Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, maio/ago. 2024

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H. G. dos Santos, um empresário revolucionário no tenentismo (sul do Paraná, década de 1920)

Business & revolution: H. G. dos Santos, a revolutionary entrepreneur in the tenentism (southern Paraná, 1920s) / Empresa y revolución: H. G. dos Santos, empresario revolucionario en el tenentismo (sur del Paraná, años 1920)

Bruno César Pereira

Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Brasil.

bruno_o8cesar@outlook.com

Valter Martins

Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor associado no Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro, campus Irati), Brasil.

valterirati@yahoo.com.br

RESUMO

A partir de fontes documentais primárias ‒ um processo criminal e jornais ‒, analisamos a trajetória e o protagonismo de Hugo Guimarães dos Santos, um empresário do ramo madeireiro estabelecido em São Paulo que liderou uma sedição tenentista, ocorrida no sul do Paraná em 1926. Refletimos sobre a atuação de Santos na organização e no desenvolvimento do movimento, sua rede de contatos e prisão, além das perseguições e represálias sofridas após o levante.

Palavras-chave: Hugo Guimarães dos Santos; sedição; tenentismo; ferrovia São Paulo-Rio Grande; Paraná.

RESUMO

From primary documentary sources ‒ a criminal case and newspapers ‒, we analize the trajectory and protagonism of Hugo Guimarães dos Santos, an entrepreneur from the lumber branch established in São Paulo, who led a tenentist sedition,which took place in Southern Paraná in 1926. We reflect on Santos role in the organization and development of the movement, his network of contacts and imprisonment, as well as the persecution and reprisals suffered after the uprising.

Keywords: Hugo Guimarães dos Santos; sedition; tenentism; São Paulo-Rio Grande railway; Paraná.

Resumen

Con base en fuentes documentales primarias ‒ un enjuiciamiento penal y periódicos ‒, analizamos la trayectoria y el papel de Hugo Guimarães dos Santos, un empresario maderero establecido en São Paulo que lideró una sedición de tenientes, ocurrida en el sur de Paraná en 1926, organización y desarrollo del movimiento, su red de contactos y detenciones, además de la persecución y represalias que sufrió tras el levantamiento.

Palabras clave: Hugo Guimarães dos Santos; sedición; teniente; ferrocarril São Paulo-Río Grande; Paraná.

Excelentíssimo senhor desembargador, Luiz de Albuquerque Maranhão, chefe de polícia do estado do Paraná: até o presente momento, 27 de maio de 1926, cinco horas da manhã de hoje, os revolucionários aqui não chegaram. Tendo, porém, durante o dia, vindo até Riozinho, distante uma légua e meia.1

Na madrugada de 27 de maio de 1926, Zeferino Salles Bittencourt, prefeito de Iraty,2 enviou o telegrama acima para o chefe de polícia do estado do Paraná, em Curityba. Seu teor informava que, na noite de 25 para 26 daquele mês, um grupo de revoltosos, chefiados pelos gaúchos Hugo Guimarães dos Santos e João Cony, organizaram e levaram a cabo uma sedição no sul do estado. O movimento teve como eixo a ferrovia São Paulo-Rio Grande, no trecho entre as cidades de Mallet e Iraty, passando pelos municípios de Rio Azul (Roxo Roiz à época) e Antônio Rebouças (atual Rebouças), trecho esse conhecido como Linha-Sul.

Em estudo recente, buscando conhecer aspectos dos personagens envolvidos, narrativas e estratégias utilizadas pelos revoltosos, situamos tal sedição num quadro mais amplo da turbulenta política nacional na década de 1920, evidenciando que tal movimento no sul paranaense teve conexões diretas com os movimentos tenentistas daquele período (Pereira; Martins, 2022).

