Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 1, jan./abr. 2024

Memória e história: potências e tensões nos usos de acervos privados | Dossiê Temático

Futebol de mulheres no Brasil

A importância dos acervos privados na produção de histórias invisibilizadas

Women’s soccer in Brazil: the importance of private collections in the production of invisible stories / Fútbol practicado por mujeres en Brasil: la importancia de las colecciones privadas en la producción de historias invisibles

Silvana Vilodre Goellner

Doutora em Educação pela Universidade de Campinas (Unicamp). Professora visitante na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Brasil.

vilodre@gmail.com

Christiane Garcia Macedo

Doutora em Ciência do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil.

chrisgmacedo@gmail.com

Resumo

Este artigo discute a importância dos acervos privados na preservação das memórias e na produção de histórias sobre a presença das mulheres no futebol. Especialmente, analisamos duas iniciativas, ressaltando as potências e tensões no uso desses acervos como principal fonte para reconstruir histórias sobre sua participação nesse esporte.

Palavras-chaves: futebol; mulheres; memórias; acervos privados.

Abstract

This article discusses the importance of private collections in the preservation of memories and the production of stories about the presence of women in soccer. In particular, we analyzed two initiatives highlighting the powers and tensions in using these collections as the primary source to reconstruct stories about their participation in this sport.

Keywords: soccer; women; memories; private collections.

Resumen

Nuestro artículo discute la importancia de las colecciones privadas en la preservación de la memoria y en la producción de relatos sobre la presencia de la mujer en el fútbol. En particular, analizamos dos iniciativas que destacan los poderes y las tensiones en el uso de estas colecciones como fuente principal para reconstruir historias sobre su participación en este deporte.

Palabras clave: fútbol; mujeres; memorias; colecciones privadas.

A referência de que o Brasil é o país do futebol perpassa diferentes espaços e temporalidades. A disseminação e popularização desse esporte, inicialmente apropriado pelas elites, caminhou lado a lado com a produção e disseminação de uma representação que o projetou como parte integrante da identidade nacional. Não faltam publicações nem pesquisas acerca desse complexo e multifacetado fenômeno cultural, cujas narrativas contribuíram sobremaneira para visibilizar memórias e histórias de pessoas, grupos e instituições. No entanto, é necessário fazer uma ressalva: essas afirmações recaem sobre o futebol praticado pelos homens, visto que, na “pátria de chuteiras”, expressão cunhada por Nelson Rodrigues, a presença das mulheres nesse esporte foi praticamente invisibilizada, seja na oficialidade dos discursos, seja nos lugares de memória, os quais “nascem e vivem do sentimento [de] que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais” (Nora, 1993, p. 12-13).

Sub-representadas na história oficial da modalidade, muito do que hoje conhecemos advém da iniciativa das próprias mulheres que, de diferentes modos, guardaram registros sobre suas trajetórias, conquistas e frustrações, criando, dessa forma, estratégias para não esquecer aquilo que não deveria ser esquecido. Esses vestígios, guardados em seus acervos pessoais privados, têm sido determinantes para se fazer conhecer o protagonismo das mulheres no futebol, tema ainda pouco abordado na historiografia nacional.

Considerando esse contexto, este artigo discute a importância dos acervos privados na preservação das memórias e na produção de histórias sobre a presença das mulheres nos “futebóis” (Damo, 2018), isto é, nas mais diferentes formas de vivenciar essa prática esportiva que não é única nem singular. Para tanto, optamos por descrever uma breve contextualização do futebol de mulheres no Brasil, destacando o quanto sua interdição oficial prejudicou tanto o desenvolvimento da modalidade quanto a produção de registros de memória. Num segundo momento, evidenciamos a relevância dos acervos privados no processo de reconstrução da história e da preservação da memória do futebol de mulheres. Por fim, apresentamos e analisamos duas iniciativas de garimpagem, preservação e divulgação de acervos privados, ressaltando as potências e tensões que emergiram no processo de sua estruturação.

O futebol delas e seus impedimentos

A inserção das mulheres no futebol data dos primórdios dessa modalidade esportiva em nosso país, cuja história oficial é narrada a partir da atuação de Charles Miller: um jovem paulistano descendente de ingleses, que, “depois de estudar dez anos em Southampton, trouxe da Inglaterra a bola e o livro de regras da Football Association, que fora instituído em 1863” (Museu do Futebol, 2018). Descrita a partir da glorificação de uma pessoa branca e da elite, essa narrativa, ainda que contestada, se mantém como aquela que explica o que no Brasil se tornou o esporte mais popular. Sem querer tensionar essas representações, porque não é o propósito deste texto, interessa registrar que as mulheres não foram incluídas na cronologia inicial da modalidade ainda que dela fizessem parte. A precariedade de registros dessa presença acabou por naturalizar a afirmação de que a primeira disputa entre mulheres aconteceu em São Paulo no ano de 1921, entre duas equipes que representavam os bairros de Tremembé e Cantareiras.1

Indubitavelmente, outras aparições já haviam ocorrido, e muitas delas ainda residem nas zonas de sombra. Mais do que buscar um suposto marco inaugural da atuação de mulheres futebolistas, queremos enfatizar o quanto essa aparição foi ignorada, inclusive na historiografia oficial da modalidade, visto que as entidades gestoras desse esporte, como, por exemplo, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e as federações estaduais, não possuem dados significativos nem documentação específica capazes de subsidiar análises que descrevam acontecimentos que estruturaram o futebol de mulheres em nosso país. Como aponta Rosilane Camargo Motta (jogadora conhecida como Fanta): “Eu fui ao Museu da CBF com meus alunos e não me enxerguei lá. Minha história não está registrada, mesmo tendo defendido a seleção por muitos anos e olha que eu fui da primeira seleção” (Motta, 2020).

