o quinto mais abastado e o mais depauperado da distribuição (20+ / 20-) – patrimônios inventariados (montes brutos da cidade do Rio de Janeiro, 1805-1832, e montes líquidos estimados de São Francisco do Conde, 1791-1839)

Rio de Janeiro

Período

Índice de Gini

20+ / 20-

1805-1807

0,700

67

1810-1812

0,666

45

1815-1817

0,744

175

1820-1822

0,769

152

1825-1827

0,808

288

1830-1832

0,780

157

São Francisco do Conde, BA

Período

Índice de Gini

20+ / 20-

1791-1802

0,721

64

1803-1807

0,794

62

1808-1828

0,771

79

1829-1839

0,780

302

Fontes: Rio de Janeiro: Inventários post mortem, Rio de Janeiro, 1805-1832, Arquivo Nacional, base de dados disponível para consulta no Liphis/UFRJ em 1997, tendo sido produzida no contexto das pesquisas realizadas para a elaboração de Florentino (1997) e Fragoso (1992). São Francisco do Conde: Lima (2014).

Um dos limites da informação derivada de inventários e partilhas vem da incontornável seletividade no tocante aos livres. Outro, do fato de que as medidas de desigualdade (aqui, não se faz referência aos índices, mas sim à abordagem), em vez de tratarem de indivíduos, hierarquizam unidades vistas como capazes de controlar riqueza ou renda (basicamente, domicílios), atribuindo valores ao conjunto dos residentes de cada uma dessas unidades. Em uma sociedade escravista, isso conduz a uma óbvia dificuldade: o que fazer quanto aos escravizados? Considerá-los beneficiários da riqueza controlada por seus proprietários seria absurdo, expondo uma visão de mundo muito sombria e cruel. Por outro lado, sua existência deve ser considerada para medir as disparidades. Por exemplo: imagine-se uma situação hipotética na qual inexistisse, em dois momentos diversos, qualquer espécie de diferença entre as rendas dos domicílios, mas na qual, paralelamente, aumentasse enormemente entre um momento e o outro a participação de escravizados na população; a medição da desigualdade apontaria para a permanência de disparidades insignificantes entre os domicílios, mas a desigualdade efetiva estaria avançando a passos larguíssimos. Para enfrentar essa situação, não se vê outra saída aqui senão a de pôr em paralelo os indicadores (também eles indiretos) da desigualdade entre os livres e uma medida da evolução da participação dos escravizados na população. É indesejável tentar integrar a presença dos escravizados em um dos índices de desigualdade de patrimônios: eles entrariam na conta duas vezes, sendo uma como ativos e outra como detentores de ativos, ou, antes, de nenhum ou quase nenhum ativo (Johnson; Frank, 2006). Pode-se começar a fazê-lo levando em conta os recenseamentos de 1821 e 1849, sendo impossível deixar de sublinhar o absoluto ineditismo da situação de 1849, já que se está escrevendo sobre a desigualdade: não se tem muita notícia – provavelmente não se tem nenhuma notícia – de um único município abrigando o espantoso contingente de mais de 110 mil escravizados.

Tabela 2 – População do Rio de Janeiro (1821-1849)

Livres e libertos

Escravizados

Participação (%) escravizada no total

1821

78.525

58.553

42,7

1849

155.851

11.0602

41,5

Fontes: Lobo (1978, I, p. 136); Holloway (2008); Florentino (2002, p. 11).

Tomando a cidade em seu conjunto a partir desses censos imperfeitos, a aparência é a de não ter mudado a participação escravizada na população, e apenas se a participação escravizada tivesse diminuído seria possível dizer que indícios de aumento da desigualdade entre livres representariam mera aparência frente aos padrões vigentes no conjunto da sociedade. Participações escravizadas crescentes, mas também as constantes, levam a crer que a iniquidade realmente aumentava. Ainda assim, dados da Candelária permitem matizar essa imagem de participação escravizada constante na população. A Tabela 3 traz informações retiradas dos registros de óbitos da freguesia recém-aludida, do Engenho Velho suburbano (chácaras), de Inhaúma rural e de outras freguesias urbanas em um momento específico. Antes de passar à Tabela 3, no entanto, serão expostos aspectos do uso de registros de óbito para lidar com questões relacionadas à escravidão, aos processos de acumulação, às migrações e à mobilidade social.5

Os sepultamentos fornecem informações que podem suprir, embora com menos qualidade, lacunas derivadas da ausência de dados censitários mais detalhados. Facultam tratar alguns tipos de dado por unidades menores que municípios, como paróquias, o que é frequentemente necessário devido ao enorme tamanho e à consequentemente grande diversidade interna das municipalidades coloniais e do século XIX.

Os óbitos informam alguma coisa sobre características que a população considerada teve em algum momento um pouco anterior. Não se pode precisar o quão anterior era esse momento, mas as indicações são razoavelmente seguras. Um exemplo hipotético (mas encontradiço nos dados utilizados neste artigo): em um ano dado, o número de homens adultos sepultados teria sido bem maior que o de mulheres adultas falecidas; seria possível ter segurança de que, durante algum intervalo anterior àquele ano, houvera mais homens que mulheres naquela população. Caso esse dado seja apontado quanto a uma população escravizada, será possível dizer, sem muitas dúvidas, ter sido ela muito marcada pela presença de africanos, já que o comércio de almas tramitava bem mais homens que mulheres na terrível travessia atlântica. Caso se tratasse de sepultamentos de livres com mais homens adultos que mulheres adultas, a sugestão seria semelhante, só que voltada para processos migratórios voluntários: tanto as migrações internas quanto as intercontinentais haviam sido, durante o Antigo Regime, muito mais masculinas que femininas, e inclusive alguns movimentos do século XIX, como as migrações portuguesas para o Brasil ocorridas após a Independência, continuaram a ser muito marcados pela alta participação de homens e a fraca presença de famílias (ver, por exemplo, Alencastro, 1988).

Uma questão vinculada ao uso dos óbitos de homens e mulheres para obter esse tipo de indicação aproximada é a de que só os óbitos de adultos são passíveis de ser lidos da forma indicada. Entre as crianças de uma população, os números de meninos e meninas são parecidos.

Há outras razões para que se considerem melhores os registros de sepultamento de adultos. Os assentos de óbitos de crianças tinham representatividade muito variável, suspeitando-se aqui de que ela fosse bem menor que a dos assentos de sepultamento de adultos. Pensa-se, inclusive, que isso seria responsável pelo proverbial sub-registro dos óbitos brasileiros.

