Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 1, jan./abr. 2024

Memória e história: potências e tensões nos usos de acervos privados | Dossiê Temático

A cidade marginal e seus invisíveis

Um olhar a partir do Diário de Moscou, de Walter Benjamin

The marginal city and its invisibles: a look from the Moscow Diary, by Walter Benjamin /
La ciudad marginal y sus invisibles: una mirada desde el Diario de Moscú, de Walter Benjamin

Alessandro Gomes Enoque

Doutor em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil.

alessandroenoque@gmail.com

Luiz Alex Silva Saraiva

Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Departamento de Ciências Administrativas e do Programa de Pós-Graduação em Administração da UFMG, Brasil.

saraiva@face.ufmg.br

Resumo

Este artigo tem por objetivo realizar uma leitura da sociedade moscovita pós-revolucionária, analisando, a partir dos relatos contidos no Diário de Moscou, escritos por Walter Benjamin no período entre 6 de dezembro de 1926 e o fim de janeiro de 1927, as representações da cidade marginal e de seus personagens “invisíveis”, nas dimensões do trabalho, do consumo ou da cidade.

Palavras-chave: Walter Benjamin, Diário de Moscou, diário, cidade.

Abstract

This article aims to carry out a reading of post-revolutionary Moscow society, analyzing, based on the reports contained in Moscow Diary, written by Walter Benjamin in the period between December 6, 1926 and the end of January 1927, the representations of the marginal city and its “invisible” characters, whether in the dimensions of work, consumption or the city.

Keywords: Walter Benjamin, Moscow Diary, diary, city.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo realizar una lectura de la sociedad moscovita pos revolucionaria, analizando, a partir de los informes contenidos en Diario de Moscú, escritos por Walter Benjamin en el período comprendido entre el 6 de diciembre de 1926 y finales de enero de 1927, las representaciones de la ciudad marginal y sus personajes “invisibles”, ya sea en las dimensiones del trabajo, del consumo o de la ciudad.

Palabras clave: Walter Benjamin, Diario de Moscú, diario, ciudad.

Introdução

Na primeira página de um dos seus primeiros diários conhecidos (A minha viagem à Itália), Walter Benjamin, ainda com vinte anos de idade e viajando com alguns de seus amigos da Universidade de Freiburg, entre eles Erich Katz, Franz Sachs e Friedrich Simon, escreve premonitoriamente: “A viagem nascerá do diário que pretendo escrever. Gostaria que a partir dele se fosse revelando a realidade total, a síntese serena e óbvia, essenciais a uma viagem com intuitos culturais e que constituem a sua essência”. E continua: “E esta minha intenção é tanto mais irrecusável quanto mais penso no fato de que nenhuma vivência particular conseguiu marcar de forma expressiva a impressão da viagem em sua totalidade”.

É comumente aceito que o filósofo alemão tenha escrito, ao longo de sua breve e trágica vida, uma série de diários e apontamentos de viagem que relatam suas vivências em terras estrangeiras, seja na condição de turista, seja como exilado (Itália, França, Noruega, Dinamarca, Riga, Moscou, Espanha e Ibiza). Tais registros pessoais, espelhos de suas “peregrinações” e, por que não dizer, “iluminações profanas”, em um período conturbado da história europeia, e carregados, muitas vezes, de uma intimidade que nos apresenta o homem por trás do intelectual, tratam, fundamentalmente, de três eixos principais: a política (o fascismo italiano, a revolução russa de 1917 e o estalinismo russo), a literatura e o pensamento (as passagens parisienses e os diálogos com Brecht) e, por fim, a paisagem e as formas de vida dos lugares (Ibiza, Riviera, Noruega). São, ainda, fonte de inspiração e matéria-prima para uma série de obras, crônicas, textos jornalísticos, narrativas de imaginação, impressões pessoais não publicadas, entre outras. Nessa direção, de acordo com Barrento (2022, p. 8), “os diários de Benjamin são muitas vezes a fonte de outros escritos, e registram um trabalho do olhar e do pensar que frequentemente dá origem aos mais diversos tipos de textos”.

Dentre os diversos relatos escritos por Walter Benjamin ao longo de sua vida, destaco, para fins deste artigo, em especial, aquele que foi produzido pelo autor entre 6 de dezembro de 1926 e o fim de janeiro de 1927. De acordo com Scholem (1989, p. 11), os Diários de Moscou são o “documento mais pessoal, total, impiedosamente franco que possuímos sobre um período importante” da vida de Walter Benjamin. E mais à frente: “O que temos aqui [nos diários] é um fragmento autônomo, fechado sobre si mesmo, tratando de uma fase de grande importância na vida de Benjamin, que nos é apresentada totalmente sem censura – o que significa, principalmente, intocada por sua própria autocensura”. Além disso, como bem destaca Bolle (2022, p. 222), o valor dos diários de Moscou estaria, fundamentalmente, em seu caráter histórico, uma vez que Benjamin realiza, ali, uma “observação não censurada da cena política e cultural” dos primeiros momentos da revolução russa de 1917. Benjamin, ainda de acordo com o autor, seria, assim, uma testemunha ocular, a partir de sua vivência numa pequena célula social, de como o poder se organiza no centro de uma potência mundial em nascimento. Dito em outras palavras, Seligmann-Silva (2009, p. 162) chama a atenção para o fato de que esse caráter testemunhal do diário faz com que ele se torne “parte” do evento narrado e não uma “observação de segunda ordem” (por mais equivocada que essa percepção possa ser). Para o autor, o diário fundiria, fundamentalmente, “autor”, texto e temporalidade.

Quanto ao conteúdo do relato, Seligmann-Silva (2009, p. 165) afirma que, na escrita dos diários de Moscou, “Benjamin não procurou dissimular os diversos tons de seu texto, que são tanto do diário, como do relato de viagem, da confissão, do romance, da fisionomia de cidades, assim como o da sociologia e o da reflexão poetológica”. Complementarmente, para Bolle (2022, p. 225), os diários de Moscou apresentam um Benjamin “inseguro” e “vacilante”, vivenciando uma “tensão interior” que o fazia oscilar entre “os valores do coletivismo e do individualismo”, duvidar acerca de sua filiação ao partido comunista alemão, bem como levantar questões sobre o seu papel como crítico e escritor.

Embora haja uma série de estudos que analisem os diários de Moscou a partir de uma diversidade de olhares (Seligmann-Silva, 2009, 2020; Silva, 2014a, 2014b; Bolle, 2022), são raros aqueles que tratam de temáticas pertinentes às margens da cidade de Moscou em meados da década de 1920 e seus subúrbios, bem como os diversos personagens “invisíveis” (tornados visíveis por Walter Benjamin em seu diário), seja nas dimensões do trabalho, do consumo,1 seja nas da cidade (vendedores ambulantes, mendigos, bêbados, entre outros).

O objetivo principal deste artigo consiste, portanto, em analisar as representações da cidade marginal e de seus personagens “invisíveis” a partir dos relatos contidos nos diários de Moscou de Walter Benjamin. Busca-se, aqui, dessa maneira, realizar uma leitura da sociedade moscovita de meados da década de 1920 sob a ótica daquilo que é marginal, excluído, desprezado, desclassificado e, por que não dizer, descartado. Como consequência dessa análise, será possível, complementarmente, lançar algumas luzes sobre as contradições presentes no processo revolucionário russo (especialmente no tocante à questão das desigualdades e diferenças sociais), desmistificando, assim, uma falsa ideia de homogeneidade diante dos fatos e acontecimentos ocorridos naquele período.

Este artigo é composto, além desta introdução, das seguintes seções: “A modernidade e seus críticos”, “A sociedade intimista e a escrita do diário: algumas reflexões”, “A cidade marginal e seus invisíveis: reflexões a partir do Diário de Moscou, de Walter Benjamin” e “Considerações finais”.