Colabora para essa situação a interdição oficial de quase quatro décadas imputada às mulheres que ousaram jogar bola em um período no qual as representações normalizadas de gênero limitavam tanto a sua circulação no espaço público quanto os usos dos seus corpos. No início do século XX, o futebol se democratizou com a emergência de times e campeonatos em todas as regiões do Brasil, e as mulheres, ainda que em proporção bem menor que os homens, aderiram a essa prática.

Na década de 1930, é possível identificar várias iniciativas, conforme evidenciam pesquisas que recorreram a matérias de jornais como fonte primárias (Almeida; Almeida, 2020; Bonfim, 2019; Franzini, 2005; Freitas et al., 2019; Silva, 2015). Tal profusão incomodou setores conservadores da sociedade que, fundamentados em justificativas médicas, produziram discursos e práticas que limitaram a participação das mulheres em várias modalidades esportivas. Considerada uma ameaça que não poderia se popularizar, “um disparate esportivo que não deve prosseguir”,2 sob o risco de destruir a saúde das mulheres, comprometendo sua capacidade de gerar filhos, a prática futebolística foi oficialmente coibida para esse grupo em 1941. O decreto-lei n. 3.199, promulgado pelo Conselho Nacional de Desportos (CND), em seu artigo 54, determina que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza” (Brasil, 1941).

Leite de Castro, chefe do Departamento Médico da Liga de Futebol da cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, defendia essa proibição ao considerar os jogos entre mulheres um espetáculo ridículo que só poderia ser “aplaudido como exibição grotesca ou teatral ao sabor da curiosidade popular, ávida de novidades ou originalidades”3. Fato é que o futebol só foi regulamentado como uma prática esportiva para as mulheres em abril de 1983, quando o CND, no uso de suas atribuições, resolve que ele “poderá ser praticado nos estados, nos municípios, no Distrito Federal e nos territórios, sob a direção das federações e ligas do desporto comunitárias, cabendo à Confederação Brasileira de Futebol a direção no âmbito nacional” (Brasil, 1983).

A normatização da interdição trouxe sérias consequências ao desenvolvimento da modalidade, por ter limitado o investimento de clubes e a realização de competições, estigmatizado suas praticantes, e porque jogou as mulheres no ostracismo, invisibilizando suas histórias, sobretudo as de resistência. Cabe aqui uma observação: a longevidade de tais restrições não impediu que muitas delas continuassem a jogar bola, apenas não o fizeram oficialmente.

No final de 1981, início de 1982, o futebol ainda não era regulamentado e minha mãe ficou sabendo de um time feminino na cidade de Bento Gonçalves e ela me levou porque o treinador era seu amigo. Eu tinha treze anos e a maioria já tinha dezessete, dezoito, vinte. Esse time fez o primeiro jogo oficial do Rio Grande do Sul, talvez do Brasil, em abril de 1983, quando a prática do futebol foi autorizada para as mulheres. (Tafarel, 2021, p. 12)

Afirmações como esta só são possíveis em função do escrutínio de acervos privados, cujos documentos possibilitaram reconstruir histórias de pessoas, grupos e instituições. As lembranças ali preservadas permitiram trazer à superfície memórias “que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível” (Pollak, 1989, p. 4), colocando em disputa as memórias subterrâneas e as memórias oficiais. A história do futebol de mulheres em nosso país é atravessada por essa tensão e a cada acervo descoberto emergem novos episódios, acontecimentos e sujeitos.

Os dribles para registrar a memória do futebol de mulheres

A preocupação com a preservação da memória esportiva brasileira envolve ações pessoais e institucionais sistematizadas, segundo Goellner (2013), a partir de três enfoques: a centralidade nos acervos particulares de colecionadores e aficionados pelo esporte, a vinculação aos clubes esportivos e o fomento por parte de entidades públicas e universitárias. As duas primeiras iniciativas se caracterizaram por utilizar uma espécie de recolhimento romântico dos materiais, sem que houvesse um tratamento sistematizado em termos de técnicas e de estratégias de preservação e conservação do material guardado. Nas ações empreendidas pelas entidades, esse cenário tem algumas modificações, sendo possível identificar procedimentos técnicos mais adequados, englobando pessoas advindas das “três marias (museologia, arquivística e biblioteconomia e documentação)” (Smit, 1993, p. 81) da ciência da informação.