O tenentismo configurou-se como um movimento político de âmbito nacional, tornando-se importante tema nos estudos historiográficos no século XX. Tal movimento se caracterizou pelas revoltas militares ocorridas na década de 1920 contra as oligarquias estabelecidas no poder. Seus militantes preconizavam a moralização da República e maior participação militar nos destinos da nação. O tenentismo ganhou contornos mais amplos, na medida em que entre os próprios militares havia matizes de pensamento, condensando diferentes interesses e expectativas. As insatisfações de setores do Exército em relação aos governos da Primeira República, sobretudo aqueles liderados por jovens oficiais, tenentes e capitães, desencadearam movimentos armados como a Revolta do Forte de Copacabana, em 1922 no Rio de Janeiro, a Revolução de 1924, liderada por Isidoro Dias Lopes e apoiada por Miguel Costa em São Paulo, e a Coluna Miguel Costa-Prestes, que percorreu o Brasil entre 1925 e 1927. No entanto, o tenentismo não ficou restrito às regiões Sul e Sudeste. Ocorreram também manifestações em estados como Pará, Maranhão, Pernambuco e Sergipe, cada qual com suas especificidades.

O termo tenentismo se difundiu, inicialmente, a partir da publicação do Sentido do Tenentismo por Virgílio Santa Rosa em 1933, que via no tenentismo um movimento das classes médias urbanas, visando a maior participação política. Conforme Vavy Pacheco Borges (1992), o termo tenentismo foi usado antes mesmo dos levantes militares da década de 1920, se referindo à ideia de “intervenção militar”. Porém, foi após a Revolução de 1930 que ganhou notoriedade, a partir da construção de sua memória e de suas interpretações. Como afirma Borges, o movimento tenentista não era unitário, apresentando características diferentes e mesmo divergentes: uma liberal-democrática durante a década de 1920 e outra autoritária, após 1930. Pelas ações e filiações ideológicas de seus integrantes, o tenentismo abarcou em si “esquerda” e “direita” (Borges, 1992, p. 230).

No caso do movimento ocorrido no sul paranaense, palco deste estudo, em 1926, várias evidências a aproximam dos ideais esquerdistas, além de ser liderada e praticada por “tenentes civis” (Pereira; Martins, 2022). Ao compulsarmos as fontes documentais da época: processo criminal e jornais, fica evidente o que afirmou Borges (1992, p. 20): “Não existiam também os sujeitos históricos hoje conhecidos como ‘tenentes’: o que existia eram ‘militares revolucionários’, ‘revoltosos’, ou ‘rebeldes’, ‘revoltados’, conforme se fosse a favor ou contra os levantes”.

Em geral, as pesquisas clássicas sobre os levantes tenentistas da década de 1920, inauguradas com Santa Rosa (1933)3 e aprofundadas por Boris Fausto (1978; 1991), enfatizaram o protagonismo dos militares nos mesmos, dando pouca atenção à participação dos civis. Maria Cecília Spina Forjaz (1976), além de mencionar a rebeldia dos militares, alertou para a rebeldia das oligarquias regionais dos estados ditos intermediários, como Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. Estados que integraram a “reação republicana” cujo candidato era Nilo Peçanha, em oposição ao candidato café-com-leite de São Paulo e Minas Gerais, Artur Bernardes, nas eleições presidenciais de 1922. Nesse aspecto, Forjaz incorporou ao universo tenentista a participação de civis, muitos deles ligados às classes endinheiradas desses estados.

Contudo, conforme Prestes (1994; 1997) e Bello (1964), a historiografia do tenentismo o apresentou como um movimento estritamente militar, dando a impressão de que suas manifestações eram autônomas em relação ao conjunto da sociedade. Tais trabalhos destacam que havia uma correspondência entre o movimento social e o militar. Durante a Primeira República, militares e civis possuíam diferentes motivações e reivindicações. Porém, eventualmente, esses grupos se uniam em pautas comuns. As alianças ficaram evidentes nos movimentos rebeldes tenentistas. Assim, tal perspectiva contribui para observarmos outros horizontes e sujeitos envolvidos nos levantes tenentistas da década de 1920. Como Prestes (1994) enfatizou, os movimentos ocorridos em diferentes localidades do território nacional deveriam ser analisados tanto em suas dimensões macro (nacional) quanto micro (local), evitando-se assim generalizações imprecisas, excessos de subjetividade e teleologismos.