A modernidade e seus críticos

De acordo com Löwy (2014, p. 41), havia, entre os anos de 1890 e 1933, uma corrente intelectual da cultura alemã em que predominava todo um estado de espírito de desconfiança em relação à modernidade, ao capitalismo, ao industrialismo, bem como ao liberalismo. Tal “pessimismo cultural”, compreendido enquanto um olhar desencantado sobre a modernidade, foi avaliado, pelo autor, como “uma das expressões da visão de mundo romântica ‘tardia’ do fim do século”, que não poderia ser confundido pelas suas afinidades eletivas com a corrente literária dos anos 1800. Ao contrário, Löwy (p. 43) defende que o romantismo alemão do século XIX se configurava como um “protesto contra a civilização capitalista/industrial moderna em nome de valores do passado”, que poderia ser dividido em, pelo menos, três polos principais: a) os tradicionalistas (que sonhavam com um retorno ao paraíso pré-capitalista); b) os utopistas (que investiam a nostalgia do passado num projeto futuro); e c) os “românticos resignados” (que não acreditavam na possibilidade de restauração dos valores pré-modernos, e muito menos em uma utopia futura).2

Dentre este último grupo, pode-se destacar o papel desempenhado por intelectuais como Max Weber, Georg Simmel, Robert Michels, Karl Mannheim, entre outros. Tratando do conceito de “habitáculo de aço” (stahlhartes Gehäuse), Weber (2001, p. 34) afirma, por exemplo, que

a empresa dos dias atuais (ordem econômica capitalista) é um imenso cosmos, no qual o indivíduo nasce, e que se apresenta a ele, pelo menos como indivíduo, como uma ordem de coisas inalterável, na qual ele deve viver. Obriga o indivíduo, na medida em que ele é envolvido no sistema de relações de mercado, a se conformar às regras de ação capitalistas. O fabricante que permanentemente se opuser a estas normas será economicamente eliminado, tão inevitavelmente quanto o trabalhador que não puder ou não quiser adaptar-se a elas será lançado à rua sem trabalho.

Dentro dessa perspectiva, para o autor, o “habitáculo” moderno representaria, metaforicamente, a perda da liberdade individual e a instauração, através do capitalismo, de um sistema de dominação ao mesmo tempo absoluto e impessoal. Em uma ótica semelhante, Simmel (1973, p. 11) aponta que

os problemas mais graves da vida moderna derivam da reinvindicação que faz o indivíduo de preservar a autonomia e individualidade de sua existência em face das esmagadoras forças sociais, da herança histórica, da cultura externa e da técnica da vida. A luta que o homem primitivo tem de travar com a natureza pela sua existência física alcança sob esta forma moderna sua transformação mais recente.

É importante destacar que essa concepção trágica da vida industrial capitalista no século XIX não é, de forma alguma, exclusiva dos “românticos resignados”. Marx (1988) já apontava tais elementos de uma maneira extremamente contundente, por exemplo, no capítulo XIII (“Maquinaria e grande indústria”) da seção IV (“A produção da mais-valia relativa”) de O capital. Ali, o autor afirma:

Viu-se que a grande indústria supera tecnicamente a divisão manufatureira do trabalho, com sua anexação por toda a vida de um ser humano inteiro a uma operação de detalhe, enquanto, ao mesmo tempo, a forma capitalista da grande indústria reproduz ainda mais monstruosamente aquela divisão do trabalho, na fábrica propriamente dita, por meio da transformação do trabalhador em acessório consciente de uma máquina parcelar e, em todos os outros lugares, em parte mediante o uso esporádico das máquinas e do trabalho das máquinas, em parte por meio da introdução de trabalho feminino, infantil e não qualificado como nova base da divisão do trabalho. (Marx, 1988, p. 85)

Tratando mais pormenorizadamente dos impactos do capitalismo na vida das grandes cidades, convém sublinhar a análise que o jovem Engels faz, em 1845, sobre a Situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Nessa importante obra, citada, inclusive, por Walter Benjamin em seu manuscrito “A Paris do segundo império na obra de Baudelaire”, Engels (2010) faz uma descrição nua e crua da realidade vivida pela classe trabalhadora inglesa e sua busca pela sobrevivência.

Uma cidade como Londres, onde é possível caminhar horas e horas sem sequer chegar ao princípio do fim, sem encontrar o menor sinal que faça supor a vizinhança do campo, é verdadeiramente um caso singular. [...]. Mas os sacrifícios que tudo isso custou, nós só os descobrimos mais tarde. Depois de pisarmos, por uns quantos dias, as pedras das ruas principais, depois de passar a custo pela multidão, entre as filas intermináveis de veículos e carroças, depois de visitar os “bairros de má fama” desta metrópole – só então começamos a notar que esses londrinos tiveram de sacrificar a melhor parte de sua condição de homens para realizar todos esses milagres da civilização de que é pródiga a cidade, só então começamos a notar que mil forças neles latentes permaneceram inativas e foram asfixiadas para que só algumas pudessem desenvolver-se mais e multiplicar-se mediante a união com as de outros. Até mesmo a multidão que se movimenta pelas ruas tem qualquer coisa de repugnante, que revolta a natureza humana. Esses milhares de indivíduos, de todos os lugares e de todas as classes, que se apressam e se empurram, não serão todos eles seres humanos com as mesmas qualidades e capacidades e com o mesmo desejo de serem felizes? (Engels, 2010, p. 67-68)

No que diz respeito às análises que Walter Benjamin fez acerca da modernidade (e, por consequência, a natureza “desencantada” e “profana” do capitalismo) e da grande metrópole, pode-se sublinhar, a princípio, que elas se encontram esparsas ao longo de sua obra. Não seria errôneo afirmar, também, que tais reflexões percorrem toda a trajetória de vida do próprio autor. Assim, podem ser observadas análises dessas temáticas em fragmentos escritos em sua juventude (Capitalismo como religião) ou sobre a sua infância (Rua de mão única e Infância berlinense: 1900), nas clássicas teses Sobre o conceito de história (escritas perto do fim de sua vida em 1940), em seu longo projeto das passagens parisienses (Passagens), bem como em suas cartas e diários.3

Assim, no fragmento Capitalismo como religião, de caráter essencialmente anticapitalista e escrito pelo autor em sua fase pré-marxista, Benjamin (2013) defende a ideia de que o capitalismo teria uma natureza intrinsecamente religiosa. Dito de outra forma, o que o autor está afirmando, em poucas linhas, é que o capitalismo seria a própria religião em si, e não apenas favorecido de alguma forma por uma ideologia religiosa qualquer. Como forma de defender o seu argumento, Benjamin aponta que a “religião capitalista” seria composta de quatro traços principais: a) é uma religião puramente cultual; b) que propaga um culto permanente; c) este culto não é expiatório, mas culpabilizador; e d) seu Deus precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua culpabilização. Nota-se, a partir daí, que o autor eleva a crítica ao caráter desencantado da realidade capitalista a um patamar superior. Para Benjamin, a modernidade poderia ser caracterizada, dessa maneira, pela hegemonia de uma “ideologia religiosa profana” (realidade nunca antes vista) que afasta, coopta e/ou enfraquece as demais, bem como subjuga seus “fiéis” a um culto sem trégua e que imprime uma culpa insuportável sobre aqueles que não têm dinheiro (e, portanto, não consomem), que estão atolados em dívidas ou, contemporaneamente, que não são “empreendedores”. Em uma reflexão extremamente válida para a realidade atual, de acordo com o autor, na ordem capitalista, os “infiéis” (pobres) seriam culpados de sua própria exclusão e estariam fora da graça pela vontade de Deus expressa nos mercados.

Outra faceta trágica da modernidade seria, segundo Benjamin (2019b), a ideia de que o progresso levaria a humanidade, necessariamente, à destruição tanto do homem quanto da natureza. Tal reflexão encontra-se presente, especialmente, na tese IX de Sobre o conceito de história (um dos mais importantes fragmentos da obra benjaminiana), na qual o autor sugere uma correspondência entre a modernidade (ou o progresso) e a condenação ao inferno:

Existe um quadro de Klee intitulado “Angelus Novus”. Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade. (Benjamin, 2019b, p. 87)

De acordo com Löwy (2005), a concepção benjaminiana de modernidade estaria, assim, próxima da noção de inferno, uma vez que o filósofo alemão vê, no último, o universo da eterna repetição, do sempre igual. Dito de outra forma, para Benjamin (2019b), a sociedade moderna, dominada pelas mercadorias, seria o locus privilegiado de uma “punição sisífica” eterna contra as “vítimas da história”.