Apesar de tudo isso, é factível com os sepultamentos comparar populações que não foram recenseadas simultaneamente, ou então obter boas hipóteses a respeito da evolução de populações específicas e circunscritas. Outro exemplo hipotético (com casos encontrados e abordados aqui): os óbitos de escravizados de uma paróquia dobraram de quantidade entre um ano e outro; isso não constitui informação sobre o tamanho da população total em nenhum dos dois anos; mas, não havendo indícios de crescimento ou decrescimento da taxa de mortalidade entre uma data e a outra, isso significa que a população escravizada desse local aumentou. Não sabemos seu tamanho, mas sabemos que aumentou. Já é alguma coisa. O mesmo acontece com a comparação entre paróquias: observando o movimento de óbitos em períodos homogêneos em uma e outra, não se sabe o tamanho da população de nenhuma das duas, mas obtêm-se boas hipóteses sobre as relações entre os contingentes de ambas (caso, como sempre, não haja motivos para imaginar que as taxas de mortalidade tenham sido muito diferentes). Essas comparações devem ser feitas, crê-se aqui, com os movimentos de óbitos de adultos, dadas as razões já indicadas para que se desconfie tanto da completude dos registros de óbitos de infantes quanto da constância dos procedimentos incidentes em sua elaboração.

São possíveis aproximações a dados sobre a participação de escravizados na população, informação relevante para obter uma imagem acerca de processos de acumulação. As taxas de mortalidade eram certamente maiores no tocante a escravizados, se comparados a livres e libertos. Mas as diferenças não eram grandes o suficiente para tornarem impossível entrever a proporção entre os números de cada grupo. Será um pouco dessa forma que se procederá na sequência deste trabalho. Passa-se, então, à análise da Tabela 3, que aponta para a proporção escravizada e para o crescimento da população.

Para tomar as informações indiretas que os óbitos fornecem sobre a população viva é importante evitar eventuais anos de crise de mortalidade. Toma-se, assim, um levantamento feito no século XIX a respeito do movimento anual de óbitos da Candelária (Honorato, 1876) e aplica-se a metodologia de Dupâquier (1979) para a identificação de crises. Nota-se uma supercrise em 1808, provavelmente menos uma crise de mortalidade e mais um sinal de aumento súbito da população, ligado às chegadas de portugueses vinculados à corte joanina no mesmo ano, e crises médias em 1809, 1824, 1825, 1826 e 1827. Anota-se igualmente uma crise forte em 1850. Percebe-se por essa lista que oscilações da mortalidade não devem ter afetado muito os dados relativos à Candelária expressos na Tabela 3, permitindo que eles forneçam informação indireta mas útil a respeito da evolução da população da freguesia.

Tabela 3 – Número médio anual de óbitos de escravizados adultos e sua participação (%) no total dos sepultamentos (freguesias selecionadas, Rio de Janeiro, 1813-1849)

A. Média anual de livres e forros adultos sepultados

B. Média anual de escravizados adultos sepultados

Participação escravizada

(% em A+B)

Candelária

1813-1814

103

39

27,5

1822-1826*

47

27

36,5

1845-1849

56

39

41,1

Engenho Velho

1816-1817

38

78

67,4

1838-1840**

97

169

63,5

Inhaúma

1820, 1823

21

47

69,1

Sacramento

1843-1844

335

86

20,4

Santa Rita

1843-1844

153

66

30,1

Santana

1843-1844

220

76

25,7

São José

1843-1844

210

49

18,9

Glória e Lagoa

1843-1844

116

60

34,1

* Abril de 1822 a março de 1826.

** Agosto de 1838 a julho de 1840.

Fontes: Freguesia de Nossa Senhora da Candelária, óbitos, 1793-1833, 1797-1838, 1833-1876, 1809-1838, 1838-1867; Freguesia de São Francisco Xavier do Engenho Velho, óbitos, 1789-1819, 1795-1827; Freguesia de Santiago de Inhaúma, óbitos, 1816-1852, 1817-1846; Jornal do Commercio, 1843-1844.

A participação dos cativos na freguesia da Candelária cresceu ao longo da primeira metade do século XIX.6 É verdade que, em parte, isso se explica pela redução da população livre entre 1813-1814 e 1822-1826, resultado da provável partida de muita gente que viera junto a d. João e à família real (a paróquia abrigava muitos portugueses continentais de nascimento, conforme será abordado adiante). Mas, caso se deixe de lado a imagem obtida em relação ao período da corte lusa no Rio de Janeiro, ver-se-ão os indícios de que, entre 1822-1826 e 1845-1849, a participação cativa cresceu, fazendo-o, aparentemente, em paralelo a um novo aumento da população livre. Tendo em vista o fato de que, como se viu, não houve crises de mortalidade muito fortes na freguesia, e que a média anual de escravizados sepultados passou de 27 nos anos 1820 para 39 no fim dos anos 1840, significa que a população cativa da Candelária passou por forte crescimento no intervalo. A não ser pelo grande crescimento demográfico, o Engenho Velho não mostra diferenças de peso entre os dois períodos abordados. Entre 1816 e 1839, aproximadamente, o movimento anual de livres e libertos sepultados multiplicou-se por cerca de duas vezes e meia, enquanto a média anual de sepultamentos de escravizados adultos pouco mais que dobrou. Inexistindo razões para julgar que a taxa de mortalidade tenha variado substancialmente entre uma época e a outra, pode-se chamar atenção para o enorme crescimento dessa área de subúrbio, expressão que, na época, indicava transição entre o urbano e o rural. A proporção de escravizados na população, por outro lado, parece ter permanecido mais ou menos a mesma.

Já foi visto o que representava para a questão abordada a constância da participação escravizada na população. Persistia ali a imensa presença cativa no total de pessoas, atingindo níveis quase inéditos e mostrando o vigor do mundo das chácaras. Esses dados do Engenho Velho, apontando para um grande aprofundamento da ocupação agrícola produtora de alimentos nos arredores imediatos das partes mais urbanizadas do Rio de Janeiro, são corroborados pela informação relativa a Inhaúma, que, da mesma forma, deve ser vista como freguesia rural (Góes, 1993). A participação cativa no total era imensa, também quase caribenha.7 Essas participações enormes dos escravizados na população indicam os muito grandes e importantes investimentos realizados na produção para o abastecimento do Rio de Janeiro. Conforme será visto adiante, esse indicador, no tocante à Inhaúma suburbana e rural, era comparável àquele passível de ser calculado quanto a Valença, no coração cafeeiro do Vale do Paraíba.

Acrescentaram-se à Tabela 3 informações a respeito de outras freguesias da cidade do Rio de Janeiro.8 Elas foram retiradas de listas de óbitos enviadas por párocos ao Jornal do Commercio a partir de meados de 1843, tendo sido usadas aquelas referentes ao período de setembro de 1843 a agosto de 1844. Elas servem para demarcar a posição do Engenho Velho e de Inhaúma quanto à sua capacidade de concentrar população escravizada. Isso permite começar a lidar com um tipo de informação que terá importância adiante: muito do impulso econômico observado na cidade começava a imprimir mais marcas nas chácaras, arredores e na província do Rio de Janeiro que dentro da própria urbe.