Mais recentemente, Macedo (2017) aponta um quarto enfoque na preservação dos acervos esportivos brasileiros, focalizado nos museus e memoriais ligados ao futebol, que se desenvolveram especialmente a partir dos anos 2000, muitos deles impulsionados pela reforma dos estádios que sediaram os jogos da Copa do Mundo Fifa realizada em nosso país em 2014. É nesse período também que os centros de memória da educação física4 ligados às universidades começaram a sistematizar suas práticas, contemplando em suas equipes profissionais advindos das áreas da museologia e da arquivologia. No que respeita aos lugares de memória específicos do futebol, destacamos o Museu dos Esportes Mané Garrincha (1974), atualmente Museu do Futebol do Rio de Janeiro, no Maracanã (2006); o Memorial e Arquivo Histórico do Figueirense Futebol Clube (2001) (Marques; Pires, 2006); o Museu do Futebol Pacaembu (2008) (Moraes, 2009); o Museu do Futebol e Esportes de Araraquara (2010); o Museu do Sport Club Internacional – Ruy Tedesco (2010); o Arquivo Histórico do Inter (2012); o Memorial Treze de Maio (2012); o Museu Brasileiro de Futebol Mineirão (2013); o Museu Pelé (2014) e o Memorial Hermínio Bittencourt ou Museu do Grêmio (1984, reinaugurado em 2015). Na Europa, podemos citar o Museu Benfica – Cosme e Damião,5 o Nacional Football Museum,6 o Museu do Barcelona,7 o Scottish Football Museum8 e o Fifa Museum.9 Vale destacar que, tanto no contexto brasileiro quanto no europeu, a maioria desses espaços são mantidos pela iniciativa privada.

Ao elencarmos essas instituições, queremos destacar que a memória do futebol tem demandado processos de musealização tanto por parte das instituições gestoras da modalidade quanto por parte de clubes e agremiações esportivas. Contudo, a centralidade do que se tem preservado recai no futebol praticado por homens, e ainda são ínfimas as ações voltadas para a preservação e a divulgação das memórias delas, o que nos leva a afirmar que os registros do futebol de mulheres residem no terreno das “memórias subalternas ou marginais” (Von Simson, 2000, p. 63). Ou seja, caracterizam-se como memórias de um grupo não dominante, que geralmente não são monumentalizadas ou preservadas em espaços estáveis e acessíveis.

Em certo sentido, podemos afirmar que na área da educação física e dos esportes o movimento de preservação das memórias, de forma mais organizada e institucional, emerge com o processo de renovação historiográfica no campo, que, a partir da década de 1990, incorporou novos objetos, fontes e metodologias (Taborda de Oliveira, 2007), conferindo maior atenção às questões de gênero e, consequentemente, às mulheres. Com a ampliação da noção de fonte, despontaram outras perspectivas sobre “os modos de produzi-las, inventariá-las, guardá-las e dar-lhes visibilidade e acessibilidade” (Goellner, 2013, p. 189), dentre elas a migração dos acervos privados para instituições que os tornaram públicos.

Segundo Carlini e Barbieri (2023), existe uma variação no uso do termo acervo na arquivologia. Neste texto nos aproximamos da definição do Instituto Brasileiro de Museus que diz que o acervo “compreende o conjunto de bens culturais, de caráter material ou imaterial, móvel ou imóvel, que integram o campo documental de objetos/documentos que corresponde ao interesse e objetivo de preservação, pesquisa e comunicação de um museu” (Instituto Brasileiro de Museus, 2013, p. 5). A enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira (2023) coloca que acervo “costuma designar um conjunto geral, com corpo mais amplo, muitas vezes constituído de várias coleções”. As coleções seriam conjuntos documentais relativamente coerentes, ou seja, que já possuem alguma organização e sentido (Desvallées; Mairesse, 2013).10

A composição dos diversos acervos sobre futebol carregou consigo intencionalidades, disputas de poder e de discursos sobre a realidade (Chagas, 2002) expressas nos critérios para a recolha, passando pelos esforços de preservação e organização até as formas de divulgá-los. A falta de registros do futebol de mulheres foi um discurso que perdurou por algum tempo como uma forma de desculpa para justificar a falta de investimento em ações de preservação de memórias e reconstrução de histórias. O acesso aos acervos privados colocou em xeque esses argumentos, na medida em que tirou do abandono memórias silenciadas, permitindo, inclusive, o ecoar de vozes que hoje reclamam direitos, representatividade e significação. Para Dilma Mendes, jogadora baiana de geração de 1980: “A gente precisa sair do processo de coitadismo para poder lutar e transformar. Tudo o que eu faço busco acertar a lua, porque se eu não conseguir, eu já estou entre as estrelas” (Mendes, 2021). Ou seja, trouxeram ao plano do visível múltiplas formas de resistência, possibilitado, ainda, a construção de identidades de grupo. Como afirma Von Simson (2000, p. 68, grifo no original), “o ato de relembrar em conjunto, isto é, o ato de compartilhar a memória, é um trabalho que constrói sólidas pontes de relacionamento entre os indivíduos – porque alicerçadas numa bagagem cultural comum – e, talvez por isso, conduza à ação”.

Pensando especificamente no grupo sobre o qual debruçamos nossa análise, entendemos que as mulheres do futebol, ao reconhecerem e se reconhecerem nos registros de memória compartilhados, enfrentaram a marginalidade e depuseram o esquecimento. Ao permitirem a publicização de seus registros e narrativas, tomaram os lugares de memória como seus aliados em prol da defesa do direito de resistir e de existir. Processo este que ainda está em sua fase inicial, porque, se pensarmos que as mulheres sempre estiveram no futebol, ainda são muitos os registros a serem descobertos, perscrutados e divulgados.

