Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 1, jan./abr. 2024

Memória e história: potências e tensões nos usos de acervos privados | Dossiê Temático

Um fundo privado para compreender a presença da fotografia no arquivo público

O Fundo Última Hora do Arquivo Público do Estado de São Paulo

A private fonds to understand the presence of photography in the public archive: Fundo Última Hora of Arquivo Público do Estado de São Paulo / Un fondo privado para entender la presencia de la fotografía en el archivo publico: Fundo Última Hora del Arquivo Público do Estado de São Paulo

Bruno de Andrea Roma

Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil.

bruno.andrearoma@gmail.com

RESUMO

As condições de aquisição e o tratamento de fundos privados por arquivos públicos são elementos importantes para a compreensão da história desses fundos e das instituições que os abrigaram. Por meio do exame de relatórios e outros documentos, este artigo apresenta um estudo de caso que envolve a compra do Fundo Última Hora por parte do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Discute, a partir disso, as consequências desse processo.

Palavras-chave: arquivo; arquivo privado; fotografia; documento fotográfico; política de aquisição.

ABSTRACT

Acquisition conditions and treatment of private fonds by public archives are important elements for understanding the history of these fonds and the institutions that housed them. Through the examination of reports and other documents, this article presents a case study involving the purchase of the Fundo Última Hora of Arquivo Público do Estado de São Paulo. Based on this, it discusses the consequences of that process.

Keywords: archive; public archive; photography; photografic document; acquisition policy.

RESUMEN

Condiciones de adquisición y tratamiento de fondos privados en archivos públicos son elementos importantes para comprender la historia de estos fondos y de las instituciones que los albergaron. A través del examen de informes y otros documentos, este artículo presenta un estudio de caso sobre la compra del Fundo Última Hora por parte del Arquivo Público do Estado de São Paulo. Con base en eso, discute las consecuencias de ese proceso.

Palavras clave: archivo; archivo público; fotografía; documento fotográfico; política de adquisición.

A aquisição e o tratamento de conjuntos documentais por arquivos públicos

Compreender os arquivos públicos no Brasil necessariamente passa pelo levantamento histórico das biografias, trajetórias e circunstâncias de chegada dos conjuntos documentais por eles abrigados. Não é possível estudar a consolidação dessas instituições sem que se investigue o modo como seu corpo documental foi formado. É preciso considerar ainda mais do que a criação e acumulação dos documentos, ou a história administrativa de cada fundo, mas igualmente as motivações que os conduziram aos arquivos públicos e o tratamento a eles dispensado. Ao mesmo tempo em que esses conjuntos documentais têm como parte de sua história a chegada aos arquivos, também são responsáveis por promover transformações ou moldar a forma como essas instituições se estruturaram.

As instituições arquivísticas públicas brasileiras apresentam aspectos comuns no que se refere às suas características fundamentais. Trata-se de organizações voltadas quase exclusivamente para a guarda e acesso de documentos considerados, sem parâmetros científicos, como de valor histórico, ignorando a gestão de documentos correntes e intermediários na administração que os produziu. (Jardim, 1996, p. 7)

Como afirma Jardim, existe no Brasil uma tradição memorialística relacionada à criação e à atividade dos arquivos públicos, o que significa dizer que se compreende como sua vocação fundamental a preservação da memória dos territórios e sociedade em que estão inscritos, sejam municípios, estados ou até a federação. Por vezes essa vocação se sobrepõe ao papel de gestor da documentação pública, atividade que deveria ser essencial nessas instituições. Tem ficado cada vez mais claro, ao menos no meio especializado, que uma perspectiva excessivamente cultural dos arquivos públicos acabou por reduzir a natureza de suas funções. Isto é, a atividade dos arquivos públicos transcende seu papel mnemônico, e ignorar essa amplitude de funções pode prejudicar o seu funcionamento, por exemplo, distanciando-o da gestão documental pública.1 Sobre o cenário do estado de São Paulo no período do primeiro diagnóstico do Sistema de Arquivos do Estado de São Paulo (Saesp), no final da década de 1990, Bernardes afirma:

Era assustador para nós na época perceber que, dos 645 municípios [do estado de São Paulo], 5% apenas tinha arquivo instituído e, desses arquivos instituídos, a grande maioria atuava apenas como arquivo histórico. O que isso significa? Significa que eram quase um museu de documentos antigos, sem nenhuma vinculação com a rotina, com o dia a dia da administração municipal. Também sem nenhuma preocupação com os documentos correntes e com a gestão documental. (Arquivos..., 2015)

A memória, raridade ou valor histórico, que são atributos tão frequentemente associados aos documentos quando acolhidos por arquivos públicos, perdem o sentido quando esvaziados de amparo metodológico. Soma-se a isso a crônica dificuldade do Brasil para criar e implementar políticas públicas para arquivos, desconcerto que pode ser encoberto por um discurso de valoração carente de profundidade. Além disso, acervos que ficam à sombra desses discursos acabam por não acessar a estrutura pública de preservação no âmbito dos arquivos. Esse cenário é muito preocupante quando a existência de protocolos técnicos para a incorporação de documentos é elemento muito menos frequente do que deveria ser no cotidiano dessas instituições, imprimindo um caráter errático à chegada dos conjuntos documentais. Fato é que a incorporação de documentos aos arquivos públicos não costuma ser resultado de um sistema de arquivos ou de uma política de aquisição, o que reafirma a importância de estudar os percursos vividos pelos acervos. Nesse sentido, tal necessidade de reflexão se impõe não apenas aos fundos privados, mas também aos fundos públicos, ainda que por razões diferentes.