Voltando aos indicadores mais diretos da desigualdade, talvez uma hipótese anedótica ajude a entender o repique de grandes fortunas após a Independência. Tudo vem de suspeitas de que a desorganização que se confundiu com o próprio processo de emancipação possa ajudar a fornecer explicações, principalmente pela via dos tributos. Caso se olhe para a alfândega, o movimento do porto não teve grandes alterações, como sabemos desde os estudos de João Fragoso (1992, p. 113, 226), no sentido de que os produtores coloniais conseguiram adiar os efeitos da flutuação negativa aberta na Europa em meados da década de 1810. Eles expandiram os volumes exportados como forma de lidar com preços cadentes. Por outro lado, as receitas fiscais que chegaram ao controle das autoridades da nova nação tiveram imensas flutuações, sugerindo dificuldade de arrecadar aquilo que não tivesse sua origem no porto do Rio de Janeiro. Segundo José Honório Rodrigues (s.d., p. 20-21), a arrecadação de 1823 teria sido de pouco mais de dois mil e trezentos contos de réis, ao passo que em 1825 ela foi de quase quatro mil contos. Para comparar, num estudo que dá muita ênfase à dinâmica fiscal para compreender o processo de independência, afirma-se que “o total de receitas do governo joanino no ano de 1820” havia sido de “6 mil contos” (Cariello; Pereira, 2022, p. 49).9 Tratou-se, portanto, de uma tremenda janela tributária. Flutuações dessa magnitude muito provavelmente derivaram de dificuldades de arrecadação devidas à desorganização de instituições. A folga de alguns ou muitos pontos percentuais no total dos rendimentos anuais de elites já de si poderosíssimas pode ter tido o efeito quase que de mudança de qualidade em seus patrimônios, e essas muito bruscas oscilações de receitas permaneceram por vários anos (Villela, 2022, p. 480; Cariello; Pereira, 2022, p. 420-424), sabendo-se que sociedades pós-independentistas são extremamente instáveis em termos políticos, como regra (Bates; Coatsworth; Williamson, 2007; Carvalho, 1988, p. 11; Rinke, 2017, cap. 6).

Outro dado do período que deve ser incorporado é o de que, conforme constatado por estudiosos do tráfico ilegal de africanos, este comércio mudou de natureza durante a ilegalidade de 1831-1850. Afirma-se ter a atividade traficante se tornado sumamente mais hierarquizada e monopolizada do que já era antes (Mesquita, 2021, p. 123; Marques, 2016, p. 149).10

Piñeiro e Saraiva (2014, p. 144) referiram-se ao Brasil e ao Rio de Janeiro de 1821 a 1850 como

marcado por uma conjuntura extremamente complexa. De um lado, temos o crescimento exponencial que a economia agroexportadora, em geral, e a cafeicultura, particularmente, apresentava. De outro lado, temos crises pontuais de desabastecimentos, o fechamento do Banco do Brasil, variações cambiais e déficits crônicos da arrecadação fiscal que se refletiram em um recrudescimento dos conflitos urbanos e revoltas regionais.

Essa caracterização é importante, e a ideia de crescimento exponencial da agroexportação não deve fazer esquecer que, apesar do avanço cafeeiro, se estava em meio a ingentes dificuldades atlânticas. João Fragoso (1992), apontando a relativa autonomia das flutuações coloniais em relação às atlânticas, chamou atenção para o fato de as dificuldades terem provavelmente se iniciado no Brasil nos anos 1820. Se isso puder ser relacionado com a evolução apontada da desigualdade, resultará que, durante a expansão, a riqueza de alguma forma vazava para setores menos prósperos, o que teria sido interrompido pela retração própria da grave situação atlântica, desde 1815, e brasileira, grosso modo datada do segundo quarto do século.

Também é possível que o movimento de aumento da iniquidade observado no Rio de Janeiro e em São Francisco do Conde tenha derivado não de uma dinâmica intrínseca a esses mercados, mas antes da abertura para a movimentação na direção das fronteiras agrárias possibilitada pela suspensão da concessão de sesmarias em 1822. Ela representou o fim de qualquer tipo de controle sobre essa espécie de processo migratório. Alencastro (1988, p. 38-40) formulou a hipótese da cidade-eclusa, segundo a qual o trabalho, a população e a hierarquia social na cidade do Rio de Janeiro eram em grande medida regulados pelo papel assumido pela urbe no comando de fluxos de trabalhadores do Atlântico para os arredores.

Esse tipo de questionamento conduz a atentar para outras características da população e, portanto, para outro tipo de testemunho que os registros de óbito podem dar, na falta de informação mais precisa. Eles podem sugerir alguma coisa acerca das migrações de livres e da ligação das posses de escravizados com o mercado e com os investimentos. As migrações de livres (internas ou internacionais) eram ainda nessa época intensamente masculinas, e isso se reflete na razão de sexo dos sepultamentos de adultos (número de adultos homens mortos multiplicado por cem e dividido pelo número de adultas falecidas). Os sepultamentos de escravizados adultos, por outro lado, apontam para a relação entre as posses e o mercado de cativos, já que masculinidades altas apontavam para forte presença africana (Tabela 4).

Tabela 4 – Razão de sexo dos óbitos de livres e libertos e de escravizados (cidade do Rio de Janeiro, freguesias selecionadas, 1813-1849)

Razão de sexo dos
óbitos de livres e forros

Razão de sexo dos
óbitos de escravizados

Candelária

1813-1814

177

169

1822-1826*

152

159

1845-1849

185

228

Sacramento

1843-1844

91

121

Santa Rita

1843-1844

143

175

Santana

1843-1844

88

138

São José

1843-1844

112

133

Glória e Lagoa

1843-1844

100

140

Engenho Velho

1816-1817

185

223

1835-1837

-

187

1838-1840**

152

225

Inhaúma

1820, 1823

105

288

* Abril de 1822 a março de 1826. ** Agosto de 1838 a julho de 1840.

Fontes: Freguesia de Nossa Senhora da Candelária, óbitos, 1793-1833, 1797-1838, 1833-1876, 1809-1838, 1838-1867; Freguesia de São Francisco Xavier do Engenho Velho, óbitos, 1789-1819, 1795-1827; Freguesia de Santiago de Inhaúma, óbitos, 1816-1852, 1817-1846; Jornal do Commercio, 1843-1844.

Com a parcial exceção de Santa Rita, as altas masculinidades dos óbitos de livres ficaram restritas ao Engenho Velho, a Santa Rita e à Candelária.11 Nestas duas, o que estava em jogo eram as chegadas de portugueses. Sem contar os naturais das Ilhas Atlânticas e os outros migrantes europeus residentes, os portugueses continentais foram 55% dos homens adultos livres sepultados na Candelária entre 1845 e 1849 (Freguesia de Nossa Senhora da Candelária, óbitos, 1838-1867). No Engenho Velho, nada disso pode ser notado nos registros de óbito, pois os lusitanos nunca ultrapassavam, pelo menos nos dois períodos considerados, os 15% dos homens adultos mortos, enquanto na Candelária eles costumavam ser a maioria deles. A parcela das chácaras parecia estar atraindo migrantes, provavelmente internos, e um tipo particularmente investidor de migrante, como se pode observar atentando para as razões de sexo dos óbitos de escravizados. Elas também eram altíssimas no Engenho Velho, indicando forte presença de africanos, isto é, de escravizados adquiridos no mercado de almas.