Sobre este ponto, as ponderações de Prestes (1994) e os estudos desenvolvidos por Castro (2013; 2016; 2023) são exemplares.4 Ao pesquisar sobre a Revolta de 1924 em São Paulo, conhecida também como Revolta de Isidoro Dias Lopes, Castro analisou a participação dos militares: oficiais do Exército, da força pública e sargentos. Porém, seus estudos destacaram a participação dos civis, nacionais e estrangeiros (alemães, húngaros e italianos), dos quais muitos eram operários, anarquistas e comunistas, revelando que tais revoltas envolviam uma complexa diversidade de pessoas: militares e civis, com distintas origens sociais, visões políticas, motivações e expectativas. Seus trabalhos permitem expandir o conceito de tenentismo para além daquele apresentado nos estudos clássicos, alicerçados na ação dos militares com a patente de tenente, eclipsando os demais grupos sociais envolvidos nos movimentos.

Tendo em vista o horizonte revolucionário da década de 1920 e levando em consideração as pesquisas mencionadas acima, analisamos uma sedição tenentista ocorrida no sul do Paraná em 1926, a qual, ao longo deste artigo, denominamos de “Sedição da Linha-Sul”.5 Liderada pelo empresário Hugo Guimarães dos Santos, essa sedição teve entre suas principais características o fato de ter sido levada a cabo apenas por agentes civis: agricultores, comerciantes, operários e outros trabalhadores urbanos e rurais. Além de serem movidos pela contestação ao governo de Artur Bernardes e às oligarquias, localmente, tinham questões não resolvidas com a ferrovia São Paulo-Rio Grande (Pereira; Martins, 2022).

Destaca-se que a Sedição da Linha-Sul paranaense possuía como objetivo mais evidente angariar fundos para uma revolução nacional que estaria por vir. Em sua estratégia de ação, os rebeldes tomaram de assalto um trem da ferrovia São Paulo-Rio Grande, na cidade de Mallet, Linha-Sul paranaense, com o qual percorreram a região da floresta de araucárias em direção a Iraty. Ao chegarem nas estações daquele trecho da linha, os sediciosos desfalcavam o dinheiro das bilheterias e inutilizavam os aparelhos telegráficos, estratégia comum em diversas rebeliões da época.6 Ato contínuo, dividiam-se em grupos e assaltavam coletorias estaduais, federais, casas comerciais7 e agências bancárias.8 Por fim, antes de seguirem adiante, buscavam recrutar novos membros para o movimento, de forma espontânea ou mediante ameaças.

Segundo os autos processuais e as notícias publicadas em periódicos paranaenses e de outros estados, os sediciosos arrecadaram uma importância estimada em 16 contos, 928 mil e 600 réis (16:928$600). Neste valor, todavia, não foram contabilizados os valores das armas, munições e demais mercadorias “requisitadas” nos armazéns e casas comerciais. Ou seja, o real montante angariado, ou prejuízo decorrente das ações dos insurgentes no dia 26 de maio de 1926, no sul do Paraná, foi superior ao divulgado.

Acerca dos indivíduos envolvidos no movimento, seu número variou de oitenta a cem homens, segundo depoimentos das testemunhas e réus interrogados. Ao todo, o processo arrolou 43 indiciados, divididos em dois grupos: os autores9 e os cúmplices.10 Todos os indiciados foram denunciados pelos crimes de roubo, lesão corporal, ameaças, depredação e arrombamento de patrimônio público e privado, todos previstos nos artigos 356, 357 e 358 do Código Penal de 1890. Aqueles incluídos no grupo dos “autores” foram acusados também pelo crime previsto no artigo 107 do mesmo código penal: “Tentar, diretamente e por fatos, mudar por meios violentos a Constituição Política da República, ou a forma de governo” (Brasil, 1890).

Após as investigações realizadas entre junho e agosto de 1926, que resultaram no detalhado Relatório da Tentativa de Sedição,11 redigido por José Guedes Quintella, delegado do 3º Distrito Policial de Curityba, o inquérito policial foi remetido, em 9 de agosto daquele ano, ao Juízo Federal da Seção Paraná, responsável pelo julgamento.