No que diz respeito à concepção de modernidade no projeto das Passagens (escrito entre os anos de 1927 e 1940), pode-se dizer que, para Benjamin (2019c), a produção imagética proveniente da indústria cultural capitalista teria como uma de suas características principais a instauração de uma lógica que privilegia sempre o novo, o moderno. Assim, tudo aquilo que seria, de alguma forma, “antigo” (inclusive o sonho de formas sociais alternativas) estaria, pelo menos simbolicamente, superado ou poderia ser “ressignificado” pelo capitalismo. A perpetuação de tal lógica teria, para o autor, como um de seus objetivos principais, a construção de uma visão ideologizada na qual o modo de produção capitalista seria o último e definitivo estágio da vida social (que invisibiliza os anteriores). Além disso e aliado a uma concepção positiva do progresso técnico-científico, o capitalismo buscaria produzir, “novamente” e “cinicamente”, na mente da classe trabalhadora, a utopia de uma sociedade sem classes (“igualitária” e “livre”).

Esse caráter mistificador da ideologia burguesa do progresso aparece, ainda, nas análises que Walter Benjamin faz acerca da Paris, a capital do século XIX (título dos dois exposés escritos pelo autor em 19354 e 19395), bem como no texto “A Paris do segundo império na obra de Baudelaire”. Tais análises, que parecem convergir em uma crítica ao projeto de haussmannização de Paris (trabalho de abertura de grandes bulevares no centro, destruindo os bairros que eram, historicamente, foco de levantes populares), caminham na direção de que tal empreendimento, apresentado enquanto operação de embelezamento, renovação e modernização da cidade, esconderia, na verdade, “seu caráter homogeneizador, sua repetição infinita do mesmo, sob a coloração da novidade, seu apagamento [...] da experiência coletiva e da memória do passado” (Löwy, 2019, p. 96).

O ideal urbanístico de Haussmann6 eram as visões em perspectiva através de longos traçados de ruas. Isso corresponde à tendência continuamente manifesta no século XIX de enobrecer necessidades técnicas por meio de objetivos artísticos. As instituições do poder laico e espiritual da burguesia deveriam encontrar sua apoteose no enquadramento das avenidas; antes de sua conclusão, estas eram recobertas por lonas e descerradas qual monumentos [...]. O aumento dos aluguéis impele o proletariado para os subúrbios. Com isso, os bairros de Paris perdem sua fisionomia própria. Surge o “cinturão vermelho” operário. Haussmann denomina a si mesmo de “artista demolidor”. Sentia-se predestinado à sua obra, fato que enfatiza em suas memórias. Entretanto, provoca nos parisienses estranhamento em relação à sua cidade. Nela não se sentem mais em casa. Começam a tomar consciência do caráter desumano da grande cidade. (Benjamin, 2019c, p. 67-68)

É dentro desse contexto que Benjamin (2019a) denuncia, à luz da poesia baudelairiana (“Abel e Caim” e “As ladainhas de Satã”), a expulsão “de milhares de existências desornadas” que passam a viver, miseravelmente, “nos submundos de uma grande cidade”, enquanto a burguesia desfruta, tranquilamente, de seus parques e cafés. Além disso, pinta, em cores visíveis, a miríade de personagens “deserdados” da metrópole moderna (“pobres diabos que passam por uma vitrine cheia de coisas belas e caras”): o trapeiro, o flâneur, a prostituta, o bêbado, o mendigo, entre outros.

Há, ainda, para Benjamin (2019c), um claro movimento do indivíduo moderno burguês em direção ao espaço de seu domicílio. Opondo-se, pela primeira vez, ao local de trabalho, o intérieur passa a ser, nas palavras do filósofo alemão, o “refúgio do homem desrealizado”, a “sustentação de suas ilusões”, bem como o “refúgio de sua arte”. De acordo com Benjamin (p.63), o

intérieur não apenas é o universo, mas também o invólucro do homem privado. Habitar significa deixar rastros. No intérieur esses rastros são acentuados. Inventam-se colchas e protetores, caixas e estojos em profusão, nos quais se imprimem os rastros dos objetos de uso mais cotidiano. Também os rastros do morador ficam impressos no intérieur.

Como será visto na seção a seguir, um desses rastros da intimidade do homem burguês moderno é, exatamente, o diário. Esses documentos centrados no “eu” alcançaram, segundo Gay (1999), um volume sem precedentes e com intensidade inigualável, como repositórios dos relances da vida introspectiva burguesa do século XIX.

A sociedade intimista e a escrita do diário: algumas reflexões

De acordo com Sennett (1988), dois dos impactos causados pelo recrudescimento do capitalismo industrial aliado à cultura pública urbana descritos na seção anterior foram, respectivamente, uma certa privatização da vida da família burguesa (aqueles que detinham meios para se proteger dos traumas do capitalismo do século XIX afastaram-se, gradualmente, da ordem pública em direção ao refúgio idealizado do domicílio, um mundo exclusivo, onde os valores morais atingiriam um grau mais elevado que no extérieur), bem como uma “mistificação” da vida material em público, especialmente em matéria de roupas, causada pela produção e distribuição em massa (a produção de uma variedade de mercadorias pela máquina, vendidas em lojas de departamento, teve grande êxito junto ao público, não por intermédio de apelos à utilidade do bem ou ao seu preço, mas ao capitalizar essa mistificação).

Mesmo quando se tornaram mais uniformes, as mercadorias físicas dotadas, ao serem apregoadas, de qualidades humanas, de maneira a se tornarem mistérios tentadores que tinham de ser possuídos para ser compreendidos. Marx chamou a isso de “o fetichismo das mercadorias”. Ele foi apenas um dentre os muitos que se impressionaram com a confluência da produção em massa, a homogeneização da aparência e, mais ainda, com o fato de se revestir de coisas materiais como atributos ou associações próprias à personalidade íntima. (Sennett, 1998, p. 35-36)

Além disso, ainda conforme o autor, o silêncio e o isolamento em meio à visibilidade tornaram-se a marca dominante do comportamento do indivíduo moderno no espaço público. No plano do privado, ao contrário, passou a reinar uma certa “imaginação psicológica íntima” refletida, por exemplo, em artefatos como cartas e diários. Assim, Sennett (1998, p. 17) chama a atenção para o fato de que, na modernidade, “multidões de pessoas estão agora preocupadas, mais do que nunca, apenas com as histórias de suas próprias vidas e com suas emoções particulares”.

Quanto às semelhanças entre a escrita epistolar e a escrita do diário, Diaz (2014) aponta, por exemplo, que os dois documentos podem ser localizados no terreno do íntimo (seriam, portanto, “ego documents”). Em uma perspectiva semelhante, Gay (1999, p. 359) aponta que

a conversa silenciosa que os diaristas mantinham se beneficiava de outro fenômeno cultural moderno [...]: a privacidade. Eles podiam escrever com toda a liberdade porque esperavam que o diário, guardado à chave na gaveta da escrivaninha ou engenhosamente ocultado, seria inviolável. Em suma, os diários, como as cartas, só podiam servir de confissão se houvesse a segurança de que apenas os eleitos teriam acesso a ele.

É importante destacar, porém, que a complexidade do diário (bem como da carta)7 não pode ser medida, unicamente, pela ótica da intimidade. Um primeiro aspecto levantado por Seligmann-Silva (2009) é o de que, no diário, podemos identificar, claramente, as marcas e traços do presente de sua escritura. Para o autor, “o diário produz páginas que se embaralham com a vida de seu autor-protagonista. Nele somos tocados pelo ar que esse personagem respirava”. E continua: “Tendemos a ver nele [no diário] um testemunho, ou seja, um índice, metonímia, e não uma metáfora, que é tradução imagética e mais distanciada dos fatos arrolados” (p. 162). Como parte integrante do evento narrado e não como observação de segunda ordem, o diário é carregado, conforme o autor, de um forte “teor testemunhal” que funde autor, texto e temporalidade.