Silêncio não significa ausência

A escassez de registros na mídia e nas entidades que dirigem o futebol gerou empreendimentos voltados para a garimpagem de acervos privados, o que foi feito, em grande medida, por pessoas que se dedicaram a pesquisar temas relacionados à presença das mulheres no esporte. Considerando nossa experiência com essas temáticas, descreveremos duas ações nas quais estamos envolvidas e que resultaram não apenas na descoberta e institucionalização de acervos pessoais de mulheres do futebol como na criação de estratégias de preservação e divulgação, cuja efetivação tem possibilitado a reconstrução de histórias que até pouco tempo eram invisibilizadas. Uma delas se estrutura a partir da realização de entrevistas, a outra se concretiza na curadoria de exposições.

Criado em 2002, o Projeto Garimpando Memórias foi implementado pelo Grupo de Estudos em Esporte, Cultura e História (Grecco) junto ao Centro de Memória do Esporte (Ceme) da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Fundamentado no aporte teórico-metodológico da história oral (Alberti, 1989; Ferreira, 2002; Portelli, 1997), tem como objetivo valorizar a oralidade, reconhecendo sua importância como fonte histórica e sua pertinência aos estudos que dialogam com a memória. O foco do projeto é a realização de entrevistas com pessoas cuja história de vida está relacionada com a estruturação e consolidação das práticas corporais e esportivas, as quais são transformadas em documento escrito e disponibilizadas para consulta por meio de recursos tecnológicos, próprios do movimento de acesso livre à informação científica,11 possibilitando a qualquer pessoa ler, fazer download, copiar, imprimir, pesquisar ou referenciar o texto completo dos documentos (Rodrigues, 2005). Ao focalizarmos as entrevistas nas mulheres que atuam no universo cultural do futebol, partimos do entendimento de que essa metodologia

permite ouvir histórias de indivíduos e grupos que de outra forma seriam ignorados; permite expandir os horizontes do nosso conhecimento sobre o mundo; e estimula o questionamento de nossas próprias hipóteses a respeito das experiências e dos pontos de vista de outras pessoas e culturas. (Pathai, 2010, p. 124)

Para além dos usos da história oral como uma metodologia de pesquisa e uma técnica de produção e tratamento de entrevistas, operamos com a perspectiva de produção de acervos. Estes são constituídos tanto pelas próprias entrevistas que, cumpridas todas as etapas de processamento,12 são transformadas em documento, quanto pela coleta de conjuntos documentais e objetos biográficos disponibilizados no momento em que estamos frente a frente com as entrevistadas. Essa articulação, além de promover maior densidade ao documento produzido ou coletado, tem possibilitado que as memórias relatadas façam parte de exposições, seminários, publicações, mostras fotográficas, materiais audiovisuais, enfim, atividades que visibilizam a memória como algo vivo a dizer de ontem e de hoje. Nesse sentido, buscamos “transformar o objeto testemunho em objeto diálogo, permitindo a comunicação do que é preservado” (Bruno, 1997, p. 43). Ou seja, os acervos passam a ser interrogados, contextualizados e inseridos nas narrativas, saindo do isolamento e ganhando inteligibilidade.

A profusão de materiais coletados com as jogadoras, treinadoras, gestoras e árbitras entrevistadas13 motivou a criação de uma coleção específica no Centro de Memória do Esporte, denominada Futebol Feminino, que, juntamente com outras nove,14 está sob os cuidados desse lugar de memória (Nora, 1993). No documento “Política de acervos” figura esta descrição:

A coleção sobre futebol feminino foi criada em 2015 como ação política de visibilidade para as mulheres neste esporte, que inclusive é representado como integrante da identidade nacional. Resulta de um investimento do Ceme na produção de registros sobre esta presença, visto que há poucas fontes de pesquisa, tanto nos diferentes suportes midiáticos como na história oficial da modalidade. O acervo é constituído por cinco formatos de materiais: audiovisual, depoimentos, documental, iconográfico e tridimensional, obtendo maior densidade nos objetos iconográficos que, em sua maioria, existem apenas no formato digital. Para a constituição desta coleção contou-se com a doação/empréstimo de materiais oriundos de acervos pessoais de jogadoras de futebol. Além disso, desenvolvemos uma parceria com o Museu do Futebol, localizado no Estádio do Pacaembu, por meio da campanha “Visibilidade para o Futebol Feminino”, que objetiva o partilhamento das publicações existentes nas duas instituições, de modo que sejam disponibilizadas nestes dois espaços de memória. A temática dos materiais desse acervo se relaciona a itens sobre a participação das mulheres no universo cultural do futebol com destaque para eventos, para a seleção Brasileira de Futebol Feminino e a trajetória de atletas, árbitras, gestoras e técnicas. Seu limite temporal inicial é da década de 1920, quando há registro das primeiras participações de mulheres no futebol brasileiro, tendo limite final indefinido. Esse acervo tem um limite nacional. (Ceme, 2017, p. 12)

Os materiais que integram a coleção são majoritariamente oriundos de acervos pessoais e foram catalogados a partir de suas especificidades, considerando os princípios de sua musealização, que, segundo Marília Cury, abrangem os procedimentos de “aquisição, pesquisa, conservação, documentação e comunicação” (2005, p. 26). Esses testemunhos materiais passaram pelo processo de tombamento, higienização, acondicionamento, guarda e acessibilidade e reúnem itens como fotografias, recortes de jornais, flâmulas, medalhas, troféus, uniformes, bolas, luvas de goleiras, chuteiras, cartazes, registros de competições e documentos diversos. A nossa intencionalidade, ao criar essa coleção, partiu do pressuposto de que, “invariavelmente, formar acervos é uma maneira de atribuir valor no campo da memória” (Versiani, 2018, p. 41).