Quando pensamos nos fundos públicos, é preciso considerar a ausência de sistemas de arquivos para a maior parte das instituições arquivísticas do país, o que foi e ainda é responsável pelo caráter errático que marca a chegada de muitos desses fundos documentais, encaminhados por transferências pouco ordenadas. Nesses casos, mesmo produzidos pelo Estado, tais documentos não chegam aos arquivos públicos como resultado de recolhimentos pautados por avaliação arquivística e cumprimento de tabelas de temporalidade, mas conduzidos por decisões com motivações muito diversas. Apesar de tratar-se de tema muito importante, nesta reflexão não vamos discutir fundos públicos ou a existência de sistemas de arquivos. Vamos nos deter nos fundos privados, universo em que está inserido nosso objeto de estudo.2

Os fundos privados não compõem originalmente o sistema de produção documental público. Não poderiam estar previstos, portanto, na lógica de avaliação e recolhimento que deveria nortear a chegada de documentos aos arquivos. Ainda assim, observa-se a existência de documentação dessa natureza na maioria das instituições do país, tratando-se de parte fundamental do patrimônio documental nacional. O fato de entrarem nas instituições de forma extraordinária (Alberch i Fugueras, 2003) não significa que sejam exceções, pelo contrário. Nos arquivos públicos do Brasil, a presença de fundos privados e coleções é bastante frequente, particularmente os relacionados à imprensa, políticos ou personalidades regionais, agremiações ou entidades de classe, cartórios, igrejas e outras instituições cuja burocracia é ou já foi compartilhada com o Estado. É consenso que, na maioria das vezes, esse tipo de documentação complementa de forma muito pertinente o acervo acumulado pelas instituições. Ou ainda, é possível identificar em muitos deles interesse público, característica fundamental para justificar a presença de documentação privada sob a guarda da estrutura pública de preservação.

Mesmo assim, a aquisição e deliberação sobre o acolhimento ou não de um fundo privado a um arquivo público não pode ser fundamentada em juízos de ocasião. Poucas instituições públicas no Brasil possuem uma política de aquisição que norteie a entrada de documentação privada, ficando na maior parte dos casos a cargo de situações conjunturais a decisão sobre esse tipo de incorporação. Diante da extrema necessidade de otimização de recursos e pessoal, a existência desse protocolo é mais do que um amparo metodológico, é um instrumento de gestão. Não se trata aqui, importante reforçar, de desestimular o acolhimento de documentação privada por parte do Estado, mas de considerar que devem existir protocolos que garantam a pertinência desse processo e o planejamento de seu tratamento técnico. Sobre a importância de políticas de aquisição para arquivos, levemos em conta o seguinte:

a importância na definição de uma política de formação de acervo reside no fato de além de definir a natureza e linhas de acervo que serão abrigados, versar sobre os critérios que deverão orientar as atividades de avaliação, seleção, aquisição, preservação, assim como as condições de descarte de acervo, quando necessário. (Troitiño, 2017, p. 3)

A realidade das instituições, como dissemos, nem sempre é pautada por esse tipo de protocolo, e reforça ainda mais a necessidade de se investigar a história dos conjuntos documentais, campo fértil, mas pouco explorado na arquivologia brasileira. É muito conveniente também promover estudos sobre a história das gestões e dos projetos que pautaram a rotina e o desenvolvimento dessas instituições. Vale considerar que, em outras áreas do campo patrimonial, é muito recorrente a existência de estudos com essa abordagem, que ajudam, inclusive, a compreender a natureza do atribuído valor histórico que se identifica em determinados conjuntos materiais ou manifestações culturais. O autoconhecimento mais aprofundado traria profundos benefícios ao campo e contribuiria para o aprimoramento de instituições e da legislação. Arquivistas como Terry Cook (2018) e Tom Nesmith (1982; 2018) apontaram com muita ênfase a importância de estudos que abordem a história intelectual dos arquivos, das instituições, dos conjuntos documentais e da prática arquivística. Esses apontamentos destacam que, dentre outras vantagens, o processo de exame historiográfico contribui para o amadurecimento da arquivologia como disciplina e para a readequação de conceitos e práticas desse campo do conhecimento. Além disso, trata-se de acúmulo importante para a própria compreensão das contextualidades que envolvem os documentos, sobretudo depois de sua incorporação aos arquivos.

Quando acrescentamos ao debate sobre os fundos privados em arquivos públicos a fotografia como técnica de registro, ou seja, quando passamos a tratar de fundos em que predomina a presença de documentos fotográficos, observamos novos problemas se acumularem aos já constatados. A presença da fotografia nos arquivos apresenta desafios específicos e mobiliza um campo próprio de debate e produção de conhecimento. Há cerca de trinta anos se fala da dificuldade em encontrar o lugar do documento fotográfico nas discussões arquivísticas e, embora atualmente esse espaço já esteja mais consolidado e muito se tenha avançado nessas discussões, nem sempre se observa no cotidiano das instituições a absorção desses avanços de forma sinérgica.

A falta de questionamentos sobre a metodologia de tratamento desses registros, do ponto de vista de sua natureza documental, deu espaço ao desenvolvimento de uma abordagem que privilegia questões relativas à preservação dos suportes, numa forma de "compensação metodológica" que tenta suprir a falta de elaboração de um método de organização mais adequado desses documentos. Tratar fotografias em arquivos, em muitos casos significa sistematizar conhecimentos metodológicos relativos à conservação, restauração, preservação. Nesse sentido, a justificativa da separação desses registros de seu conjunto original para intervenções de conservação encontra no argumento da preservação dos suportes seu tom mais eloquente e, via de regra, imprime ao tratamento peça a peça uma legitimidade naturalizada pela necessidade de preservar. (Lacerda, 2008, p. 80-81)

Por muito tempo, os documentos fotográficos foram entendidos como portadores de um caráter especial, a serem tratados fora dos padrões preconizados pela arquivística, apartados dos outros documentos e da própria estrutura das instituições. Foi muito comum a separação de registros fotográficos dos demais documentos produzidos por um mesmo produtor ou fluxo de acumulação documental, seja por meio da dissociação de itens ou até de fundos inteiros. O isolamento desses conjuntos, associado ao uso de técnicas que pouco consideravam a organicidade dos documentos, promoveu graves problemas de contextualização, cenário recorrente por todo o Brasil. Era também comum que se ignorassem os vínculos arquivísticos da documentação ou que o conteúdo expresso por meio da informação visual se sobressaísse à rede informacional que subjaz ao documento, sustentadora de sua condição “de arquivo”. Essas práticas, já revistas pela comunidade preservacionista, ainda podem ser observadas em algumas instituições.