O caso de Inhaúma sugere processo diferente. Apesar das altas participações de escravizados na população, denunciando um fôlego produtivo e mercantil enorme nessa área rural da cidade, a população livre parecia de alguma forma estabilizada, não sugerindo participação muito alta de migrantes. A razão de sexo próxima de cem dos óbitos livres sugere números semelhantes de homens e mulheres na população e, portanto, que parte muito substancial dela havia nascido ali mesmo.

Quanto aos cativos, há o caso importante da Candelária, onde se notam escravarias muito marcadas pelas aquisições de africanos (e por isso com razões de sexo muito altas).12 Mas isso, além de, novamente, poder ter-se devido aos portugueses, não chegava perto da estabilidade das altíssimas razões de sexo dos escravizados do Engenho Velho, denunciando sanguinidade nas aquisições e nos investimentos. Também não guarda qualquer semelhança com aquilo que se passava em Inhaúma, caso inteiramente comparável ao que se passava na Valença do café, conforme será visto adiante. Essas aquisições de africanos para o setor de abastecimento chamam muito a atenção e levam a ver como se acumulava com força nessa área, certamente ajudando a qualificar o aumento da desigualdade na época.

Já em relação ao interior do significativo termo da cidade do Rio de Janeiro, a historiografia divulgou o que parece ser um conjunto de indícios de se terem ruralizado, no decorrer da primeira metade do século XIX, os empreendimentos escravistas mais avultados. Essa sugestão fica em quem lê os estudos de Fridman (1999, p. 133-135, 145-147) relativos a Jacarepaguá e Campo Grande, bem como o quadro relativo a agricultores de abastecimento em Inhaúma observado por Lima (2016, p. 43-44), apesar de uma aceleração mais efetiva só ter ocorrido na segunda metade do século, misturada a loteamentos com finalidades habitacionais e à urbanização.

É preciso referir os efeitos que a suspensão da concessão de sesmarias pode ter tido na desigualdade. Alguns passos nessa direção podem ser dados observando-se a presença escravizada e migrante nos arredores. Quanto às áreas de destino, Roberto Smith, por exemplo, sustentou que o intervalo sem mediação estatal na aquisição de baldios pode ter sido mais responsável pela formação dos latifúndios que o período anterior, de expansão regulada por sesmarias, ou que o posterior, sob a Lei de Terras de 1850 (Smith, 1990, p. 303-304; ver também Motta, 1998, p. 125 et seq.).

A participação de escravizados em populações locais da província pode acrescentar informações a essa discussão (Tabela 5). Nota-se um aparente aumento da população livre em algumas delas, na verdade um aumento do número de óbitos de livres que só pode ter se manifestado nas fontes se, antes, tiver havido um aumento da população.

Persistem os sinais de crescimento muito robusto das localidades ao redor do Rio de Janeiro durante o intervalo estendido da suspensão das sesmarias à Lei de Terras. É verdade que um vice-rei como o conde da Cunha avaliava, no século anterior, que faltava terra serra abaixo na capitania do Rio de Janeiro,13 mas, aparentemente, povoadores novos tinham acesso a terrenos para se estabelecerem a partir de 1822.

Como foi visto quanto à cidade do Rio de Janeiro, uma espécie muito mais fundamental de desigualdade avançava a passos largos, sendo representada pela própria separação entre livres e escravizados. Isso foi observado na paróquia da Candelária, central, portuária e que por boa parte do século XIX seria a sede da presença portuguesa no Rio (de colonos, negociantes e administradores, durante o início do século; já bafejada pela presença dos imigrantes portugueses pobres na proximidade dos meados do XIX). Foi possível propor uma imagem grosseira da evolução da presença escravizada na freguesia usando os registros de óbito. Observou-se que, numa época em que a população livre provavelmente já começava a crescer de modo consistente, a presença escravizada na paróquia aumentava regularmente. Verificam-se do mesmo modo, agora, alguns locais da província (selecionados conforme se detectasse um mínimo de regularidade na feitura dos registros – especialmente a ausência de lacunas).

Tabela 5 – Número médio anual de óbitos de escravizados adultos e sua participação (%) no total dos sepultamentos (província do Rio de Janeiro, localidades selecionadas, 1800-1868)

A. Média anual de livres e forros adultos sepultados

B. Média anual de escravizados adultos sepultados

Participação escravizada

(% em A+B)

Valença

1808-1821

6

6

50,0

1822-1829

14

25

64,1

1867-1868

40

35

46,7

Fonseca

1800-1818*

3

**

8,6

1819-1834

3

**

9,1

1836-1849

2

1

33,3

Rio Bonito

1822-1824

44

105

70,5

1843

74

102

58,0

Mangaratiba

1841

35

-

-

1844-1846***

-

63

-

Itacuruçá

1833

-

20

-

Mambucaba

1830-1839

8

18

69,2

1840-1849

13

20

60,5

* Exceto 1815. ** Média anual menor que 0,5. *** Setembro de 1844 a agosto de 1846.

Fontes: Freguesia de Nossa Senhora da Glória de Valença, óbitos, 1807-1854, 1862-1875; Freguesia de São Lourenço, óbitos, 1776-1864; Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Mambucaba, óbitos, 1829-1860, 1829-1874; Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Rio Bonito, óbitos, 1804-1830, 1815-1827, 1834-1845, 1843-1862; Freguesia de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba, óbitos, 1835-1852, 1816-1844; Freguesia de Santana de Itacuruçá, óbitos, 1828-1887.

Vê-se na Tabela 5 que a população livre de locais como Mambucaba e Rio Bonito parecia estar crescendo rapidamente, nessa época de ausência de arbitragem estatal para a apropriação de baldios. Esse contingente crescia também em Valença e, nesse caso, em paralelo com o avanço cafeeiro, pois o contingente escravizado local aparentemente cresceu de modo semelhante até os anos 1860 (note-se que a participação escravizada na população aumentou entre os anos 1810 e a década de 1820, além de ter crescido novamente, entre os anos 1820 e 1860, apesar de neste último caso ter havido redução em sua participação, pois avançou menos que a população livre). Considera-se aqui que isso constitui um indício de avanço importante das populações livres na província fluminense durante a primeira metade do século XIX. Em Mambucaba e Rio Bonito isso ocorreu em paralelo a uma redução da importância da população escravizada (aliás muito alta nos dois últimos lugares). O Fonseca apresentou uma situação diferente, nessa época em que o aldeamento de São Lourenço ainda executava sua trajetória de decadência (Almeida, 2003, p. 202-205). A população livre parecia estagnada entre 1800 e o final dos anos 1840, ao passo que a presença de escravizados ganhava corpo.