Ainda que uma parte desse conjunto tivesse natureza arquivística, optamos por lhe conferir um tratamento museológico, por entendermos ser o mais adequado à diversidade de itens que o compõe. Essa decisão foi baseada na não vinculação com a produção do registro como uma prova do seu caráter não sequencial e da falta, em muitos casos, de referências contextuais de produção, que seriam características de documentos típicos de arquivos (Lopez, 2003). Além disso, o processo de musealização dos materiais foi importante para os nossos objetivos, em especial o de visibilizar os itens e suas proprietárias.

Para estruturar essa coleção, também levamos em conta a própria trajetória do Ceme no que tange aos processos de organização e manejo de acervos que, desde sua criação, foram empreendidos sem ter como principal foco o “princípio da proveniência”.15 Com isso, queremos enfatizar que as decisões envolvendo questões afetas às políticas de acervo foram tomadas priorizando a lógica museológica e não arquivística, razão pela qual seu acervo é composto por coleções e não arquivos. Tal afirmação não implica o descarte de alguns conhecimentos e práticas oriundas da arquivologia, as quais foram utilizadas quando necessárias e possíveis para uma melhor adequação ao trabalho de classificação, catalogação e tombamento dos documentos e objetos biográficos.

A concretização desses procedimentos museológicos tem mostrado a importância de se dar estabilidade e algumas garantias às coleções. Migrar de acervos pessoais privados para públicos não tem sido uma tarefa fácil, embora desejável. Os acervos públicos têm se mostrado mais permanentes e de acesso facilitado. Alguns acervos privados dependem do contato com o/a proprietário/a e negociações que, às vezes, impedem o conhecimento e a discussão de seu conteúdo. Por outro lado, ainda não possuímos acervos públicos que garantam a preservação dos acervos do esporte no Brasil, como afirmam Almeida, Veloso e Rubio (2021) quando denunciam, por exemplo, a ausência de um acervo olímpico oficial.

Heymann (2005), ao analisar a constituição de um acervo sobre o movimento negro, assinala que o processo da valorização do que é guardado perpassa pelo reconhecimento do próprio grupo social que sustenta essas memórias, o que certamente contribui para a instituição de estruturas políticas voltadas para a sua preservação. Desafio esse que sentimos ao criarmos a coleção Futebol Feminino no Ceme e nos envolvermos na curadoria de exposições, pois, ao inserirmos memórias de mulheres em espaços que historicamente têm predomínio de registros de homens, desafiamos suas narrativas, sendo necessária uma reorganização naquilo que é visibilizado e, portanto, valorizado.

O processo de migração dos acervos pessoais privados para os lugares de memória esteve permeado por vários desafios. Dentre eles, destacamos a identificação desses conjuntos documentais; a autorização formal da proprietária; o levantamento de sua relevância social (que passa pelo registro da história da sua proprietária); a higienização (quando era o caso); a organização temática e física; o registro de cada item; a descrição de seu contexto e sua lógica dentro da coleção; a digitalização; o acondicionamento; e a elaboração de estratégias para sua divulgação. Ou seja, exigiram procedimentos que requisitaram conhecimentos técnicos e do universo acadêmico que geralmente circulam com mais frequência nas instituições que preservam acervos do que entre pessoas que guardam seus documentos biográficos.

Tal afirmação de modo algum diminui a importância do ato que essas mulheres tiveram de conservar seus registros. Ao contrário: as enaltece, pois sua partilha possibilitou que histórias marginalizadas pudessem ser conhecidas e, com isso, reconhecidas. Ao preservarem registros do que viveram no universo futebolístico, essas mulheres, mesmo sem ter a dimensão do significado desse ato, criaram condições de visibilidade e dizibilidade,16 tornando possível ver e dizer aquilo que precisa ser visto e dito. Afinal, “arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência” (Artières, 1998, p. 11).

Uma das formas de divulgação dos acervos reunidos por meio do projeto Garimpando Memórias foi a realização de exposições. A primeira delas aconteceu durante a realização da Copa do Mundo Fifa de 2014 (de homens), sediada no Brasil com a realização de alguns jogos em Porto Alegre. Aproveitando a visibilidade midiática do evento, organizamos, em parceria com a Associação Gaúcha de Futebol Feminino, a Secretaria do Esporte e do Lazer/Fundação de Esporte e Lazer do Estado do Rio Grande do Sul (Fundergs) e a Secretaria de Políticas para as Mulheres, a exposição Futebol e Mulheres no País da Copa,17 na qual foram exibidos banners temáticos, fotografias e objetos de atletas da seleção brasileira e de outras equipes. A repercussão dessa exposição, associada à divulgação do projeto Garimpando Memórias e à criação da coleção Futebol Feminino no acervo do Ceme, resultou no convite para fazer a curadoria de uma exposição no Museu do Futebol, em 2015, ano de realização da Copa do Mundo de Futebol Feminino que aconteceu no Canadá. O museu, que está localizado no estádio do Pacaembu, em São Paulo, havia dado pouca atenção à temática até então, conforme registra Enny Moraes:

Em nosso passeio, encontramos o lugar reservado para o futebol feminino – o das “curiosidades”, onde há o registro da primeira partida disputada por mulheres, ocorrida em 1898 entre Inglaterra e Escócia e o registro da mais antiga (que se sabe), partida de futebol entre mulheres no Brasil, ocorrida em 1921 em São Paulo. Fora isso, nada mais sobre esses registros, sobre esses sujeitos, suas histórias, muito embora a própria imprensa nacional já tenha tratado de mostrar que há futebol feminino no país desde a segunda década do século passado. (2009, p. 3)

Inaugurada em maio de 2015, a exposição Visibilidade para o Futebol Feminino foi um marco para a história dessa instituição e para a ampliação do interesse pelo tema, que começou a circular com maior frequência na mídia e na pesquisa acadêmica, inclusive com publicações relacionadas à própria mostra. Ao analisar alguns de seus desdobramentos, Nara Montenegro e Maísa Ferreira afirmam que, “desde então, a história do futebol feminino foi inserida em exposições permanentes, temporárias e itinerantes do Museu do Futebol” (2021). No painel de apresentação da mostra, posicionado na entrada do museu, as curadoras Daniela Alfonsi e Silvana Goellner informavam ao público:

Esta exposição busca tornar mais conhecida a história das mulheres que lutaram pelo direito de jogar bola. Compartilhamos a curadoria com as próprias atletas, árbitras e jornalistas de campo que nos indicaram imagens representativas de suas carreiras e abriram seus arquivos pessoais para o Museu do Futebol torná-los públicos por meio do seu Centro de Referência, visando a ampliação das fontes de pesquisa, quase nulas no país. (Grupo de Trabalho do Museu do Futebol ‒ futebol feminino, 2018)

A exibição desses acervos aos olhos do público é uma das funções de uma instituição museológica. Ao exibir os documentos e objetos biográficos presentes nos acervos aqui descritos, transmitimos informações e conhecimentos, participando da formação das pessoas que visitam as exposições, em uma relação multilateral, ou seja, uma forma de comunicação dialógica e que multiplica as narrativas apresentadas.

Numa exposição museológica interagem os indivíduos e a sociedade para construir uma interpretação da realidade: quem olha decodifica as imagens através das representações mentais e sociais que traz consigo e que partilha em comum com grandes parcelas da comunidade ou grupo social. (Rechena, 2011, p. 230)

Esse processo de conceber exposições é resultante de muitas escolhas, discussões, investigação e arranjos estéticos. Segundo Koptcke, “expor é encenar, colocar o objeto em situação de diálogo com o mundo. Mas o objeto não fala sozinho, ou melhor, não é capaz de tudo revelar apenas com sua presença” (2005, p. 74). Tal afirmação implica dizer que uma exposição não se reduz a reunir informações sobre determinada temática, mas constrói narrativas capazes de atingir o público em vários sentidos. Nas iniciativas aqui descritas, procuramos empreender uma postura combativa que chamasse a atenção do público para os impedimentos que as mulheres viveram para estar no futebol, destacando sua resistência e protagonismo.

Essas memórias infames, palavra aqui utilizada a partir da discussão de Michel Foucault (2012) sobre os sujeitos não famosos, reverberam em outras duas exposições realizadas no Museu do Futebol que, assim como a primeira, foram compostas tendo como principal recurso os documentos e acervos pessoais. Vejamos:

Rainhas de Copas é nossa terceira exposição dedicada inteiramente ao futebol de mulheres. Primeiro, nos debruçamos sobre nosso acervo em exibição e observamos, com certo choque, o quão grande era a lacuna: entre as mais de 1.500 imagens em exibição, quase não havia mulheres jogadoras. Nossa primeira missão, em 2015, foi torná-las visíveis em nossa exposição principal e incluir a modalidade de maneira consistente em nossa programação cultural e educativa. Em 2019, Contra-ataque! As Mulheres do Futebol jogou luz sobre os anos de proibição do futebol feminino no Brasil (1941-1979), ressaltando as histórias de resistência, rebeldia e resiliência das mulheres que lutaram pelo direito de jogar. Realizada no contexto da Copa do Mundo da França, essa mostra foi um marco em nossa história e se somou a uma movimentação global pela maior valorização do futebol de mulheres no mundo. Com uma alegria enorme, vimos mais visitantes mulheres frequentando o museu e entendendo que este espaço lhes pertence. Nos próximos meses de julho e agosto, a nona edição da Copa do Mundo Fifa Feminina será realizada na Austrália e na Nova Zelândia. Com Rainhas de Copas, queremos agora prestar uma homenagem a todas as atletas e profissionais que vêm construindo a história da maior competição mundial de futebol feminino. Queremos que cada visita seja inspirada pela trajetória dessas jogadoras, árbitras, treinadoras, jornalistas e torcedoras que fazem dos jogos femininos uma celebração mundial, sem nunca deixar de lado a reivindicação por equidade. Esta exposição reafirma o compromisso do Museu do Futebol com o desenvolvimento social em nosso país – desenvolvimento este que passa pela igualdade de gênero, dentro e fora de campo. Boa visita!18