Por outro lado, a fotografia mobiliza um discurso de valorização próprio. Além do atribuído valor histórico, que pode ser associado a documentos de naturezas diversas, outros tipos de valorização são muito frequentemente associados ao registro fotográfico. São exemplos disso os discursos de valor estético, artístico, mercadológico e técnico. Embora tais construções discursivas sejam pertinentes como exercício interpretativo, podem ser prejudiciais à compreensão do documento fotográfico quando são tomadas como parte da metodologia de preservação. Muitos desses discursos acabaram por reforçar a dificuldade de enquadramento da fotografia em padrões de tratamento arquivístico.

Nesse cenário, particularmente a fotografia produzida pelo Estado possui dificuldade para chegar aos arquivos públicos. Não compreendida como técnica geradora de documentos “de arquivo”, observamos o contraste entre a histórica presença da fotografia em diversos expedientes públicos, como de segurança e saúde,3 com sua ausência nas instituições que guardam a permanência dos demais documentos produzidos por esses mesmos expedientes. Resultado de ações administrativas capazes de revelar a funcionalidade de seus produtores, documentos fotográficos são mal compreendidos e encaminhados para museus ou bibliotecas como resultado de uma supervalorização de seus aspectos visuais, sendo privados de sua plenitude documental no conjunto e circunstâncias em que foram produzidos. Quando carentes dos atributos de valoração geralmente relacionados às fotografias, padecem num limbo: não vão para o arquivo nem para o museu.

Se o recolhimento de documentação fotográfica estatal encontra dificuldades, por outro lado é muito frequente que arquivos públicos adquiram de forma extraordinária coleções ou fundos privados marcados pela presença de registros fotográficos. Arquivos de jornais extintos, fotógrafos regionais ou colecionadores locais são exemplos disso. Em que pese a ausência de método para a incorporação, trata-se geralmente do que se entende por patrimônio fotográfico importante para o território em que o arquivo público está inscrito. As motivações dessas aquisições e a forma como são tratadas são assuntos de grande importância. Assim como não é possível ignorar que, depois de incorporado, um conjunto sofre a influência da instituição que o abrigou, também é um fato a agência que tais conjuntos têm sobre essas instituições. A vida do conjunto documental é marcada por sua entrada na instituição arquivística e esta, que opera em função de seu acervo, é igualmente marcada por essa presença. Quando pensamos em centros de documentação, por exemplo, pela própria natureza de seu sistema de formação de acervo, é bem clara a constatação do que acabamos de expor.4 Na maioria das vezes, a política de acervos desse tipo de instituição é o mais completo instrumento definidor de sua linha de atuação.5 Pela naturalidade que encobre a acumulação de documentos de natureza arquivística, acabamos por não reconhecer esse processo quando tratamos de arquivos públicos.

Ao abordarmos o nosso tema pela perspectiva da cultura visual, ou por meio da historicidade da produção e circulação de documentos visuais, percebemos que há um diálogo claro entre esse campo e o que se preconiza no meio arquivístico, ainda que nem sempre os campos dialoguem diretamente. Ao chamar a atenção da historiografia para a materialidade da imagem como elemento importante para sua compreensão, tais estudos ampliaram sua comunicabilidade com o que é apregoado em diversas áreas da preservação documental.6 Em diálogo com as contribuições teóricas de William J. T. Mitchell para os estudos visuais, Ulpiano B. Meneses discute a materialidade da imagem e sua natureza como artefato. Essa constatação conduz aos percursos de vida dos documentos visuais, sobre os quais o historiador afirma:

Uma das consequências imediatas da aceitação da natureza artefatual da imagem é que se torna indispensável pesquisar sua vida pregressa. Com efeito, a imagem teve uma vida pregressa antes de se recolher (ao fim de sua primeira existência social) a museus, arquivos, coleções, galerias, gabinetes, repertórios, e assim por diante. É nesse particular estado de descarte que temos acesso a ela. Trata-se, efetivamente, de descarte dentro de um ciclo de vida que, entretanto, abre espaço para um novo ciclo – que poderíamos grosso modo denominar documental. (Meneses, 2012, p. 254)

É importante notar que não é de arquivística, ou de gestão documental, que o autor está propriamente tratando no excerto. Ainda assim, a noção de ciclo vital presente na reflexão é bastante familiar à teoria arquivística, que muitas vezes compreende justamente dessa forma os prazos, vigências e fases da vida de um documento. Podemos no contexto arquivístico compreender como permanência ou terceira idade dos documentos o que Meneses denomina como documental. Mesmo que a arquivologia confira uma perspectiva técnica a esses processos, materializada pelos muitos protocolos que regem a dinâmica da acumulação em arquivos, é também da biografia desses documentos que trata esse sistema de preservação. Nesse sentido, a compreensão dos processos de aquisição e tratamento desses conjuntos constitui-se, portanto, em capítulo fundamental de suas biografias. Trata-se do estado de permanência desses documentos e da forma como serão dirigidos ao escopo formador da memória pública. Compreendê-los de forma plena passa necessariamente pelo exame dessa fase de suas vidas.

O Fundo Última Hora no Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp)

Ao consultarmos os relatórios anuais do Arquivo Público do Estado de São Paulo entre os anos de 1976 e 1988, constatamos que não havia uma preocupação exatamente direcionada aos documentos fotográficos. Mais do que isso, a palavra fotografia sequer é mencionada, salvo como técnica reprográfica no relatório de 1982. O Apesp não possuía uma política de aquisição para fundos privados, tampouco uma particularmente direcionada a fundos ou coleções majoritariamente compostas por documentação fotográfica.7 Nada disso seria propriamente uma questão, não fosse uma brusca transformação ocorrida a partir de 1989, quando discussões envolvendo a fotografia, perpassadas por um crescente empenho de recursos, passam a figurar em todos os relatórios anuais da instituição e com cada vez maior relevância.