Tendo em vista esses desempenhos dos arredores, não é implausível que a desigualdade na cidade estivesse aumentando pelo esvaziamento de setores médios, os quais migravam para o agro fluminense. O crescimento da população livre em localidades rurais não cafeeiras pode chamar mais atenção para essa sugestão. Mas, como foi escrito a propósito da Tabela 1, a polarização da distribuição após a Independência foi forte.

Uma medida do caráter sanguíneo, voraz, desse crescimento periférico pode ser obtida acompanhando uma outra medida indireta, dessa vez acerca do relacionamento dessas localidades com o tráfico de escravizados e com as migrações de livres. Observe-se, portanto, a Tabela 6, que se aproxima da voracidade ao procurar informações sobre a relação com as migrações internas de livres e com o tráfico de escravizados africanos, e para isso mede a razão de sexo (o número de homens por mulher multiplicado por cem) dos óbitos de livres e de escravizados adultos.

Começando pelas possíveis indicações sobre migrações de livres, vê-se que, em Valença, o processo migratório parece ter sido intenso durante o início do século, continuando importante após a metade do mesmo. As altas razões de sexo ligam-se a isso. Deve-se sempre lembrar a ocupação súbita de áreas cafeeiras no Vale do Paraíba fluminense (ver, por exemplo, Marquese; Tomich, 2017).

A maioria feminina entre os livres do Fonseca do início do século sugere que essa área de Niterói era na época foco de emigração de livres, ou então era marcada pela presença seletiva de indígenas, conforme a bibliografia sobre aldeamentos às vezes aponta. Mas no período final dos anos 1830 e na década seguinte, tornou-se, ao que tudo indica, polo atrator.

Mambucaba parece ter sido ponto de partida de algum tipo de fluxo de emigrantes um pouco antes dos anos 1830, mas não na década de quarenta. Rio Bonito não dá indícios de emigração nem de imigração de livres até o início dos anos quarenta, data a partir da qual passou a dar sinais de que homens migravam a partir dali, algo talvez articulado ao avanço cafeeiro serra acima, no Vale do Paraíba.

Tabela 6 – Razão de sexo dos óbitos de adultos livres e libertos e de escravizados (província do Rio de Janeiro, localidades selecionadas, 1800-1868)

Razão de sexo dos
óbitos de livres e forros

Razão de sexo dos
óbitos de escravizados

Valença

1808-1821

197

245

1822-1829

236

397

1845-1847

-

274

1867-1868

152

133

Fonseca

1800-1818*

74

200

1819-1834

109

400

1836-1849

144

300

Rio Bonito

1800-1821

-

160

1822-1824

98

197

1835-1842

94

-

1843

64

137

1844-1851

-

143

Mangaratiba

1841

119

-

1844-1846**

-

198

Itacuruçá

1833

-

122

Mambucaba

1830-1839

69

198

1840-1849

97

201

* Exceto 1815. ** Setembro de 1844 a agosto de 1846.

Fontes: Freguesia de Nossa Senhora da Glória de Valença, óbitos, 1807-1854, 1862-1875; Freguesia de São Lourenço, óbitos, 1776-1864; Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Mambucaba, óbitos, 1829-1860, 1829-1874; Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Rio Bonito, óbitos, 1804-1830, 1815-1827, 1834-1845, 1843-1862; Freguesia de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba, óbitos, 1835-1852, 1816-1844; Freguesia de Santana de Itacuruçá, óbitos, 1828-1887.

É importante pôr acento em uma questão relacionada às razões de sexo dos sepultamentos de adultos livres. Deve-se lembrar que populações muito assentadas, pouco marcadas por processos migratórios em qualquer sentido, tenderiam a originar razões de sexo próximas de cem nesses óbitos de adultos livres. Mas o que se nota no Rio de Janeiro dessa época de supressão de barreiras coloniais (inclusive as sesmarias) à migração de pessoas, aos deslocamentos produtivos e ao avanço da fronteira agrária é que eram grandes as disparidades em relação ao cem – indicando movimentos muito bruscos de populações. Além do mais, eram muito violentas as flutuações desse indicador em áreas específicas, como no exemplo de Rio Bonito nos anos 1830 e 1840: aparentemente, uma assentada população com números semelhantes de homens e mulheres deu origem, subitamente, a uma espécie de debandada masculina nos anos 1840.

Quanto àquilo que os óbitos permitem entrever a respeito do recurso ao tráfico africano, que aumentava muito a razão de sexo dos óbitos escravizados, vê-se em Valença verdadeira e crescente voracidade no princípio do século. Ela se manteve grande, e só foi possível encontrar sinais de retração quanto aos anos 1860. No tocante ao Fonseca, os cativos nessa época eram muito poucos, apontando para razões de sexo dos óbitos realmente imprestáveis para análise. Em relação a Mambucaba, o porto local e as atividades voltadas para o abastecimento criavam forte demanda por escravizados nas duas décadas analisadas (a de 1830 e a de 1840).

Rio Bonito fez parte de uma das rotas de expansão do café na província (Salles, 2008, p. 139-140). Os dados de 1800-1824 indicam-no, com suas razões de sexo crescentes. Mas elas ainda eram altas nos anos 1840, apontando, provavelmente, para aquilo que Hebe Mattos indicou em relação a áreas próximas dali: café em menor quantidade e, talvez, de menor qualidade, fora do Vale do Paraíba (Mattos de Castro, 1987, p. 29), além de atividades voltadas para o mercado interno (Costa, 2013, p. 69). É certamente levando em conta essa relação peculiar com a agroexportação, não pertencendo o local ao núcleo mais dinâmico da atividade na província, que se compreende o fato de os escravizados terem constituído um pouco mais que metade da população entre o final do século XVIII (Costa, 2013, p. 76) e 1851 (Gouvêa, 2008, p. 44). No intervalo observável com a documentação usada aqui, chama a atenção o fato de a população escravizada de Rio Bonito parecer ter sido maior que a de Valença (Tabela 5), o que só deixou de ocorrer em 1850 (Salles, 2008, p. 185).

A intensa movimentação de pessoas inaugurada pela Independência pode ter afetado aquilo que o índice de Gini descreve em relação ao Rio de Janeiro. Mas a imagem de hierarquização crescente continua de pé, dada a distância entre os extremos (Tabela 1). Passa-se, assim, ao problema da mobilidade.

As relações entre mobilidade social e hierarquia social são complexas, de modo que não necessariamente o avanço na desigualdade aqui observado representou fechamento ou redução das possibilidades de mobilidade ascendente. Ainda assim, é ilustrativo chamar atenção, pelo menos, para a visibilidade dos grupos móveis.