Além dessas exposições, o museu investiu na utilização de recursos da tecnologia de comunicação e informação para expandir o acesso aos produtos originados dos acervos pessoais das mulheres do futebol. Para além da divulgação no ciberespaço via redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter, site), criou sete exposições on-line por meio de uma parceria com o Google Arts & Culture, a saber: Visibilidade para o futebol feminino; Lea Campos, a primeira árbitra; Michael Jackson: os primeiros chutes; Michael Jackson: livre pra jogar; Michael Jackson: o legado; Mulheres, desobediência e resiliência e Primeiro Mundial de Mulheres na China.19 Investiu também na digitalização de acervos pessoais que podem ser consultados junto ao Centro de Referência do Futebol Brasileiro,20 totalizando aproximadamente 7 mil itens digitalizados. O sentimento de participar dessas exposições, em grande parte produzidas a partir dos acervos das próprias protagonistas, representou uma conquista impensável para várias delas. Para Leda Maria, jogadora carioca da geração de 1980:

Quando vi tudo aquilo fui às lágrimas, até porque eu não sou o tipo de jogadora que aparecia muito, nem dentro e nem fora de campo. Existiam outras jogadoras de mais destaque dentro da seleção e nos clubes, mas estar ali representada, não consigo nem descrever. Nunca imaginei que isso fosse acontecer na minha vida. (Nina, 2019, p. 3)

O trabalho desenvolvido pelos lugares de memória aqui mencionados, no que tange à preservação e divulgação dos acervos pessoais das mulheres do futebol, exigiram conhecimentos que extrapolam o âmbito da museologia e da arquivística. Foi necessário o aprofundamento de arcabouços teórico-metodológicos para subsidiar o trato e a análise desses objetos biográficos entendidos aqui como

construções do mundo material sobre as quais são projetadas experiências de vida do seu possuidor. Como fonte de descobertas, o objeto biográfico ancora memórias e representações. O significado biográfico dado ao objeto é efetivado na presença constante desse elemento material na vida de seus proprietários. Pessoas e coisas não existem de forma separada. Os objetos biográficos contemplam significados simbólicos e idiossincráticos: “contam” a história de seus donos. (Almeida; Amorim; Barbosa, 2007, p. 102)

Além de conhecimentos técnicos, requisitaram empatia e respeito das pessoas que se envolveram no manuseio e processamento dos acervos, visto que estávamos “lidando acentuadamente com uma parte da experiência humana que envolve as emoções e as sensibilidades alheias” (Tanno, 2007, p. 110).

Os processos aqui descritos de identificação, tratamento e disseminação dos acervos pessoais das mulheres do futebol podem ser lidos sob diferentes óticas. Queremos destacar sua relevância para a história do esporte brasileiro, pois, indubitavelmente, lançaram luzes sobre um grupo que historicamente foi marginalizado e esquecido. Como refere Lúcia Feitosa, a primeira brasileira a migrar para o futebol europeu, no ano de 1987: “Eu só queria que houvesse reconhecimento do sacrifício que a gente fez no passado, ter uma homenagem, de deixar a gente falar sobre o que a gente fez no passado, porque se o futebol feminino é isso que tem hoje, é graças a nós. A gente abriu as portas para tudo isso que tem agora e as pessoas não sabem o percurso que a gente fez para abrir caminhos” (Feitosa, 2022).

Ao serem compartilhadas, as memórias dessas mulheres se tornaram potência, reconfigurando narrativas quase naturalizadas. Nessa perspectiva, enfatizamos a necessidade de garimpar memórias para produzir histórias, sobretudo aquelas que vão na contramão das representações normalizadas e hegemônicas. Afinal,

o indivíduo, ao narrar seu cotidiano, sua passagem pela vida no tempo histórico, explicita, também, uma configuração de si mesmo a partir das múltiplas tensões socioculturais que designam a cultura da chamada contemporaneidade. Documentos dessa espécie apontam para outras estratégias de visibilidade de uma época e permitem observar que, enquanto os arquivos públicos calavam, os documentos privados, agora publicizados, podem fornecem informações e indícios sobre o cotidiano, formas de ver o mundo através de fatos comuns da experiência humana, hábitos, costumes. (Cunha, 2013, p. 139)

Considerações finais

Muitos são os produtos e os desdobramentos advindos dos usos dos acervos pessoais das mulheres do futebol. Poderíamos elencar uma série deles, mas esse não é o foco do texto. A compreensão da importância dos acervos privados para esse tema passa pelos meandros de sua história de interdições e invisibilidades. O futebol foi marcado desde seu início pela priorização de memórias dos homens, especialmente brancos de elite econômica. Dessa forma, os registros e os lugares de memória do futebol contaram histórias sem a presença das mulheres, e foram necessárias estratégias para buscar driblar o silêncio.