Acontece que naquele ano o Apesp adquiriu o que chamavam, naquele momento, de “Coleção Samuel Weiner”. Tratava-se, na verdade, do arquivo fotográfico da sucursal carioca do jornal Última Hora, que havia sido extinto na década de 1970, mas tivera seu acervo fotográfico preservado na clandestinidade. A compra do conjunto foi documentada pelo processo número 1625/89 da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, à qual o Arquivo Público se subordinava naquele período. Por meio do processo, foi possível encontrarmos diversas informações muito relevantes para nossa análise, como o valor negociado, os pareceres técnicos8 sobre o conjunto e alguns termos da aquisição. O processo não especifica o volume ou a composição exata do conjunto e os próprios pareceres indicam que isso não estava completamente claro no momento da aquisição. O valor cobrado pelo conjunto foi de NCZ$ 247.309,45 (duzentos e quarenta e sete mil, trezentos e nove cruzados novos e quarenta e cinco centavos)9 e a venda foi feita por Debora (Pinky) Weiner, filha do prestigiado jornalista e fundador do jornal, Samuel Weiner. Finalizados os trâmites para a aquisição, no dia 23 de maio de 1989 o conjunto de documentos finalmente chegou à instituição.

Neste trabalho não será possível aprofundar os detalhes da compra em si, pois vamos nos concentrar nos desdobramentos de sua chegada no Apesp. Cabe, ainda assim, apenas destacar que os impactos de sua incorporação não foram mensurados ou considerados no decorrer do processo de compra. Para nosso exame, utilizaremos os relatórios anuais e gerais do Apesp, além de projetos e relatórios produzidos, particularmente, sobre o tratamento do conjunto documental em tela. Nosso intuito é demonstrar a relação entre esses trabalhos e a criação de um departamento especializado em fotografia na instituição, os objetivos esperados desse setor e a construção de uma política de acervo informal para documentos fotográficos no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Nos arquivos da instituição existe um projeto de janeiro de 1990 que prevê o início do tratamento da documentação. Estima a contratação de 12 profissionais, sendo “um supervisor com experiência em pesquisa para acompanhamento geral do trabalho”, “um coordenador com experiência em organização de arquivos para coordenação da equipe que executará os trabalhos de reacondicionamento, arranjo e descrição do acervo” e “dez profissionais (ou estudantes) de história ou jornalismo para execução das tarefas” (Arquivo Público do Estado de São Paulo, 1990a). Esse primeiro projeto não chegou a ser plenamente implantado, mas um relatório, alguns meses depois, nos esclarece o que pôde ser realizado. Ainda assim, duas informações são dignas de nota. Em primeiro lugar, a confirmação de que não se planejava acomodar a documentação no Setor de Fundos Privados da instituição, que existia e seria o destino, a priori, mais pertinente, como acontecia com outros fundos privados já abrigados pelo Apesp. Em segundo, o número de colaboradores, que indica as proporções que se pretendia dar ao empenho, destoando da quantidade de trabalhadores que a instituição podia destinar a outras áreas de atuação. Por exemplo, em 1994, o Setor de Fundos Privados inteiro contava com cinco funcionários para realização de todas as suas atribuições, e no ano seguinte, com apenas dois (Arquivo Público do Estado de São Paulo, 1997a). A chegada da “coleção” mobilizava, dessa forma, os primeiros movimentos do arquivo para sua preservação.

Uma equipe liderada por duas especialistas foi formada e o tratamento, iniciado. O primeiro relatório do grupo, intitulado “Avaliação das condições imediatas para implantação do Projeto Piloto Samuel Weiner e orçamento”, é datado de outubro de 1990 e informa o início dos trabalhos. Nele já está considerada uma estrutura menor para sua execução, que contava com três estagiários e as duas pesquisadoras, e uma expectativa de investimento de Cr$297.607,56, valor expressivo no contexto dos recursos do arquivo público. O investimento seria aplicado nos expedientes de higienização (sala e acervo), climatização, arquivamento e acondicionamento (Arquivo Público do Estado de São Paulo, 1990b).

O segundo relatório, de novembro de 1990, apresenta mais decisões sobre o trabalho e demonstra também uma compreensão mais clara sobre a natureza do conjunto:

O diagnóstico realizado aponta mais uma vez para suposição de estarmos trabalhando com um fundo gerado por uma empresa privada, o jornal Última Hora, e não por uma pessoa física, no caso Samuel Weiner. Acreditamos que a curadoria proposta fornecerá uma margem de maior segurança para adotarmos o nome Última Hora para este fundo. (ibid., p. 11)

Abandona-se definitivamente, portanto, a ideia de coleção, tratando-se o conjunto como fundo privado, com a titularidade de seu produtor reconhecida, ou seja, o jornal Última Hora. É possível inferir que o conjunto finalmente começava a ser objeto de uma avaliação que levava a integridade, natureza, ordem original, função ou outros elementos caros à arquivística em consideração. Importante notar que no processo de aquisição essa natureza não estava completamente clara. A análise do processo de compra, dos seus pareceres e da documentação que precede a chegada do Fundo Última Hora ao Apesp deixa claro que não houve avaliação arquivística do conjunto antes de sua incorporação. Avaliações de outras naturezas, como mercadológica ou histórica, foram mobilizadas, sem, no entanto, tratar da condição arquivística do conjunto propriamente.

Outro ponto relevante que podemos destacar do relatório é a proposta de uma curadoria para tratamento do conjunto, que escolheria cinco mil fotografias de maior relevância ou valor, sem explicitar com quais critérios, e com elas se iniciariam os trabalhos. Acreditava-se que, ao extroverter esse material selecionado, seria possível atrair visibilidade para o conjunto. Não se fala em separação física das fotografias, importante destacar, mas, mesmo assim, uma proposta de curadoria dessa natureza para arquivos como parte de seu processo de preservação pode causar certa estranheza. Isso por conta da problemática que mencionamos de se imprimir ao processo de preservação de documentos arquivísticos, mesmo que fotografias, uma orientação influenciada por construções discursivas. No caso de documentos visuais, esse procedimento pode colaborar para a incompreensão da condição arquivística do documento e seu esvaziamento de sentido, preenchido por discursos pautados no conteúdo das imagens e nos regimes de valoração que influenciaram o processo de preservação. A condição visual, básica desses documentos, não pode se tornar geradora de sua incompreensão, especialmente porque as motivações de sua existência nem sempre são visíveis ou visuais. No caso das fotografias de um jornal, por exemplo, a pauta a que se associam esses documentos, mesmo as posteriores, configuram-se no seu principal vínculo arquivístico.10