Para Gay (1999), o registro dos eventos correntes vivenciados em um diário teria, como uma de suas funções principais, a tentativa, por parte de seu portador, de evitar o esquecimento de fatos passados e, ao mesmo tempo, quando fosse necessário, permitir um retorno narcísico (ou doloroso, como no caso de eventos traumáticos) aos momentos significativos de sua vida.

A temporalidade intrínseca à escrita do diário é apresentada por Diaz (2014, p. 235) em termos complementares. Para a autora, o diário teria a função de “exorcizar essa inquietante fluidez do tempo”, razão pela qual “o diarista conta escrupulosamente os dias”. Seria, assim, nas mãos de seu portador, uma arma de uma “luta quixotesca” contra o tempo que avança e desgasta a vida humana. Ainda de acordo com a autora, o diarista perseguiria, fundamentalmente, “uma tentativa aleatória de resgate e capitalização do tempo”, transformando o diário em um memorial travestido de relicário, destinado a ser conservado para ser exumado posteriormente.

Assim, o diário não é um "rascunho de si" [...], mas a existência é que seria um rascunho do diário, convocado para arrumá-la um pouco. (Diaz, 2014, p. 236)

Tais apontamentos parecem levar ao que Seligmann-Silva (2009) chama de “escrita performática do diário”. Para o autor, o diarista não elegeria somente o que vai inscrever do real que lhe cerca, mas, sobretudo, criaria um “universo íntimo e a realidade que lhe envolve conforme sua capacidade de transpor e saltar entre imagens e palavras, palavras e imagens” (p. 163). Dessa maneira, haveria, no ato de escrita do diário, uma certa “força perlocutória de convencimento” que faz com que este artefato transite entre, potencialmente, a ficção e o real.

Uma outra característica importante da escrita do diário seria o seu caráter autorreflexivo, íntimo, solitário e, por que não dizer, secreto. Para Gay (1999, p. 364), em uma citação do acadêmico e crítico Henri-Frédéric Amiel, por exemplo, o diário seria, ao mesmo tempo,

meu diálogo, minha companhia, meu sócio e confidente. E também o meu consolo, minha memória, meu eco, meu bode expiatório, o reservatório de minhas experiências íntimas, meu itinerário psicológico, minha proteção contra o mofo do tempo, minha desculpa para estar vivo, quase a única coisa útil que vou deixar.

É dentro dessa perspectiva, por exemplo, que Diaz (2014) apresenta o diário como uma espécie de “consciência íntima”, e o diarista como um praticante voluntário da “religião do segredo”. Esse caráter intimista do diário refletiria, ainda, segundo a autora, em uma escritura do diário plena de naturalidade, espontaneidade e, embora haja controvérsias, de autenticidade.

Por fim, cumpre ressaltar aquilo que Diaz (2014) considera como sendo o caráter fenomenológico da escrita do diário. Nessa perspectiva, o diário teria um caráter de “exploração das dimensões da existência pessoal revelada a si mesma na experiência vivida”. E complementa: “Exploratória e experimental, a escrita (diarista) faz existir o ‘Eu’ numa infinidade de posturas de expressão que lhe permitem afastar-se dos conformismos obrigatórios da vida social. A carta [...] legitima o interesse que o indivíduo manifesta por si mesmo” (p. 238).

Na seção seguinte, será mais bem trabalhada a experiência vivida por Walter Benjamin como observador atento de uma metrópole (Moscou) que transitava, no período de fins de 1926 e início de 1927, entre imagens dialéticas opostas (moderno/tradicional, centro/margem, revolução/conformação, sagrado/profano, entre outras).

A cidade marginal e seus invisíveis: reflexões a partir do Diário de Moscou de Walter Benjamin

Em 15 de dezembro de 1926, Benjamin (1989, p. 33) escreve, em seu Diário de Moscou, que somente conhecemos “uma região depois de experimentá-la no maior número possível de dimensões [...]. É necessário ter entrado num lugar a partir de cada uma das quadro direções para dominá-lo e, mais ainda, é preciso também sair dele por cada uma delas”. De outro modo, “ele vai aparecer inesperadamente no caminho sem que estejamos preparados para encontrá-lo. Numa etapa mais adiantada, nós o procuramos e o utilizamos como ponto de referência”. Tais reflexões repercutem, sobremaneira, o caráter complexo e multifacetado do diário escrito pelo autor entre os dias 6 de dezembro de 1926 e fins de janeiro de 1927 na cidade de Moscou.8 Quanto a esse aspecto, Seligmann-Silva (2009) chama a atenção para o fato de que Benjamin utilizou diversos tons ao escrever o seu diário (relato de viagem, confissão, fisionomia da cidade, sociologia, reflexão poetológica, entre outros).

Tal complexidade não tira, conforme apontado por Scholem (1989), o seu caráter pessoal, impiedosamente franco e sem censuras. Trata-se, de acordo com o autor, de um “fragmento autônomo, fechado sobre si mesmo, tratando de uma fase de grande importância na vida de Benjamin” (p. 11).

No que diz respeito aos motivos pelos quais Benjamin realiza sua viagem para Moscou, em um período extremamente significativo da história russa, Scholem (1989) destaca, ao menos, três. Em primeiro lugar, sua paixão por Asja Lacis. Terceira mulher na vida de Walter Benjamin, Asja Lacis era uma revolucionária russa de Riga que conheceu o filósofo alemão em maio de 1924 na cidade de Capri (Itália). Antes de viajar a Moscou, encontraram-se por duas vezes (Berlim/1924 e Riga/1925) e, posteriormente, viveram em Berlim por dois anos (1928-1930). Asja Lacis, que foi presa em um campo de prisioneiros durante os expurgos stalinistas, foi tema constante das anotações de Walter Benjamin durante sua estadia em Moscou e, talvez, um dos grandes amores (e, por que não dizer, desilusões) de sua vida. O segundo motivo da viagem para Moscou foi, segundo Scholem (1989), o desejo de Walter Benjamin de ter uma visão mais aprofundada da situação da Rússia pós-revolucionária, a busca por estabelecer algum tipo de vínculo (intelectual e profissional) com o país e, ainda, tomar uma decisão a respeito de sua filiação ou não ao partido comunista alemão (dúvida que o acompanhava há mais de dois anos). Por fim, o terceiro motivo diz respeito aos compromissos literários assumidos pelo autor antes de sua viagem que, inclusive, permitiram o financiamento de sua estadia em Moscou durante o período. Quanto a esse ponto, vale destacar que o Diário de Moscou nunca foi publicado por Walter Benjamin em sua íntegra. De acordo com Seligmann-Silva (2009), fragmentos desse diário foram lançados (com o título “Moscou”) em formato de artigo, em 1927, na revista Die Kreatur, dirigida por Martin Buber.

É importante destacar, ainda, a influência da leitura de Walter Benjamin de um artigo que o amigo e jornalista Siegfried Kracauer publicou na revista Frankfurter Zeitung em 13 de fevereiro de 1927, intitulado “Pariser Beobachtungen” (“Observações de Paris”). Em uma carta a Kracauer datada de 23 de fevereiro de 1927, Benjamin (1989, p. 146) escreve:

Por fim, estou planejando escrever algo “abrangente” sobre Moscou. Mas, como é do meu feitio, também esse trabalho vai se fragmentar em notas particularmente breves e desconexas, e, no mais das vezes, o leitor ficará entregue a seus próprios recursos. Mas, seja como for – e independentemente do que conseguirei transmitir a meus amigos –, estes dois meses foram uma experiência verdadeiramente incomparável para mim. Retornar enriquecido de experiências vividas e não de teoria – esta era minha intenção, e vejo-o como um lucro. Noto que, assim, aproximei-me involuntariamente de uma das características de vossas anotações sobre Paris, das quais, de fato, gostei imensamente. Permito-me dizer que minhas “observações” parisienses coincidem essencialmente com as do senhor.