Presença de libertos nas populações do período joanino e após a Independência

Conforme Florentino e Machado (2002, p. 63), um forro “era o exemplo mais recorrente de mobilidade social e de miscigenação” (de fato, os autores fazem referência a mulheres libertas). Não era o único, mas sua presença relativa é um indicador – incompleto e indireto, embora – da visibilidade de pessoas em situação de mobilidade ascendente.14 Começa-se lembrando que Florentino (2002, p. 13) chamou atenção para a redução da importância de libertos na população livre carioca com o avanço do século XIX, e isso tanto na população urbana quanto na rural.

Observam-se novamente os registros de óbitos de adultos, apenas. No caso presente, há uma razão adicional: manifestava-se por vezes nos assentos de sepultamento o hábito de referir-se a crianças mortas que fossem filhas de libertos como se forras elas também fossem. Os resultados são expostos levando-se em conta a participação percentual dos óbitos de libertos e libertas no total de sepultamentos de adultos e no total de óbitos (incluindo, portanto, os registros de sepultamento de escravizados adultos). Conforme se indicou acima, a presença relativa de libertos em uma população é um indicador da importância de processos de mobilidade social. Aqui, essa importância é observada considerando-se que tal participação influenciava a parcela dos óbitos de forros no total dos óbitos, possibilitando obter relances e enxergar tendências quanto à presença relativa de libertos nas populações “vivas”.

Conforme será visto, essa participação declinou após a Independência, corroborando as afirmações anteriores de Florentino. Terá isso significado que foram estreitados os caminhos para a mobilidade social? Não se pode ser taxativo quanto a isso, o que se relaciona a várias razões. Uma delas é a de que a presença relativa dos libertos pode ter diminuído em virtude do possível aumento da população já nascida em liberdade, além do fato de ter havido forte imigração portuguesa (Florentino; Machado, 2002; Alencastro, 1988). Outra liga-se à possibilidade de essa forma de mobilidade ter se reduzido sem que o mesmo ocorresse com as outras. Outra ainda, à virtualidade de que possam ter se reduzido as avenidas de mobilidade para escravizados, mas não para outros grupos sociais (vide a Tabela 7), embora a hipótese que os dados aqui utilizados tornam mais tentadora seja a de que houve emigração de forros para fora da cidade. Além da redução da participação, levantam-se indícios, quanto à cidade, de redução da quantidade absoluta de sepultados forros, o que corrobora o modelo de terem sido libertados na urbe, migrando depois para outros locais, onde finalmente morriam. Isso, aliás, serve para enfatizar a rentabilidade de utilizar os óbitos para capturar sua presença.15

Tabela 7 – Sobre a participação de libertos nos óbitos em localidades e períodos selecionados (1800-1870)

Local

N. médio anual de mortos libertos adultos

% no total de óbitos de adultos não escravizados

% no total de mortos adultos (com escravizados)

Candelária

1813-1814

9

12,3

8,0

1822-1826

4

7,9

5,1

1845-1849

3

5,0

2,9

1861-1862

0

0,0

***

Engenho Velho

1816-1817

7

17,3

5,7

1838-1840

19

19,6

7,1

Inhaúma

1820, 1823

13

64,1*

18,9*

São Cristóvão

1859-1860

1

0,8

0,8

Santa Cruz

1862-1869

3

14,4

7,0

Fonseca, Niterói

1800-1819

0**

1,6

1,4

1820-1836

0**

2,0

1,8

1840-1848

0

0,0

0,0

1857-1870

11

16,3

10,5

Valença

1808-1821

1

9,3

4,9

1822-1829

1

8,8

3,3

1867-1868

2

6,3

3,4

Rio Bonito

1822-1824

8

18,2

5,4

1843

13

17,6

7,4

Mambucaba

1830-1839

0

0,0

0,0

1840-1849

1

6,1

2,4

Mangaratiba

1841

6

17,1

-

Parati

1866-1867

11

10,8

6,7

* Há problema com os dados de Inhaúma. Aparentemente, negros e pardos livres foram lançados como se fossem libertos. ** Somente um, no intervalo indicado, com o que o arredondamento conduz a lançar zero. *** Parece deficiente o registro de óbitos escravizados na Candelária em 1861-1862, pelo menos nos livros disponíveis em www.familysearch.org. Nesses dois anos, foram registrados os óbitos de 87 pessoas adultas e nenhuma delas foi classificada como liberta ou forra.

Fontes: Freguesia de Nossa Senhora da Candelária, óbitos, 1793-1833, 1797-1838, 1833-1876, 1809-1838, 1838-1867; Freguesia de São Francisco Xavier do Engenho Velho, óbitos, 1789-1819, 1795-1827; Freguesia de Santiago de Inhaúma, óbitos, 1816-1852, 1817-1846; Paróquia de São Cristóvão, óbitos, 1585-1879; Curato de Santa Cruz, óbitos, 1861-1887, 1861-1878; Freguesia de Nossa Senhora dos Remédios de Parati, óbitos, 1856-1869; Freguesia de São Lourenço, óbitos, 1776-1864, 1865-1871; Freguesia de Nossa Senhora da Glória de Valença, óbitos, 1807-1854, 1862-1875; Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Mambucaba, óbitos, 1829-1860, 1829-1874; Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Rio Bonito, óbitos, 1804-1830, 1815-1827, 1834-1845, 1843-1862; Freguesia de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba, óbitos, 1816-1844.

As médias anuais de libertos sepultados mostram que, na cidade do Rio de Janeiro, pelo menos na freguesia da Candelária, a quantidade absoluta de forros residentes estava caindo juntamente com sua participação na população. Um dado comum entre uma paróquia fortemente crescente na lida do café – Valença, no Vale do Paraíba – e uma freguesia urbana – a de N. S. da Candelária, na cidade do Rio – parece ter sido essa redução da importância dos libertos na população na passagem do período joanino para o independente. Isso foi mais forte na cidade que na lavoura cafeeira, que, no entanto, cristalizou esse movimento na passagem para a segunda metade do século XIX.

No caso da cidade, pelo menos a proporção de libertos pode ter resultado do crescimento da população livre, mais que de algum retrocesso na concessão de alforrias. Ao lado dele, reduzia-se a população escravizada urbana. Sabe-se do processo de crescimento da taxa de alforrias conforme avançava o século XIX (Mattoso, 1992, p. 161; Florentino, 2005). Só que esse avanço das taxas ocorreu durante a segunda metade do século, época na qual a população escravizada da cidade vinha decrescendo como resultado do tráfico interno de escravizados.

Valencia Villa (2010, p. 244) notou quanto ao Rio de Janeiro que, apesar de o volume estimado de cartas de alforria ter crescido muito entre 1840 e 1871, no meio do caminho houve um decréscimo marcante no movimento de concessão de cartas, após um primeiro auge em 1850. As taxas de alforria estavam realmente crescendo após 1850, mas isso foi concomitante a forte decréscimo da população escravizada da cidade, o que derivava da inauguração do tráfico interno.16 A grande quantidade de cartas de alforrias observada quanto a 1871 se explica, certamente, pelo ambiente de crise do cativeiro já a essa altura instaurado.