No mês de dezembro de 1990, um terceiro relatório (Arquivo Público do Estado de São Paulo, 1990c) explica que o tema político nortearia a curadoria. É interessante notar que, de forma pertinente aos interesses de um arquivo público, o tema poderia ser também explorado justamente na produção de fotografias do próprio Estado. Um exemplo de produção do Estado pode ser observado no conjunto documental fotográfico, hoje um fundo, reconhecido como Secretaria de Governo (Segov), do Apesp. Esse fundo é composto pelos documentos fotográficos produzidos pelo governo do estado de São Paulo, entre os anos de 1945 e 1975, no âmbito da assessoria de imprensa do governador. Trata-se de um fundo de documentos relacionados ao cotidiano de autoridades do Poder Executivo desse estado. Embora a acumulação de documentos da Secretaria de Governo remonte às mais antigas funções do Estado em São Paulo, o conjunto de documentos fotográficos produzidos pela assessoria de imprensa do governador foi inicialmente encaminhado ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Por se tratar de fotografias e, mais que isso, fotografias não inseridas em outros suportes, decidiu-se que esse encaminhamento seria mais apropriado, o que nos serve também de exemplo da dificuldade de recolhimento que mencionamos no princípio deste texto ou da associação entre um valor nato da visualidade com a figura institucional do museu, mais prestigiada em determinados cenários culturais. No entanto, no ano de 2008, o material foi finalmente transferido para o Apesp.

Outro tópico, ainda do terceiro relatório, trata da “catalogação” do material e do processo de recuperação da formação original do conjunto, procedimento muito relevante. Nesse ponto é possível notar que o arquivo buscava se integrar a uma rede maior de profissionais e pesquisadores, principalmente dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, que estavam envolvidos com acervos marcados pela presença de fotografias11 e discutiam a construção de soluções e protocolos conjuntos. Se por um lado essa integração foi muito vantajosa e marca a incubação de excelentes políticas patrimoniais para fotografias no Brasil, por outro pode ter agravado uma intersecção de conceitos para o tratamento de fotografias, entre biblioteconomia, museologia e arquivística, que no campo dos arquivos, por vezes, foi nociva. Sobre o complexo envolvimento de diversas áreas da preservação no tratamento de documentos audiovisuais, como se observava naquele período, Smit afirma:

Embora seja muito difícil situar corretamente e seguramente a questão da organização dos documentos audiovisuais em função dos diferentes “espaços” nos quais a atividade tem sido exercida, forçoso é constatar que, se por um lado as diferentes profissões envolvidas pelas 3 Marias [biblioteconomia, museologia e arquivologia] não parecem estar conscientes da indeterminação reinante, tampouco há bibliografia que chama a atenção para esta situação de fato e acima evocada: a organização do documento audiovisual é um “no man’s land” profissional. (Smit, 1993, p. 83)

Vale dizer que, felizmente, o cenário mencionado no excerto mudou para melhor nos últimos trinta anos, ainda que não completamente. Mesmo assim, trata-se de uma percepção interessante sobre a dificuldade de comunicação no campo no princípio dos anos 1990. Voltando ao terceiro relatório, nele encontramos pela primeira vez uma informação fundamental: o projeto de tratamento das fotografias não se restringiria ao Fundo Última Hora, mas abarcaria a totalidade dos documentos fotográficos do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Outro projeto do mesmo ano vai ainda mais além e menciona o intuito de se formar um centro de documentação especializado em fotografia no Apesp:

O objetivo geral desse projeto é a organização do acervo fotográfico do Arquivo do Estado de São Paulo, visando a sua informatização. Tem como meta, portanto, a constituição de um Centro de Documentação informatizado que permita o acesso às imagens dos diversos fundos, àquelas pertencentes à biblioteca, bem como à iconografia dispersa que se encontra à espera de tratamento adequado.

A imagem fotográfica oferece uma multiplicidade de leituras. A sua produção inter-relaciona vários campos do conhecimento, numa complexa teia de significações. Sendo assim, é necessário que o Centro de Documentação não apenas permita o acesso às imagens, mas aponte de modo o mais abrangente possível o potencial de pesquisas que o acervo possibilita. (Arquivo Público do Estado de São Paulo, s.d., p. 1)

É possível perceber que, poucos meses depois de sua incorporação, o fundo já começava a delinear um impacto de proporções maiores ao Apesp. Mais do que os cuidados ou despesas necessárias para sua manutenção, o conjunto documental promovia mudanças na própria estrutura da instituição, no sentido de converter em unidade autônoma os esforços em torno de si. Mais do que isso, o planejado centro teria gerência sobre os documentos entendidos como iconográficos presentes em outros fundos, públicos ou privados, ou dispersos em outros setores da instituição, como era o caso da biblioteca do Apesp, que possuía coleções de fotografias. Um pouco mais adiante, o mesmo projeto detalha de forma mais pormenorizada como seria esse trabalho:

Seguindo a noção de respect des fonds, corrente na prática arquivística, que exige que os documentos gerados por uma única entidade sejam mantidos separados daqueles gerados por outras, trataremos na primeira parte do projeto geral de cada um dos fundos de arquivo. Naqueles que já se encontram organizados, nosso trabalho será adaptar a iconografia neles presentes à indexação geral. Os outros necessitarão de tratamento em todos os níveis.

A segunda parte do trabalho se ocupará dos documentos fotográficos produzidos por diversas fontes e reunidos artificialmente, através de compra, doação ou permuta pela Biblioteca do Arquivo do Estado.