De acordo com Seligmann-Silva (2009), Benjamin busca, a partir da escritura de seu diário (que, inclusive, serviu de laboratório para a experimentação de uma diversidade de procedimentos metodológicos e de apresentação que o perseguiram ao longo de sua vida e obra – Passagens, por exemplo), “uma epifania (negativa) a partir daquilo que tem de mais banal na superfície do real. [...] ele visava também evitar submeter a paisagem urbana e anímica a conceitos preestabelecidos” (p. 169).

Tendo em vista a diversidade de temáticas presentes no Diário de Moscou, que perpassam, dentre outras coisas, passeios pelos pontos turísticos da cidade, visitas a restaurantes, encontros com Asja Lacis, bem como relatos detalhados do processo revolucionário russo, optou-se, para fins deste artigo, pela análise das representações da cidade marginal e de seus personagens “invisíveis”.

Cumpre destacar, inicialmente, que a Moscou de meados da década de 1920 apresentada por Walter Benjamin é, em essência, um locus de ambiguidades e discrepâncias. Quanto a esse ponto, aliás, pode-se dizer que a utilização de imagens dialéticas opostas (moderno/tradicional, centro/margem, revolução/conformação, sagrado/profano, entre outras) configura-se como uma tônica tanto nos diários quanto na obra benjaminiana em geral.

Assim, uma das primeiras menções de Benjamin (1989) a características mais gerais da capital russa é apresentada, em seu diário, apenas poucos dias após sua chegada (no dia 11 de dezembro de 1926). Nela, o filósofo alemão chama a atenção para o frio do inverno que acometia a cidade e a dificuldade para caminhar pelas calçadas estreitas e cobertas com uma espessa camada de gelo escorregadia. Apesar disso, a arquitetura da cidade, composta, fundamentalmente, por diversas casas de um ou dois andares, apresentava, de acordo com Benjamin (p. 26), uma “aparência de cidade de veraneio”. E completa: “Olhando-se para elas sente-se o frio em dobro”. A tais elementos, que levam o autor a retratar Moscou como tendo um “ar provinciano”,9 ou melhor, como uma “metrópole improvisada”,10 somam-se as cores pálidas (porém, multicoloridas) das edificações, o seu aspecto de claustro, bem como o silêncio de suas ruas que não contavam, naquele momento, com o movimento frenético de carros (com suas buzinas), o ranger dos bondes e a gritaria dos vendedores de jornais e ambulantes. Depreende-se, dos pontos anteriores, a ideia de que a capital russa, naquele momento, apesar dos esforços de desenvolvimento técnico e econômico empreendidos pelo novo governo através do plano NEP (Nova Política Econômica),11 não havia atingido, ainda, na visão de Benjamin, um patamar considerado moderno, típico de uma cidade europeia como Berlim, por exemplo. No entanto, um traço de padronização estética típica da cidade moderna, aliado ao contexto de estabilização da revolução, poderia ser visto na utilização das cores (pálidas) das casas (e, por que não dizer, das roupas) que, de alguma forma, refletiam um certo estado de uniformidade social vigente no país naquele momento. Convém citar, ainda, o destaque dado por Benjamin em relação às “palavras comedidas”, “sussurradas”, no “tom suplicante dos mendigos”, utilizadas pelos comerciantes ilegais nas ruas da cidade. O aspecto ilegal desse comércio ambulante de Moscou (aliado, talvez, a um quadro de censura apontado por Walter Benjamin em alguns itens de seu diário) lança luzes sobre alguns personagens citadinos invisíveis como, por exemplo, os estrangeiros, os tipos exóticos, os imigrantes ou as mulheres.

Alguns mongóis parados junto ao muro de Kitai Gorod. [...] são aqui as únicas pessoas que provocam em nós uma compaixão involuntária por causa do clima. Ficam a uma distância de não mais de cinco passos uns dos outros e vendem pastas de couro, todas absolutamente idênticas. Deve existir alguma organização por trás disso, pois dificilmente podem levar a sério esta concorrência inútil. (Benjamin, 1989, p. 29)

É sempre surpreendente a quantidade de coisas exóticas que aparecem nesta cidade. Todos os dias, vejo inúmeros rostos mongóis no meu hotel. Mas recentemente, na rua em frente ao hotel, havia figuras com casacos vermelhos e amarelos, sacerdotes budistas [...] as cobradoras dos bondes, por outro lado, lembram-me povos primitivos do Norte. Ficam no seu lugar no bonde, envoltas em peles, como mulheres samoiédicas em seus trenós. (Benjamin, 1989, p. 122)

Encontrei de novo os chineses que vendem flores artificiais de papel, como aquelas que trouxe de Marselha para Stefan. Mas aqui parecem ser mais comuns os animais de papel em forma de exóticos peixes de alto-mar. Há, ainda, homens com cestos cheios de brinquedos de madeira, carrinhos e pás: os carrinhos, amarelos ou vermelhos; as pás de brinquedo, amarelas ou vermelhas. Outros passam com feixes de cataventos coloridos nos ombros. (Benjamin, 1989, p. 29)

No Okhotny riad, uma cena estranha: mulheres exibindo na mão aberta, sobre uma camada de palha, um único pedaço de carne crua, uma galinha ou algo semelhante, e oferecendo-o aos transeuntes. São vendedoras sem licença. Não têm dinheiro para pagar a licença para uma barraca, nem tempo para esperar na fila por um dia ou uma semana a fim de obtê-la. Quando chega a milícia, simplesmente fogem com sua mercadoria. (Benjamin, 1989, p. 66)

Durante meu longo passeio, pela manhã, notei ainda: feirantes, camponesas ao lado de seus cestos de mercadorias (às vezes, também, um trenó como aqueles que se usam aqui, no inverno, como carrinhos de bebê). Nos cestos estão maçãs, balas, nozes, bonecos de açúcar, meio escondidos debaixo de um pano. (Benjamin, 1989, p. 28)

Benjamin parece chamar a atenção, nesses pontos, para alguns personagens marginalizados da cidade moderna que lutam pela sobrevivência e são, em sua maioria, representantes de categorias desprivilegiadas da sociedade.

Não é de se estranhar, portanto, que Benjamin, em uma carta endereçada ao amigo Gershom Scholem datada de 10 de dezembro de 1926, apresente, com uma “surpresa realmente desagradável”, a cidade de Moscou (note que ele havia chegado há apenas alguns dias) como tendo “carestia inimaginável”, apesar de contar com “fatores dinâmicos extraordinariamente poderosos”.

Eis aqui, portanto, a verdadeira Rússia. Nas condições de vida difíceis, rudes deste inverno, não se perde jamais a consciência do quão distante de tudo encontra-se esta metrópole (dois e meio a três milhões de habitantes). Politicamente, esse número de habitantes certamente expressa um fator dinâmico extraordinariamente poderoso, mas do ponto de vista da civilização, torna-se uma força da natureza difícil de controlar. A carestia é inimaginável e foi uma surpresa realmente desagradável para mim, que, por princípio, não dou crédito às histórias dos “senhores viajantes” e dos “correspondentes”. (Benjamin, 1989, p. 144)

Um dos aspectos dessa carestia e que, com toda certeza, chamou a atenção do filósofo alemão à época, foi a existência de mendigos na capital russa. Em seu “inesgotável inventário das ruas”,12 Benjamin (1989) cruzou caminhos com diversos exemplos de mendicância. Em 14 de dezembro de 1926, o autor relata, em seu diário, a “passividade organizada” dos mendigos moscovitas que não contam, em um país que caminhava em direção ao socialismo, com um de seus pilares mais poderosos: “A consciência pesada da sociedade, que abre as carteiras mais facilmente que a piedade” (p. 32).13,14 Benjamin faz, aqui, portanto, uma clara crítica à ordem econômica capitalista, na qual o burguês (e, também, o pequeno-burguês) utiliza o instrumento da esmola como uma forma de expurgo do “pecado” de sua culpa no processo de acumulação do capital e exploração das classes desprivilegiadas. O “caráter religioso da mendicância” é um outro ponto observado por Benjamin na realidade da cidade de Moscou e consta em suas anotações do dia 20 de dezembro de 1926. Nelas, Benjamin (p. 46) afirma:

Veem-se muitos mendigos. Dirigem longas súplicas aos transeuntes. Começam a choramingar baixinho toda vez que passa por eles um pedestre do qual podem esperar algo. Vi também um mendigo exatamente na mesma pose – de joelhos, um braço estendido – do miserável para quem São Martinho corta seu casaco em dois com a espada.