Quanto a Valença, pode ter estado em jogo o ambiente criado ao redor do que se passava nas fazendas de café. Nestas, é possível que a superexploração do trabalho, no âmbito do que se costuma chamar de segunda escravidão, tenha levado ao rompimento com padrões coloniais, inclusive, de sociabilidade e de relativa abertura para formas controladas e hierárquicas de mobilidade social (os aumentos de produtividade ligados à aceleração dos processos e ao refinamento da gestão aparecem em Marquese; Tomich, 2017, p. 370-371; Moura Filho, 2020, p. 147-148; Salles; Muaze, 2020). Esse endurecimento teria reduzido as chances de que libertos mantivessem presença visível nos tecidos sociais locais.

Percebe-se que a questão da presença relativa dos libertos na população era afetada pela diferenciação entre rural e urbano no alto século XIX. Para ficar apenas em paróquias pertencentes à mesma cidade do Rio de Janeiro, é notável a diferença entre a Candelária ou São Cristóvão, de um lado, e Engenho Velho e Santa Cruz, de outro, pois a proporção liberta era bem maior nestas. Acima de tudo, impressiona a enorme participação forra na população de Inhaúma, embora, nesse caso, parece ter ocorrido um problema de registro: aparentemente, muitos negros livres foram descritos como libertos nas fontes. Incluindo o ambiente rural de fora da cidade, mas de dentro da província, tudo se confirma. Se na Candelária do século XIX mais entrado a participação era baixa, do mesmo modo que na área cafeeira (Valença), as mesmas décadas de 1830 a 1860 podiam ser época de altas participações no ambiente rural não cafeeiro, ou então que produzisse café apenas marginalmente. Isso se exemplifica com Engenho Velho, curato de Santa Cruz, Rio Bonito, Parati e Mangaratiba. Também se mostrou alta a participação dos libertos no Fonseca rural, em Niterói (freguesia de São Lourenço), mas somente nos anos cinquenta e sessenta. Essa anomalia de ter sido palco de crescimento oitocentista na parcela liberta da população teve a ver com a circunstância de o Fonseca ter sido durante a primeira metade do século XIX, como mencionado, um aldeamento indígena em processo secular de degradação.

Quanto à cidade, é possível comparar essas informações com aquelas fornecidas pelo recenseamento de 1849. Segundo esse levantamento, os libertos e libertas teriam constituído 1,9% da população não escravizada da Candelária, número que no Engenho Velho teria sido de 12,3% e, em Inhaúma, de 14,1% (Holloway, 2008). Os dados são comparáveis, especialmente as diferenças entre o especificamente urbano e o mundo rural ou das chácaras (embora Haddock Lobo, o organizador do censo, entendesse o Engenho Velho como freguesia urbana). A discrepância relativa a Inhaúma é compreensível, dados tanto a diferença do período observado em um e outro caso, quanto o problema de registro já apontado (prováveis negros livres foram apontados como libertos nos registros de óbito). É importante levar em consideração também a circunstância de se terem recortado os óbitos de adultos, sendo impossível deixar as crianças de lado no caso do recenseamento.

Durante o período joanino tudo fora diferente. A Candelária dos anos 1810 tivera proporções até maiores que as relativas à Valença em processo de instalação de seus cafezais.

Quanto a alguns possíveis determinantes da questão, pode-se mencionar que influía nesses resultados a contraposição entre a vida urbana e a existência na ruralidade não cafeeira, mas nesse caso somente nos períodos mais próximos dos meados do século XIX. Antes da Independência, tal contraposição não tinha efeitos nesses assuntos. Além disso, o avanço do século XIX marcou tudo, até mesmo nas áreas rurais. Teve muito relevo a dinâmica da população livre, que talvez estivesse começando a crescer endogenamente a partir da Independência, sem contar, no caso da cidade do Rio de Janeiro, a presença marcante de imigrantes (Alencastro, 1988). As migrações de libertos dão alguns sinais de terem sido importantíssimas em alguns casos para esclarecer esses resultados. Observe-se o caso de Niterói (freguesia de São Lourenço, ou o Fonseca). Passou-se ali de nenhum ou quase nenhum liberto falecido, durante a primeira metade do século, para uma média de onze a cada ano, a partir de 1857. São fortes as suspeitas de que se tratava de libertos da cidade do Rio migrando.

Considerações finais

Conforme avançava a disparidade social, diminuía o peso nas posições intermediárias daqueles que tinham logrado mobilidade ascendente. Talvez se tratasse menos de redução das alforrias e mais de migrações internas subsequentes a cada manumissão que não fosse condicional (as condicionais costumavam travar a movimentação geográfica dos libertos após a libertação). É de se lembrar o “campo negro de Iguaçu” de Flávio Gomes (1993).17 Mas dá o que pensar a possibilidade de terem sido concomitantes o aumento da desigualdade e a redução das chances de mobilidade social (diminuição da probabilidade de que a mobilidade ocorresse ou míngua das possibilidades de os móveis encontrarem lugar na vida urbana).

As duas coisas não tinham um engate tão forte quanto se pode imaginar à primeira vista. Afinal, a mobilidade social individual não afeta a disparidade posicional, como parece suposto em propostas nossas contemporâneas de impactar de alguma forma a desigualdade posicional incentivando a mobilidade social individual. Uma coisa era estarem mais próximas ou mais distantes as posições sociais. Outra, inteiramente diferente, era a chance de indivíduos transitarem entre tais posições. No máximo, poder-se-ia dizer que a mobilidade criaria uma espécie de dinamismo que, a longo prazo (e só nele), terminaria por instaurar uma movimentação da qual, talvez, derivasse crescimento, e crescimento de um tipo tal que deixasse vazarem vantagens para desfavorecidos. Mas, em geral, são hoje bem conhecidas situações de alta disparidade mantidas de pé pelo fato de permitirem formas de mobilidade social. Quanto ao período estudado, lembrem-se as análises de Florentino (1997, p. 27-33) no sentido de que as pequenas posses de escravizados – denunciadoras de outro tipo de mobilidade social – retinham uma espécie de efeito de legitimação sobre o cativeiro. Assim, não é necessário supor que o aumento da desigualdade fechasse portas para a mobilidade social. Aqui, se é francamente tentado a escrever sobre uma espécie de somatório de formas de degradação: as posições sociais se extremavam, enquanto se reduziam os traços deixados na vida social por aqueles que se moviam entre elas.