Finalizando o projeto, a terceira parte irá vasculhar todo o material disperso, ainda não catalogado, em busca de imagens que deverão ser identificadas, conduzidas ao local adequado e indexadas apropriadamente. (Arquivo Público do Estado de São Paulo, s.d., p. 2-3)

É interessante observar que no trecho acima é possível identificar as três condições básicas em que se podiam encontrar documentos fotográficos no Apesp naquele período: nos diversos fundos custodiados; colecionados pela biblioteca; ou dispersos pela instituição sem nenhum tipo de identificação. Na sequência do projeto há ainda um relatório, de março de 1991, que dá notícias sobre o encaminhamento das atividades, no entanto, sem tratar diretamente da execução do que havia sido proposto no projeto anterior (Arquivo Público do Estado de São Paulo, 1991). Embora não existam relatórios do ano de 1992, uma solicitação para participação em um curso dirigida ao diretor do arquivo permite perceber que o projeto continuava sendo executado e recebera o nome de “Projeto de organização do acervo de imagens do Arquivo do Estado de São Paulo”, que remete ainda mais ao fato de a empreitada ter transcendido o Fundo Última Hora e ambicionar a totalidade da instituição.

No caso particular do PROJETO DE ORGANIZAÇÃO DO ACERVO DE IMAGENS DO ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO este curso é especialmente oportuno considerando estarmos realizando a revisão final do inventário das fotografias e caricaturas do fundo Última Hora. Nossa próxima frente de trabalho será realizar um mapeamento detalhado do material iconográfico que se encontra disperso nos vários fundos do Arquivo Histórico e da Biblioteca. Estaremos então nos deparando com diferentes organizações documentais preexistentes às quais deveremos compatibilizar as opções adotadas no tratamento das imagens do Fundo Última Hora. (Arquivo Público do Estado de São Paulo, 1992)

Há ainda outro ponto relevante a destacar do excerto acima. Ao mencionar a necessidade de compatibilizar as diferentes formas de organização existentes no Apesp às que tinham sido definidas para o trabalho com o Fundo Última Hora, podemos inferir que o fundo teria um papel modelar para o restante do acervo, ou seja, o tratamento das fotografias do Fundo Última Hora serviria de modelo para o tratamento dos demais documentos fotográficos do acervo do arquivo. É importante considerar que não fica claro em quais aspectos esse conjunto seria modelo, mesmo tendo uma estrutura de acumulação que não é a mesma dos diversos outros conjuntos que o Apesp possuía. Um novo relatório do ano de 1993 confirma esse procedimento:

A chegada do Fundo Última Hora a esta instituição tornou urgente a elaboração de um projeto geral de tratamento do acervo de imagens, devido a seu grande volume. Para iniciar este trabalho adotamos o Fundo Última Hora como célula piloto, considerando a predominância do material fotográfico neste acervo e a ausência total de acesso à informação. (Arquivo Público do Estado de São Paulo, 1993, p. 2)

Ao avançarmos para o ano de 1994, é possível observar a consolidação do que vinha sendo planejado e executado nos cinco anos anteriores. O Arquivo Público do Estado de São Paulo passa a contar com um setor específico ao qual atribuiu o nome de Setor Iconográfico. O documento “Atribuições do Setor Iconográfico” nos ajuda a compreender a finalidade do departamento:

As atribuições deste setor são definidas por dois eixos básicos: guarda e manutenção do acervo e disseminação de informação.

GUARDA E MANUTENÇÃO DO ACERVO

Receber e avaliar todo o material não textual recolhido pelo Arquivo do Estado de São Paulo. Elaborar metodologia de organização da documentação (separação, ordenação, catalogação, descrição). Acompanhar o processo de conservação do material desenvolvido pelo Setor de Preservação.

DISSEMINAÇÃO DE INFORMAÇÃO

Discutir a imagem enquanto fonte histórica, através do desenvolvimento de instrumentos de pesquisa (confecção de guias e catálogos), elaboração de projetos de exposições, seminários e palestras e intercâmbio técnico-cultural com instituições nacionais e estrangeiras. Atender ao público consulente. (Arquivo Público do Estado de São Paulo, 1994, p. 1)

Como podemos observar, o setor tinha a atribuição de tratar não apenas do fundo que havia sido comprado, ou outros fundos privados do mesmo tipo, mas de toda a documentação fotográfica existente no Apesp e ainda de futuros recolhimentos que a instituição realizasse, no que se relacionasse à documentação fotográfica. O setor de fato se consolidou na instituição com essas atribuições e usou o nome de Setor Iconográfico até o ano de 2009, quando, depois de uma reformulação estrutural, se tornou o Núcleo de Acervo Iconográfico, que é parte do Centro de Acervo Iconográfico e Cartográfico, ainda existente. Nos anos que encerram a década de 1990, a equipe esteve muito envolvida com a construção de um “banco de dados”, para o qual contou com o apoio de instituições e outros projetos e ampliou significativamente o acervo sob sua guarda. O núcleo cumpre até hoje, de modo geral, as mesmas funções para as quais foi criado. Podemos concluir que as transformações estruturais causadas pela chegada do Fundo Última Hora no Apesp vão além do organograma da instituição, mas envolvem a forma de se compreender o documento fotográfico em si, atribuindo-lhe valor e um determinado modo de tratamento. Um relatório de 1998 permite aprofundar um pouco essa discussão:

A especificidade da documentação iconográfica e o valor atribuído hoje a este tipo material gerou uma demanda maior de consulta a esta documentação que passou a ser requisitada pelos mais diversos setores – em especial aqueles produtores de informação jornais, revistas, editoras, produtoras de vídeo e cinema etc.

Este tipo de pesquisa requer um atendimento especializado devido a sua dimensão e especificidade, por esse motivo, grande parte da pesquisa aconteceu dentro do Setor Iconográfico. A título de registro, listamos abaixo algumas das empresas que utilizaram o acervo iconográfico – na maior parte das vezes o acervo utilizado é o "Última Hora". (Arquivo Público do Estado de São Paulo, 1998a, p. 5-6)

Além da referência direta ao valor da documentação fotográfica, o excerto se refere aos usos que vinha recebendo12 e à necessidade de um atendimento especializado. É possível compreender a conveniência desse atendimento especializado no sentido do manuseio e visualização dos materiais que é, de fato, especializado. Por outro lado, um problema que se pode apontar é a adequação dessas demandas de uso e da própria atuação que se esperava do departamento a uma lógica de utilização de imagens que encontra mais afinidade com o meio mercadológico do que com a pesquisa científica. As agências de conteúdo, que administram bancos de imagens e lhes atribuem usos comerciais muito variados, têm propósitos e dinâmicas de existência substancialmente diferentes das instituições que atribuem uso cultural, educativo ou informativo aos seus acervos, inclusive do ponto de vista de suas prioridades. O planejamento do acesso a documentos visuais em instituições públicas, particularmente o acesso digital, tantas vezes demarcado pelos bancos de imagens, precisa ter como prioridade o acesso à informação de qualidade.