É interessante destacar, aqui, o conhecimento e o uso perspicaz que Walter Benjamin faz da hagiografia católica (na figura de São Martinho)15 na descrição da cena do mendigo (que padece na neve), associando a figura do pobre à do oprimido. Em outro fragmento do diário (datado de 28 de dezembro de 1926), Benjamin (1989), mais uma vez, utiliza-se de uma imagem católica (a da partilha do pão) para destacar o caráter “religioso” da mendicância. Nele, o autor diz: “Após poucos passos, um menininho precipitou-se sobre mim, e quando finalmente compreendi que não queria dinheiro, mas pão, dei-lhe um pedaço” (p. 61).

O uso de imagens dialéticas opostas é explorado, ainda, pelo autor, ao apresentar as ambiguidades do sagrado e do profano na Moscou de meados dos anos 1920. É fato que Walter Benjamin, ao longo de sua estadia na cidade, visitou algumas igrejas (Catedral de São Basílio, Igreja de Nossa Senhora de Kazan etc.). A quantidade delas, aliás, foi mencionada por ele, diretamente, em uma anotação em seu diário datada de 29 de dezembro de 1926. Nela, Benjamin (1989, p. 65) afirma:

Moscou possui muito mais igrejas do que se supõe no início. Os europeus ocidentais as localizam pelas torres, que sobressaem no alto. É necessário, primeiro, ter se habituado a distinguir nos longos muros e inúmeras cúpulas baixas os complexos de igrejas ou capelas de mosteiros. Daí, então, torna-se claro por que, em certos lugares, Moscou parece tão apinhada quanto uma fortaleza: no Ocidente, torres baixas caracterizam a arquitetura profana.

As descrições, tanto internas quanto externas, das igrejas moscovitas são, inclusive, extremamente detalhadas e revelam um olhar atento do filósofo alemão acerca da religiosidade da população russa no período pós-revolucionário. Na visita à Catedral de São Basílio, em 14 de dezembro de 1926, Benjamin (1989, p. 32) contrapõe, por exemplo, os elementos sagrados e profanos: “A arquitetura religiosa bizantina parece não ter desenvolvido um estilo próprio de janela. O efeito é mágico, mas pouco aconchegante; janelas profanas e triviais, nas torres e salões de assembleia das igrejas, que se abrem para a rua como janelas de salas de estar”. E continua: “A parte inferior da Catedral de São Basílio poderia ser o andar térreo de uma magnífica mansão boiarda. As cruzes sobre as cúpulas parecem-se amiúde com gigantescos brincos pendurados do céu” (p. 32). A riqueza de detalhes não é diferente quando se refere à visita à Igreja de Nossa Senhora de Kazan (29 de dezembro de 1926).

Primeiro, entra-se numa antecâmara espaçosa, com algumas escassas imagens de santos. Parece estar, principalmente, à disposição da mulher que toma conta da igreja. É sombria; sua penumbra presta-se a conspirações. Em lugares como este, podem-se tramar os negócios mais escusos até pogroms, se for o caso. Ao lado, fica o espaço destinado ao culto religioso propriamente dito. No fundo, há algumas escadinhas que levam à plataforma estreita e baixa ao longo da qual, avançando, veem-se as imagens dos santos. A intervalos pequenos seguem-se os altares, um após o outro, cada qual indicado por uma luzinha vermelha. As paredes laterais estão tomadas por imagens muito grandes de santos. As partes das paredes que não estão cobertas por imagens são revestidas por ouro brilhante. Um lustre de cristal pende do teto ingenuamente pintado. De um dos bancos à entrada, observei a tradicional cerimônia da adoração das imagens. As pessoas saúdam as grandes imagens sacras fazendo o sinal da cruz; depois ajoelham-se, tocam o chão com a testa e, fazendo novamente o sinal da cruz, o fiel ou penitente dirige-se para a imagem seguinte. Diante das pequenas imagens cobertas por vidro que ficam sobre pequenos suportes, isoladas ou em fileiras, a genuflexão é omitida: as pessoas se curvam sobre elas e beijam o vidro. Aproximei-me e notei que ao lado das valiosas peças antigas, e sobre o mesmo suporte, havia ainda oleogravuras ordinárias, sem qualquer valor. (Benjamin, 1989, p. 64-65)

Dois elementos importantes podem ser destacados do fragmento acima. O primeiro é a caracterização da antessala como um lugar escuro e que seria, de acordo com o autor, propício a conspirações – “em lugares como este, podem-se tramar os negócios mais escusos até pogroms” (Benjamin, 1989, p. 64-65). Destaca-se, aqui, o uso crítico e irônico, por parte do autor, do termo pogrom. Apesar de ter múltiplos significados, refere-se, fundamentalmente, à perseguição violenta e deliberada de grupos étnicos ou religiosos (bastante utilizado para nomear a perseguição dos judeus pelos nazistas no período entre 1933 e 1945, de que o próprio Walter Benjamin foi vítima), aprovada ou não pelas autoridades locais, resultando na destruição de suas casas, negócios, centros religiosos ou mesmo de suas vidas. O termo tomou conotação internacional na medida em que, no período entre 1881 e 1884, houve, no sul da Rússia, uma perseguição massiva aos judeus, que acabaram emigrando para outras partes da Europa. Convém destacar que, mesmo após o período revolucionário russo, houve diversos pogroms, e não é, de maneira alguma, estranha a menção de Benjamin sobre a participação da Igreja Ortodoxa Russa na perseguição aos judeus.

Um outro elemento interessante que pode ser destacado do fragmento acima é o de que Benjamin preocupa-se, também, com a descrição da religiosidade russa da época, mostrando, dentre outras coisas, a devoção aos santos, as alegorias, os rituais de celebração, bem como os gestos dos fiéis. A religiosidade popular parece sofrer, no entanto, com algumas restrições sociais. É o caso, por exemplo, de uma visita narrada que o filósofo alemão faz, em 28 de dezembro de 1926, a uma “audiência judicial” no clube Krestiansky.16 Nessa audiência, por exemplo, uma camponesa estava sendo julgada por “curandeirismo com consequências fatais”, quando, na verdade, havia causado um aborto fatal na paciente, tendo sido condenada a dois anos de prisão.17

Benjamin (1989) parece observar, ainda, que o culto às imagens católicas na Rússia pós-revolução de 1917 estava sofrendo um amplo processo de transubstanciação em direção a uma vertente mais profana. É sintomático, nesse sentido, a menção que o autor faz, em 5 de janeiro de 1927, acerca do comércio de imagens de santos na feira do parque Sukharev que tinha, como companhia, a venda de artigos de papelaria.18 Além disso, Benjamin testemunha, em várias partes de seu diário, um certo recrudescimento do culto ao líder (Lenin, no caso), que parece substituir a adoração aos santos católicos e encontrava-se presente em clubes,19 lojas especializadas,20 institutos públicos, fábricas,21 no Kremlin, entre outros.