Figura 1 ‒ Hugo Guimarães dos Santos, 33 anos, comerciante de madeiras. Foto registrada na Delegacia de Polícia de Roxo Roiz (Rio Azul), em 25 de junho de 1926, na ocasião de sua prisão. Fonte: O Estado do Paraná, Curityba, n. 493, 17 de agosto de 1926, p. 1

Durante o julgamento, ocorrido entre os meses de fevereiro a abril de 1927, presidido pelo juiz federal João Baptista Carvalho Filho, a defesa dos réus, sobretudo a de Hugo Guimarães dos Santos, representada pelo advogado Raul Péricles Carneiro de Souza, trabalhou para romper com a narrativa de que integravam um grupo revolucionário (Cedoc/I – PC 290.69, 1926-1939, p. 268-303).

Seu objetivo, ao descaracterizar o crime de sedição que recaía sobre os réus, era identificar a incompetência daquele juízo, de maneira que o processo fosse remetido à comarca de Iraty. Os argumentos dos advogados surtiram efeito e o processo foi enviado para Iraty em 22 de abril de 1927. A decisão do juiz federal Carvalho Filho se deu, sobretudo, devido à falta de testemunhas. Durante o inquérito, em 1926, foram ouvidas mais de cem pessoas. Durante o julgamento, no ano seguinte, somente oito testemunhas prestaram depoimento. O juiz Carvalho Filho convocou, entre janeiro e março de 1927, diversas testemunhas. Porém, recebeu como respostas das comarcas da Linha-Sul: “não reside nesta comarca”, “falecido”, “mudou-se”, “não encontrado” (Cedoc/I – PC 290.69, 1926-1939, p. 290-300).

Dessa forma, é compreensível a decisão do juiz em desconsiderar o crime de sedição, visto que foi impossível comprová-lo ou relacioná-lo com outras sedições do período, a partir dos poucos depoimentos colhidos durante as audiências.

O processo contra os sediciosos foi retomado e teve continuidade na comarca de Iraty, em 1927. A partir de então, seguiu lentamente, favorecendo os acusados. O que certamente atendia às expectativas dos advogados de defesa. Muitas testemunhas foram intimadas a depor, poucas compareceram. Em Iraty, repetiram-se os mesmos problemas enfrentados pelo Juízo Federal da Seção Paraná, em Curityba. Raul de Souza, advogado de Hugo dos Santos, denunciaria que seu cliente sofria uma indiscriminada perseguição por parte do juiz daquela localidade, o que geraria um pedido de suspeição do então juiz Eduardo Xavier da Veiga. Segundo o advogado Raul de Souza, o juiz de Iraty não julgava seu cliente de forma isenta, por ter sido vítima dos eventos sediciosos de 1926. Como consta no processo, o juiz da comarca de Iraty era sócio em uma casa comercial saqueada pelos revoltosos na cidade de Rebouças (O Dia, Curityba, n. 1.682, 11 de outubro de 1927, p. 4). O pedido de suspeição do juiz, aliado à escassez de testemunhas dispostas a colaborar com as investigações, paralisou o andamento do processo em meados de 1928.

Foi retomado somente em 1934, já no governo Vargas, sob a justificativa do elevado número de processos a serem julgados no fórum da comarca de Iraty (Cedoc/I – PC 290.69, 1926-1939, p. 392). Apesar da retomada, o processo seguiu lentamente por vários anos. Novas intimações convocando testemunhas e réus foram expedidas até meados de 1938. Daí por diante, foi cada vez mais difícil intimar testemunhas ou cumprir mandados de prisão. Tanto réus como testemunhas faleceram e, certamente, muitos dos envolvidos na sedição simplesmente desapareceram. Em maio de 1938, o promotor público Alberto de Carvalho Seixas solicitou ao juiz da comarca a prescrição dos crimes. Joaquim Ferreira Guimarães, juiz da comarca de Iraty, acatou o pedido e, em 7 de agosto de 1939, decretou a prescrição dos crimes. Em seguida, o processo foi arquivado.