A valorização a que o relatório faz menção fica ainda mais dimensionada quando consideramos que, naquele mesmo ano, o Apesp recebeu por doação o arquivo fotográfico do jornal paulista O Movimento e, no ano seguinte, dos Diários Associados de São Paulo, esse último com volume de documentos que alçaram o acervo de fotografias jornalísticas da instituição a um dos maiores desse tipo em arquivos públicos do país, com mais de um milhão de fotogramas. Se não existia e nem existe uma política de aquisição ou de acervo voltada para documentos fotográficos por parte do Apesp, é possível observar a construção de uma política informal, direcionada a acervos com origem na imprensa. Inclusive o Segov, cuja incorporação ao acervo do Setor Iconográfico, em 2008, já mencionamos, embora seja um fundo público, trata-se essencialmente de documentação fotográfica produzida por assessoria de imprensa dos governadores do estado de São Paulo. Nesse sentido, o Setor Iconográfico construiu uma verdadeira política de acervos pautada pela fotografia produzida pela imprensa ou propaganda pública e pelos protocolos internos que construiu no próprio setor.

Como dissemos, fundos oriundos da imprensa são muito comuns em arquivos públicos por todo o Brasil, condição que se relaciona com o papel da imprensa na sociedade como ente fundamental da própria concepção de esfera pública.13 Também é notável que os departamentos de imprensa e propaganda do próprio Estado possuam uma relação marcante com a fotografia como recurso documental, sendo grandes produtores de registros fotográficos públicos. Não há dúvidas, nesse sentido, sobre o interesse público que reside nesse tipo de material. A perspectiva da fotografia pública, expressa pela historiadora Ana Maria Mauad no excerto abaixo, nos ajuda a compreender o espaço público produzido pela circulação desse tipo de fotografia e seu papel para a construção da memória pública:

Portanto, a fotografia pública se torna pública, porque se associa às funções de representação de diferentes formas de poder na cena pública; são, ainda, suportes de memória pública sancionada pelas diferentes culturas políticas. Entretanto, é nas formas de agenciamento da fotografia pública que se deflagra o seu potencial de mobilizar as memórias concorrentes e de acionar representações históricas sobre acontecimentos e eventos passados. É na qualidade de memória-arquivo e memória-patrimônio que a fotografia pública revela memória pública como espaço de disputa e abre caminho para a operação histórica analisá-la como experiência social passada. (Ricoeur, 2004 apud Mauad, 2013, p. 19)

Constatarmos o interesse público que reside no acervo fotográfico reunido pelo então Setor Iconográfico do Apesp não nos desabilita para problematizarmos alguns aspectos sobre a forma como foi construído e suas implicações. É importante considerarmos que não é apenas da fotografia de imprensa, ainda que pública, que consiste a produção fotográfica do Estado. Nesse aspecto, cumpre destacarmos que a atuação do setor especializado em fotografia do Apesp não esteve ligada a outras naturezas produtoras de fotografias, inclusive do próprio Estado. Ao pensarmos que o arquivo público é antes de tudo o gestor da documentação produzida pelo Estado, esse ponto se tornaria digno de maior reflexão.

Grande parte das fotografias produzidas pela saúde ou segurança pública em São Paulo, cujo pioneirismo destacamos no princípio deste trabalho, não estão no Arquivo Público do Estado. Ao pensarmos na memória pública como espaço de disputa e poder, fica indispensável discutir a origem dos discursos de valor e opções que pautaram a construção da política de acervo desempenhada por determinada instituição. A ausência de avaliação arquivística ou protocolos técnicos, como uma política de aquisição formalizada, pode permitir o surgimento de noções de valor subjetivas capazes de prejudicar a transparência que deve ser uma característica do processo de preservação público.

Conclusões

Ao nos questionarmos sobre a presença e tratamento de documentos fotográficos no Arquivo Público do Estado de São Paulo, reconstituímos um percurso que parte e é profundamente marcado pela presença de fundos privados na instituição. A chegada do Fundo Última Hora inaugura a discussão sobre fotografia no Apesp e uma política de acervo, ainda que informal, materializada pela criação de um setor especializado em documentos dessa natureza, aquisições de acervo e todo o trabalho que deles decorreu. O Fundo Última Hora serviu de modelo e teve o seu tratamento como célula piloto de uma série de transformações que direcionaram a maneira como a instituição pública lidou com documentos fotográficos por mais de vinte anos.

Trata-se de um percurso intensamente marcado pelo discurso de valorização do registro fotográfico, particularmente da fotografia de imprensa, que envolveu a delineação de uma política de acervos que, eventualmente, espelhava mecanismos de preservação com grande afinidade com o agenciamento de imagens. Recai sobre essas decisões a histórica falta de comunicação do setor especializado com o restante da instituição e sua dificuldade em se articular em torno da documentação produzida pelo próprio Estado. O setor não tinha realizado nenhum recolhimento público até muito recentemente, por exemplo. A ausência de uma política de aquisição formal, ou de protocolos preestabelecidos, acarreta problemas de gestão, tornando esse processo menos transparente do que deveria ser. O encastelamento da documentação fotográfica na instituição é resultado dessa tendência.