Agora, no entanto, há uma imagem de Lenin afixada à entrada, como se pagãos convertidos houvessem plantado uma cruz onde antes se faziam sacrifícios aos deuses. (Benjamin, 1989, p. 81)

Focando seu olhar para os subúrbios da capital russa, Benjamin (1989, p. 61) chama a atenção para o fato de que eles tinham, à época, uma aparência “mais selvagem do que no centro”, com “construções no estilo das casas de madeira das aldeias camponesas”. Benjamin parece delimitar, aqui, as fronteiras da metrópole moderna ao contrapor a cidade e o “campo” (tanto espacialmente quanto culturalmente). Não é aleatório, inclusive, que o autor caracterize Moscou como sendo uma cidade “amorfa”, “rural”, e que tenha visitado uma fábrica exatamente nos subúrbios no dia 3 de janeiro de 1927. É importante destacar que, nessa visita, inclusive, Benjamin aponta algumas outras ambiguidades e contradições da realidade russa, quais sejam, a convivência do trabalhador com máquinas e equipamentos que, de alguma forma, representariam o progresso técnico e material, ao lado de cartazes que alertam para os riscos do alcoolismo (expostos no interior da fábrica) e para hábitos de higiene adequados (uso de gaze como proteção contra moscas), bem como para os benefícios do consumo de leite.

Embora o uso disseminado do álcool tenha sido notado por Benjamin (1989) em sua visita à fábrica, apenas dois pequenos relatos sobre bêbados foram dignos de destaque para o filósofo alemão durante os dois meses de viagem: o primeiro em um bar (no dia 18 de dezembro de 1926) e o segundo em um passeio com Asja (30 de janeiro de 1927).

Da mesma forma, as menções aos trapeiros (tão presente no texto benjaminiano “A Paris do segundo império na obra de Baudelaire”), às prostitutas e aos flanêurs são bastante breves em seu diário. De acordo com Benjamin (1989, p. 82), os trapeiros são, em Moscou, uma “casta” que “desfila ruidosamente pelas ruas” com “seus sacos nas costas [...] seus chamados melancólicos” e “atravessam todas as ruas [...] uma ou mais vezes por semana”. Pode-se inferir, a partir disso, que estes personagens (tão comuns em uma cidade industrializada como Paris) ainda não haviam adquirido um status social relevante na Rússia pós-revolucionária. No que diz respeito às prostitutas, Benjamin não tece, exatamente, comentários específicos a elas, mas, sim, às casas de banho localizadas na rua Tverskaia, nas quais trabalham.

Nas ruas laterais a viagem melhorou: pegamos um caminho que eu não conhecia, passamos por uma casa de banhos e vimos um maravilhoso canto recôndito de Moscou. Asja contou-me das casas de banho russas; eu já sabia que são os verdadeiros centros da prostituição, como haviam sido na Alemanha durante a Idade Média. (Benjamin, 1989, p. 129)

Em relação ao flanêur, Benjamin (1989) não o define em seu relato exatamente, como em textos posteriores (não há qualquer menção ao termo nos diários). Parece haver, no entanto, por parte do autor (como pode ser observado na carta que ele escreve a Kracauer no dia 23 de fevereiro de 1927), uma intenção clara e verdadeira de vivenciar a cidade de Moscou e retornar dela enriquecido de experiências vividas e não de teoria. Quanto a esse ponto, Seligmann-Silva (2009, p. 169) chama a atenção para o fato de que há, por parte de Benjamin, uma tentativa, no diário, de “busca pelo esplendor ou brilho das constelações ‘coisais’, sem sucumbir ao positivismo realista”. Para o autor, Walter Benjamin buscava uma certa epifania a partir do que há de mais banal na superfície do real.

Por fim, convém apontar, aqui, os relatos (de alguma forma premonitórios daquilo que Benjamin iria trabalhar, mais adiante, em seu projeto das Passagens) das galerias, letreiros e vitrines de lojas da cidade de Moscou em meados da década de 1920 que, de alguma forma, fazem o contraponto com a invisibilidade das margens e de seus personagens. É preciso dizer, inicialmente, que os relatos de Walter Benjamin sobre esses temas aparecem, frequentemente, em seus diários. Em seus passeios pelas ruas de Moscou ou pelas galerias de lojas (“corredores comerciais superiores”), o filósofo alemão pôde contemplar, vivamente, o quanto o “caráter fetichista da mercadoria” encontrava-se presente na Rússia pós-revolução. É óbvio que tal contemplação pode, de alguma maneira, ter sido enviesada pelo olhar do homem burguês alemão, mas o fato é que as vitrines das lojas moscovitas guardavam, em si, na visão do próprio Benjamin, “a função arquitetônica das mercadorias” (Benjamin, 1989, p. 83).22 Dito de outra forma, a vitrine pode ser compreendida, pelo autor (como foi feita, anos mais tarde, em seu texto “A Paris do segundo império na obra de Baudelaire”), como sendo o “olho da alma mercadoria”.

Se existisse aquela alma da mercadoria de que Marx por vezes fala, gracejando, ela seria a mais cheia de empatia que alguma vez se encontrou no reino das almas, porque teria de ver em cada um o comprador a cuja mão e casa se quer acolher. [...]. Como as almas errantes que procuram um corpo, assim também ele entra quando quer na pessoa de um outro. [...]. As últimas palavras dão mesmo uma ideia muito clara daquilo que ela murmura ao ouvido do pobre diabo que passa por uma vitrine cheia de coisas belas e caras. Elas não têm o mínimo interesse nele, não entram em empatia com ele. (Benjamin, 2019a, p. 58)

Já em relação aos letreiros, que, de acordo com Benjamim (1989, p. 29), “ostentam uma bonita pintura primitiva”,23 há também, sinais de uma economia ainda não tão inserida em uma sociedade moderna de consumo. Nesse sentido, os letreiros flertam, de acordo com o autor, com tons pastéis, pálidos e “sujos” e, na maioria das vezes, “avançam em ângulo reto sobre a rua”, em nada se aproximam dos artefatos publicitários de economias capitalistas mais industrializadas da época. Vê-se, a partir disso, como o antigo e o moderno, de alguma forma, encontram-se representados, ambiguamente, nas portas dos estabelecimentos comerciais russos da época.

Considerações finais

Este trabalho teve, como objetivo principal, analisar as representações da cidade marginal e de seus personagens “invisíveis” a partir dos relatos contidos nos diários de Moscou de Walter Benjamin. Como pôde ser observado ao longo do texto, a Moscou visitada por Benjamin em meados da década de 1920 encontrava-se em um movimento de dupla transição. Por um lado, buscava consolidar a vitória da revolução russa de 1917 e alcançar as conquistas sociais prometidas a sua população e, por outro, através da implantação de uma política econômica com traços capitalistas, alcançar a modernidade técnica e industrial. Benjamin, que de alguma forma também se encontrava em encruzilhadas pessoais e profissionais – o amor não correspondido de Asja Lacis, a indefinição quanto à sua filiação ao partido comunista alemão, bem como as (im)possibilidades de estabelecimento de contatos profissionais com os jornais e intelectuais russos –, pôde descrever, de forma sincera e sem autocensura, em seu diário, as ambiguidades do desenvolvimento de uma metrópole (mesmo que embrionariamente se comparamos com o projeto das Passagens). Assim, a Moscou de Benjamin é, ao mesmo tempo, moderna e tradicional, sagrada e profana, utópica e arcaica, central e marginal, de paisagens altas e baixas. Ela carrega, em si, o seu passado (arquitetônico, cultural, religioso, entre outros), ao mesmo tempo em que se projeta no futuro (da revolução ou do capitalismo). Ela é, inspirado na tese IX das teses Sobre o conceito de história, o “anjo que parece preparar-se para afastar de qualquer coisa que olha fixamente”. O anjo que “tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas”. É o “anjo da história” que volta seus olhos para o passado e é arrastado pelo vendaval do progresso para o futuro. Essas contradições (que podem ser encontradas mesmo em diversas metrópoles contemporâneas) são, a partir da leitura dos diários de Benjamin, o pano de fundo de uma realidade social que, mesmo em um país onde o socialismo encontrava-se em construção, é inegavelmente desigual, com uma “carestia inimaginável”. Tal realidade (“surpreendentemente desagradável”) fez com que Benjamin lançasse o seu olhar sobre uma miríade de personagens invisibilizados: mulheres, estrangeiros, mendigos, imigrantes, bêbados, entre outros. Esses personagens, tão típicos da metrópole moderna, são apresentados, em seu diário, como aquilo que realmente são: os reais merecedores da redenção.