Para concluir, retomam-se os elementos com os quais o avanço da desigualdade precisou ser relacionado a partir das prospecções realizadas aqui. O aprofundamento da disparidade não pode ser abordado sem referência à relação do Rio de Janeiro com sua hinterlândia, aos processos migratórios internos ou atlânticos, ao avanço do tráfico de escravizados e ao peso das necessidades ligadas ao abastecimento urbano em alimentos, somando-se tudo isso ao crescimento econômico colonial tardio e do início do século XIX, ao auge escravista brasileiro e à preponderância mercantil. O aumento da desigualdade não pode ser considerado independentemente disso tudo porque, como foi visto ao longo deste trabalho, todos os elementos mencionados ganharam grandes dimensões ao redor da época da Independência. Por fim, é bastante significativo – e deve permanecer como hipótese para posteriores investigações – o fato de que, nessa sociedade agrária (afinal, até a história social de uma cidade precisa ser abordada tomando em consideração a ruralidade circundante), a desigualdade social teve enorme avanço exatamente quando foi suprimida a arbitragem estatal do acesso a baldios.

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Recebido em 18/10/2023

Aprovado em 8/4/2024


Notas

1 É curioso que, segundo alguns, um dos poucos locais onde isso pode ser observado seja precisamente a Espanha a partir de 1850. Ver Scheidel (2020, p. 545-547).

2 Palacios (2004, p. 351), fazendo referência ao Nordeste Oriental (1793-1807), apontou “processos de submissão forçada, expulsão e expropriação dos agricultores pobres e livres e da conversão das plantações nas formas dominantes de produção e organização social”. Rocha (1996, p. 116) e Dias (1986, p. 175) apontam, quanto ao início dos anos 1820, apreensões enunciadas por Sierra y Mariscal em relação a um grau anormalmente elevado de conflituosidade entre ricos e pobres livres no Brasil.

3 Oliveira (2022, p. 31-33) sustentou, argumentando em um nível sintético e interpretativo, que uma combinação de fenômenos agrários ocorridos durante a segunda metade do século XVIII extremou desigualdades no campo brasileiro: avanço da agroexportação, diversificação dos produtos exportados e expansão das atividades voltadas para o mercado interno. Araújo (2006, p. 104) indicou, quanto a São Paulo, uma enorme valorização dos imóveis rurais (ainda maior que a dos urbanos) a partir de 1824.

4 Não parece possível concordar com a posição de Zephyr Frank em relação a esse período, para quem “the trend for the period from the 1820s through the 1840s was toward slightly greater equality among the free population and social mobility in Rio de Janeiro based largely on slaveholding”. Para os setores médios da cidade do Rio, “the 1830s and the 1840s were the best of times” (Frank, 2004, p. 4).

5 O uso do movimento dos óbitos para identificar mudanças na população, conforme diversas variáveis (gênero, condição jurídica, procedência, cor etc.) aparece, a meu ver pioneiramente, em Costa (1979, 1ª parte, cap. VI); ver também Engemann; Assis; Florentino (2003) e os estudos sobre a composição de instituições como as irmandades que também recorreram aos óbitos como quase recenseamentos, por exemplo, Soares (2001, p. 196-197, 605).

6 Comparando os resultados sobre participação escravizada na população com o observado no censo de 1849 (Holloway, 2008), nota-se forte coincidência no que toca à Candelária (45,7% no recenseamento) e superestimação quanto ao Engenho Velho (46,7% no censo), o que deve ter resultado do impacto, que será visto, da presença de africanos novos nesta freguesia, descolando a participação dos escravizados adultos daquela dos escravizados de qualquer idade na população total.

7 No censo de 1849 (Holloway, 2008), fazendo referência, portanto, a período diferente do abordado na Tabela 3, Inhaúma aparece com escravizados compondo 53,9% da população. O número é diferente do de 1820 e 1823 por causa da distância temporal e em virtude da impossibilidade de contar só os adultos. Mas é congruente com os da Tabela 3 por apontar mais de metade da população em cativeiro e por mostrar patamar superior ao do Engenho Velho (46,7%, como visto).

8 No caso dessas paróquias, o levantamento dos óbitos do Jornal do Commercio de 1843-1844 deu resultados incongruentes com os do censo de 1849. Segundo este (Holloway, 2008), escravizados eram 34% da população no Sacramento, 38,7% em Santa Rita, 33,2% em Santana, 37,8% em São José e 40,8% no conjunto formado por Glória e Lagoa.

9 Essas receitas certamente incluíam remessas de Portugal continental (Alexandre, 1993, p. 409).

10 Florentino (1997, p. 150-154) mostrou quanto ao período 1790-1830 que, apesar da presença marcante de traficantes eventuais e/ou de pequena escala no interior de sociedades mercantis voltadas para o comércio de almas, ele no fim das contas era fortemente concentrado socialmente. Era um pouco como o que se passava com as posses de escravizados.

11 Calculando a razão de sexo dos livres com o censo de 1849 (Holloway, 2008), muita coisa se confirma nos dados da tabela: a alta razão da Candelária (312) e de Santa Rita (166). Preserva-se a imagem de números parecidos de homens e mulheres em Inhaúma (102), mas reduz-se o destaque do Engenho Velho (112), enquanto passa a mostrar-se mais masculina a parcela livre e forra de São José (144), do conjunto Glória-Lagoa (128), de Santana (111) e do Sacramento (120).

12 O confronto das razões de sexo dos escravizados obtidas com aquelas calculadas com o censo de 1849 (Holloway, 2008) mostra, quanto à Candelária, um quadro semelhante ao visto com os óbitos (226). Isso surpreende, pois o censo não conta os adultos isoladamente. O mesmo se passa com Sacramento (128), Santa Rita (207), São José (136) e Glória-Lagoa (142). Mas a imagem se ameniza quanto a Santana (117), Engenho Velho (160) e Inhaúma (161).

13 Para a história do Rio de Janeiro (vice-reinado). Século XVIII. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 254, p. 241-410, 1962.

14 Quanto a isso, ver também Guedes (2007) e Soares (2009). Há percepção diversa quanto a Minas Gerais, ressaltando a raridade das trajetórias de continuidade da mobilidade ascendente após a alforria, dado que a maior parte dos libertos do fim do século XVIII e do início do XIX persistia em grande isolamento após a manumissão, embora não se deva deixar de ressaltar o dado de mobilidade ascendente manifesto nas próprias alforrias. Sobre isso, vide Oliveira e Bôscaro (2022).

15 Utilizar as alforrias levaria a imaginar sua presença na cidade; tratar dos batismos daria, talvez, acesso apenas a algumas mulheres. Vale a pena enfrentar a tensão resultante do sabido sub-registro de sepultamento.

16 Foram levantadas novas informações embasando a ideia de que o tráfico interno drenou para fora do Rio parte importante de sua população escravizada após 1850 (Lima, 2022, p. 106).

17 Libertos buscavam fronteiras ou áreas desocupadas pela sociedade colonial, às vezes sem sair do município; Soares (2001, p. 395) fez uma referência breve a uma área da Tijuca e do Catumbi que antes da Independência era conhecida como “serra dos pretos forros”. Que se tratava de área remota da cidade é algo que pode ser acompanhado através da informação de que, pela altura da primeira metade do século XIX, havia sido uma chácara, tendo deixado de sê-lo para a construção, ali, da casa de correção.


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