Destacamos que o estudo de caso que apresentamos revela aspectos importantes para a compreensão da estrutura e atuação do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Estudos deste tipo permitem colocar os arquivos públicos em perspectiva histórica, problematizando a “naturalidade” que se presume para a permanência dos conjuntos documentais sob sua guarda. É preciso que se considere a existência de uma rede de decisões políticas que interferem na construção dessas instituições e cuja análise pode contribuir para o aprimoramento de suas políticas públicas. Tais decisões afetam a biografia dos documentos e definem o que é preservado e disponibilizado para a população, além da forma como isso ocorre. Ao fim, esses processos impactam o que se compõe como memória pública nos territórios em que estão inscritos esses arquivos públicos e nos potenciais historiográficos que deles podem partir. O arquivo público é um espaço legitimador de memória, o que nos obriga a manter em debate constante os termos desse processo de legitimação.

Referências

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Recebido em 22/8/2023

Aprovado em 18/1/2014


Notas

1 Por conta da complexidade ou até do desconhecimento das funções que deve desempenhar um arquivo público, existe dificuldade para enquadrá-lo no organograma da administração pública. Por suas funções probatórias, muitas vezes é associado às autoridades judiciais de determinado território. Por suas funções identitárias e históricas, pode ser associado às autoridades culturais. Ou ainda, ser associado às autoridades gestoras ou à centralidade do Poder Executivo, quando se compreende seu papel para o funcionamento da máquina pública. Pelo caráter político que lhe é inerente, tais decisões implicam diretamente a aplicabilidade do arquivo e o efetivo cumprimento de suas funções.

2 As reflexões elaboradas para este artigo também fazem parte da tese de doutorado Fotografia em regime de arquivo: das atribuições de valor à atribuição de sentido (Roma, 2021), na qual podem ser consultadas de forma mais aprofundada e expandida. Para consultar, acesse: https://doi.org/10.11606/T.8.2021.tde-08062021-203127.

3 Remonta à última década do século XIX a chegada da fotografia em diversos expedientes públicos brasileiros, particularmente nos campos da segurança e saúde, o que uma diversidade de acervos, especialmente entre o Rio de Janeiro e São Paulo, pode demonstrar. No caso de São Paulo, são exemplos disso os acervos de diversos hospitais, sanatórios ou preventórios espalhados pelo estado, além do Museu da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, Instituto Butantã e outras instituições.

4 No artigo “A coleção fotográfica de Marcel Gautherot” (Segala, 2005), por exemplo, a historiadora Lygia Segala apresenta um interessante panorama sobre a política de aquisição do Instituto Moreira Salles (IMS), a partir de uma análise do conjunto documental do fotógrafo Marcel Gautherot, adquirido por aquela instituição. Na reflexão, estão colocadas questões importantes como noções de valor, natureza do conjunto e integralidade da obra do fotógrafo.

5 O Centro de Documentação e Memória da Unesp (Cedem) é excelente exemplo disso.

6 Seria possível afirmar, por outro lado, que, enquanto o advento da documentação eletrônica promoveu nos estudos da visualidade um direcionamento da atenção à materialidade do artefato visual, na arquivologia, há aproximadamente quatro décadas, afastou os debates da fisicalidade, o que se convencionou chamar de perspectiva pós-custodial. No entanto, a afinidade que acabo de destacar entre os campos de pesquisa reside no fato de terem direcionado nos últimos anos sua atenção à compreensão da rede complexa de contextualidades que envolvem o documento e definem sua natureza e condição.

7 Em artigo sobre esse assunto, Troitiño e Colombo afirmam: “Por meio do estudo de caso realizado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, foi possível construir um panorama geral sobre os processos de aquisição de arquivos privados. A primeira constatação foi que o Arquivo Público do Estado de São Paulo não utilizou métodos ou critérios preestabelecidos para adquirir os arquivos, o que levou o seu próprio corpo técnico a questionar, em vários momentos, o valor histórico-social dos arquivos adquiridos. Em um segundo momento, foi possível observar que muitos dos arquivos privados que chegaram até o Apesp foram adquiridos a partir de contatos pessoais de funcionários e diretores, sem o amparo proporcionado pela adoção de procedimentos metodológicos de avaliação de documentos” (Colombo; Troitiño, 2021, p. 12).

8 Antes da aquisição, a então diretora do Apesp, Inês Etienne Romeu, estabeleceu uma comissão para avaliar a conveniência da compra. Os três membros da comissão, José Sebastião Witter, Marco Aurélio Garcia e Vladimir Sacchetta produziram três pareceres, todos favoráveis, que podem ser consultados no processo ou integralmente transcritos e analisados em Roma (2021, p. 106-109).

9 Embora apresentado como simbólico, o valor representava cinco por cento do orçamento do Apesp para o ano de 1989, considerando-se que a verba destinada àquele ano envolvia a construção de um novo prédio. Se tomarmos por referência maio de 1989, o valor corresponderia a 3.038 salários mínimos.

10 Sobre esse assunto, recomendamos a leitura de Madio (2015).

11 Segundo Mendes (1999), a década de 1980 é marcada por um renascimento da fotografia no Brasil. Esse boom pode ser observado por meio do crescimento do interesse acadêmico sobre o tema, a aquisição de coleções e arquivos por instituições diversas, a proliferação de publicações sobre o assunto ou divulgando a obra de fotógrafos e o fortalecimento da fotografia no roteiro das artes. Do ponto de vista arquivístico, no entanto, apenas na década seguinte começariam a surgir reflexões mais especializadas sobre o tratamento da fotografia em arquivos.

12 O relatório lista 15 entidades, todas do universo comercial, que teriam utilizado o acervo, algumas delas três ou quatro vezes naquele ano.

13 O filósofo alemão J. Habermas, ao discutir a historicidade do que considera "esfera pública burguesa", apresenta a imprensa como um de seus elementos mais fundamentais. Segundo o autor, essa importância se dá, entre outras razões, pela nova compreensão de público como publicidade, ou seja, aquilo que é acessível para um número cada vez maior de pessoas, movimento que se torna significativo inclusive para a administração pública e que caracteriza o ambiente com cada vez menos fronteiras entre sociedade e Estado. Podemos compreender a historicidade da imprensa como parte da própria historicidade da esfera pública: “A refuncionalização do princípio da esfera pública baseia-se numa reestruturação da esfera pública enquanto uma esfera que pode ser apreendida na evolução de sua instituição por excelência: a imprensa” (Habermas, 2003, p. 213).


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