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Recebido em 5/8/2023

Aprovado em 26/12/2023


Notas

1 “pobre diabo que passa por uma vitrine cheia de coisas belas e caras [...]” (Benjamin, 2019, p. 58).

2 Conforme Löwy (2014, p. 45), o “romantismo resignado desenvolveu-se na Alemanha sobretudo a partir do fim do século XIX, quando o processo de industrialização capitalista do país parecia irreversível; consequentemente, a modernidade capitalista teve de ser aceita como fatalidade, um destino inexorável”.

3 Tendo em vista a impossibilidade de tratar, no âmbito deste artigo, de toda a bibliografia acerca dos conceitos de modernidade e, especialmente, de cidades na obra benjaminiana, optei, para fins deste trabalho, por tratar mais especificadamente dos diários de Moscou. Nesse sentido, alguns apontamentos que farei a seguir buscam apresentar os elementos mais gerais da abordagem benjaminiana dos conceitos supracitados.

4 O primeiro exposé (Paris, a capital do século XIX), não destinado à publicação, teria sido escrito por Walter Benjamin, em alemão, por volta de maio de 1935, e é composto de seis partes principais (“Fourier” ou “Passagens”, “Daguerre ou os panoramas”, “Grandville ou as exposições universais”, “Luís Filipe ou o intérieur”, “Baudelaire ou as ruas de Paris” e “Haussmann ou as barricadas”).

5 O segundo exposé, também intitulado Paris, a capital do século XIX, foi escrito pelo filósofo alemão, em francês, no ano de 1939. O texto, em alguns momentos, muito próximo do anterior, inova ao apresentar duas seções inéditas que são bastante elucidativas do projeto do autor, quais sejam, uma introdução e uma conclusão.

6 Georges-Eugène Haussmann (1809-1891) foi o responsável pelas propostas de remodelação do centro antigo de Paris, tornando-se referência no debate acerca da renovação do cenário urbano de diversas cidades do mundo em fins do século XIX e início do século XX. Sua postura de viés tecnicista e higienista determinou a destruição do tecido urbano histórico da cidade de Paris, dando lugar a uma nova configuração espacial definida por largos e amplos boulevards, ladeados por corpos de construção de gabarito homogêneo e fisionomia uniforme.

7 Embora a discussão acerca do gênero epistolar seja extremamente interessante e relevante para a obra benjaminiana, ela não será trabalhada neste artigo.

8 Convém destacar que as anotações do diário feitas por Walter Benjamin entre os dias 30 de janeiro e 1 de fevereiro de 1927 foram realizadas já em seu retorno na cidade de Berlim.

9 Termo utilizado por Walter Benjamin em uma anotação de seu diário do dia 18 de dezembro de 1926.

10 Idem.

11 Em março de 1921, Lenin adotou a implantação da NEP (Nova Política Econômica) a fim de reestruturar a economia e acabar com as desigualdades sociais, a fome e a miséria na Rússia. Para implantar a NEP, o governo russo permitiu a aplicação de práticas capitalistas, admitindo a entrada de capitais estrangeiros que financiaram a fundação de empresas privadas no setor do comércio varejista.

12 Walter Benjamin utilizou, em 1 de janeiro de 1927, em seu diário, a seguinte frase: “O inventário das ruas é inesgotável”.

13 “O mendigo não ê agressivo como no sul, onde a impertinência do esfarrapado trai ainda um vestígio de vitalidade. Aqui, trata-se de uma corporação de moribundos. Sobretudo nos bairros onde os estrangeiros têm seus negócios, as esquinas são cobertas de trouxas de farrapos, como se fossem camas num grande hospital a céu aberto chamado ‘Moscou’. A mendicância nos bondes é organizada de maneira diferente” (Benjamin, 1989, p. 32).

14 “Certas linhas circulares têm longas paradas no itinerário. Nelas, os mendigos entram sorrateiramente, ou uma criança coloca-se num canto do bonde e começa a cantar. Depois recolhe os copeques (moeda local). Muito raramente vê-se alguém dando esmolas. A mendicância perdeu seu pilar mais poderoso: a consciência pesada da sociedade, que abre as carteiras mais facilmente que a piedade” (Benjamin, 1989, p. 32).

15 “Glorioso São Martinho, nosso amigo e protetor, que ao dividir vosso manto com o mendigo que padecia de frio na neve encontrastes o próprio Senhor Jesus, ajudai-nos a saber partilhar o que temos com os mais empobrecidos que encontramos em nosso caminho, principalmente as crianças mais abandonadas, reconhecendo nelas a imagem de nosso divino mestre. Ó bom Jesus, por intercessão de São Martinho dai-nos os dons da caridade e do amor fraterno que nos fazem servir com desprendimento aos vossos filhos mais excluídos dessa terra. Amém. São Martinho, rogai por nós” (Oração de São Martinho).

16 Clube dos Camponeses, localizado na praça Trubnaia.

17 “Diante dela, numa cadeira, estava sentada a acusada, uma camponesa vestida de preto com uma grossa bengala nas mãos. Todos os participantes estavam bem-vestidos. A acusação era de curandeirismo com consequências fatais. A camponesa havia auxiliado em um parto (ou aborto) e, por algum erro de sua parte, causado o desfecho infeliz” (Benjamin, 1989, p. 62-63).

18 “Pela primeira vez vi em Moscou barracas com imagens de santos. A maioria destas é, à maneira tradicional, recoberta de prata, onde são impressas as dobras da vestimenta da Virgem. As únicas áreas coloridas são a cabeça e as mãos. [...] as barracas com imagens religiosas estão localizadas ao lado daquelas que vendem artigos de papelaria, de maneira que estão cercadas de retratos de Lenin por toda parte, como um prisioneiro por policiais” (Benjamin, 1989, p. 83).

19 “Pendurado na parede, um alto-relevo em madeira do mapa da Europa, com contornos esquematicamente simplificados. Quando se gira uma manivela ao lado, iluminam-se, um após o outro, em sequência cronológica, todos os pontos do mapa onde Lenin viveu na Rússia e no resto da Europa. Mas o aparelho funciona mal, há sempre muitos lugares acendendo ao mesmo tempo” (Benjamin, 1989, p. 80).

20 “Há retratos de Lenin, Kalinin, Rykov etc. nas paredes. O culto da imagem de Lenin em particular vai incrivelmente longe aqui. Existe uma loja na Kusnetzky most especializada em Lenin, onde se pode encontrá-lo em todos os tamanhos, poses e materiais. [...]. Imagens dele mais modestas encontram-se também nas cozinhas, lavanderias etc. da maioria dos institutos públicos” (Benjamin, 1989, p. 63).

21 “Começarei pelo nicho de Lenin: uma sala caiada, parede de fundo forrada de vermelho, fitas vermelhas com franjas douradas pendendo do teto. À esquerda, contra este fundo vermelho, está o busto em gesso de Lenin – tão branco quanto as paredes caiadas” (Benjamin, 1989, p. 77).

22 “No mercado, pode-se perceber a função arquitetônica das mercadorias: lenços e tecidos formam pilares e colunas, sapatos, valenki, pendurados numa cor, dão em fileiras sobre os balcões, tornam-se o telhado da barraca; grandes garmoshkias [acordeões] formam muros sonoros, muros de Memnon por assim dizer” (Benjamin, 1989, p. 83).

23 “Aqui, como em Riga, os letreiros das lojas ostentam uma bonita pintura primitiva: sapatos caindo de um cesto, um lulu fugindo com uma sandália na boca. Em frente a um restaurante turco, há duas placas suspensas, mostrando homens com barretes enfeitados de meias-luas, sentados a uma mesa posta. Asja tem razão quando diz que o povo quer ver sempre, até nas propagandas, a representação de algo concreto” (Benjamin, 1989, p. 29).


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