Ao descrevermos dois empreendimentos que protagonizamos, queremos chamar a atenção para a riqueza presente nos conjuntos documentais guardados, os quais, em sua maioria, foram reunidos sem que suas proprietárias tivessem conhecimentos específicos de preservação, identificação ou catalogação. Nesse sentido, foi de suma importância a estratégia de aliar a recolha do material à história oral e ao contato com essas protagonistas, visto que facilitou conhecer o contexto de cada documento (escrito, imagético, audiovisual ou tridimensional), evitando que perdessem valor e sentido por falta de informações. Para tanto, nos dedicamos a um trabalho denso de pesquisa, não apenas sobre a detentora de cada acervo, mas sobre a própria história da modalidade. Nos encontros que tivemos com essas mulheres, buscamos explorar ao máximo as suas memórias, inquirindo sobre detalhes, sutilezas e situações, pois tínhamos em mente que, em grande medida, apenas elas seriam capazes de proporcionar tais dados. Nesse processo, nos deparamos com limitações tais como o esquecimento, a ausência de anotações e as confusões inerentes ao ato de rememorar no presente algo que aconteceu há muito tempo. Além disso, em alguns casos, nos defrontamos com a precariedade de condições no armazenamento de muitos materiais que, com o passar do tempo, se deterioraram, dificultando sua restauração. No entanto, o que mais nos chamou a atenção foi a não valorização que muitas dessas mulheres experimentaram acerca das suas vivências pessoais, consideradas como algo que era significativo apenas para elas, familiares e pessoas próximas. O descaso e a subvalorização de suas histórias no esporte calaram tão fundo em sua subjetividade, que muitas delas não se consideravam merecedoras de alguma reverência. Ainda assim, com muito cuidado e afeto, acumularam vestígios de um passado que, apesar de ser cerceado por limites e preconceitos, foi vivenciado com orgulho porque, a despeito de todas as interdições, elas levaram adiante o desejo de jogar bola. Orgulho que as fez proteger lembranças íntimas que, ao serem publicizadas, desestabilizaram o jogo dentro e fora do campo.

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Recebido em 18/7/2023

Aprovado em 11/12/2023


1 A Gazeta, São Paulo, 28 jun. 1921, p. 2.

2 Diário da Noite, Rio de Janeiro, 7 maio 1940, p. 11-12.

3 CASTRO, Leite de. O futebol é impróprio para moças. O Dia. Curitiba, 26 de junho de 1940, p. 1.

4 Em trabalho anterior (Macedo, 2017), fizemos o levantamento de dez centros de memória universitários vinculados à educação física em universidades federais, além de um ligado a um instituto federal (IFSULDEMINAS, campus Muzambinho) e outro à Universidade Estadual de Londrina. Depois desse período, surgiram pelo menos mais três: na Universidade de Brasília, na Universidade Federal de Goiás e na Universidade Estadual de Montes Claros. Eles “se propõem e desejam ser lugares universitários de guarda, recuperação, preservação, divulgação e pesquisa, além de produzir registros da memória da educação física e do esporte, mesmo não sendo institucionalizados, e reunir e formar pessoas em torno da temática. São também espaços de sociabilidade e comemorações, que estão sempre em formação e alguns em construção” (Macedo, 2017, p. 89).

5 Do Clube Futebol Benfica, em Lisboa (Portugal). Desde 2022, abriga a exposição temporária “Imparáveis”, que tematiza o futebol de mulheres.

6 Em Manchester (Reino Unido).

7 Do Futbol Club Barcelona (Espanha).

8 Em Glasgow (Reino Unido).

9 Da Federação Internacional de Futebol, em Zurique (Suíça).

10 Devido a essas definições, priorizamos utilizar o termo acervo, por ser mais amplo, e, como veremos, muitos conjuntos documentais referentes ao futebol de mulheres ainda não possuem uma organização.

11 Desde agosto de 2019, o projeto é realizado em parceria com a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Até junho de 2023, 922 entrevistas foram realizadas, sendo que 770 estão disponíveis on-line. Para acessar dados sobre o projeto, as entrevistas e as publicações, ver: http://www.garimpandomemorias.univasf.edu.br/.

12 O processamento das entrevistas envolve as seguintes etapas: transcrição, pesquisa, copidesque, devolução à/ao entrevistada/o, assinatura de carta de cessão de direitos autorais, catalogação no acervo e disponibilização para consulta.

13 Em junho de 2023, o total era de 186 entrevistas.

14 O critério para a constituição das coleções se deu prioritariamente por aproximação temática. São elas: Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte; Dança; Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Educação Física e Esporte; Futebol Feminino; Movimento de Estudantes de Educação Física; Olímpica; Projetos Sociais; Recreação e Lazer; e Universíade 1963.

15 Segundo Burke, esse princípio é proposto nos anos 1850, por Francesco Bonaini, superintendente dos arquivos da Toscana (Burke, 2012). Segundo ele, os documentos devem ser organizados da forma mais próxima possível à sua produção. Para Bellotto, “é o princípio pelo qual as relações administrativas orgânicas se refletem nos conjuntos documentais. É a qualidade segundo a qual os arquivos espelham a estrutura, as funções e as atividades da entidade produtora/acumuladora em suas relações internas e externas” (2014, p. 4).

16 “Aquilo de que se pode falar num discurso definitório, ainda que, eventualmente, não tenha nome próprio” (Agamben, 2016, p. 102).

17 A exposição esteve aberta para visitação entre os dias 24 de junho e 13 de julho de 2014, na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre.

18 Texto de apresentação da exposição Rainhas de Copas. Museu do Futebol, 2023.

19 As exposições podem ser acessadas em: https://artsandculture.google.com/partner/museu-do-futebol?hl=pt-BR.


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