Pelo processo criminal, instaurado em Curityba e transferido para Iraty a fim de investigar o episódio sedicioso, ficou claro que poucos dos diretamente envolvidos na Sedição da Linha-Sul chegaram a ser interrogados. Isso impossibilitou conhecer suas motivações individuais para integrar o movimento. No entanto, analisando os depoimentos de alguns dos líderes, coletados pelo delegado Quintella para o inquérito policial, bem como as declarações de vítimas dos ataques rebeldes e outras testemunhas, foi possível apreender que a insurgência no sul do Paraná, em 1926, ecoou a insatisfação geral contra o governo do presidente Artur Bernardes e o que ele representava, expressa em levantes similares pelo país. Os sediciosos exploraram também insatisfações locais para angariar simpatias e adeptos, envolvendo os “mandos e desmandos” nas relações trabalhistas da ferrovia São Paulo-Rio Grande e seus operários (Pereira; Martins, 2022).

Partindo dessas breves considerações acerca da sedição tenentista ocorrida no sul do Paraná em 1926, no presente artigo analisamos o personagem de Hugo Guimarães dos Santos, um dos líderes da sedição. Para tanto, consideramos duas fontes documentais primárias: 1) um processo criminal, lavrado inicialmente no Juízo Federal da Seção Paraná, em Curityba, em 1926, remetido à comarca de Iraty no ano seguinte com seu respectivo inquérito policial; 2) matérias publicadas em jornais paranaenses e de outros estados disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Nas páginas seguintes, refletimos sobre a organização da Sedição na Linha-Sul do Paraná, sobre a rede de contatos de Hugo Guimarães dos Santos, sua atuação durante o movimento e as perseguições sofridas pelo empresário por parte da Companhia de Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Esses elementos conformam temas centrais para compreender a trajetória, o protagonismo e a emblemática influência de sua figura nas terras sul paranaenses, na segunda metade da década de 1920, como importante empresário do ramo madeireiro e líder da Sedição Tenentista na Linha-Sul.

Em 12 de novembro de 1927, mais de um ano após a sedição, o jornal curitybano O Dia (n. 1699, p. 4) publicou uma carta de Hugo Guimarães dos Santos, na qual o empresário dizia: “Ainda é cedo para escrever a história de tais fatos desenrolados naquela região”. Após quase um século daquele 26 de maio de 1926, os arquivos históricos públicos e seus documentos preservados e acessíveis à pesquisa possibilitaram trazer à luz e aprofundar o conhecimento sobre um dos movimentos que compõem o horizonte revolucionário tenentista da década de 1920 no Brasil. Nesse contexto, analisamos a peculiar figura e a atuação de um empresário-revolucionário gaúcho que vivia em São Paulo e tinha negócios no sul do Paraná.

Hugo Guimarães dos Santos: empresário e revolucionário

Hugo Guimarães dos Santos, nascido em 1894 no Rio Grande do Sul, era casado com Maria Camacho dos Santos. Residia na capital paulista, na rua Major Maestro Cardim, n. 44. Era empresário no comércio de madeiras, com matrícula na junta comercial local. O escritório da H. G. Santos & Cia. se localizava na rua Benjamin Constant, n. 1, segundo andar.

Hugo dos Santos era influente e conhecido comerciante de madeiras na região Sul do Paraná, de onde provinha a madeira que vendia em São Paulo e local que serviu de cenário para as ações revolucionárias nas quais se envolveu diretamente.

Em março de 1924, o nome de Hugo Guimarães dos Santos e de sua empresa madeireira foram mencionados no jornal curitybano O Dia (n. 229, 29 de março de 1924, p. 1). Na matéria, Santos era acusado de ser “um dos tubarões da Cia. S. Paulo Rio-Grande”, por desfrutar de favores especiais do então diretor representante daquela ferrovia, o sr. Ignacio Martins. Segundo O Dia, Hugo dos Santos recebia descontos sobre as tarifas, conseguia mais vagões do que os demais empresários e impedia ou dificultava a compra de madeiras por seus concorrentes na região da Linha-Sul.12

Sua empresa madeireira fazia publicidade nos principais jornais da capital paranaense, como Commercio do Paraná, O Dia, O Estado do Paraná e Jornal da Manhã. As propagandas destacavam que a empresa possuía “vagões próprios para transporte”, evidenciando seu poder diante das concorrentes. Os 25 vagões da H. G. Santos & Cia., importados da Europa por intermédio da prestigiada firma Soares & Sampaio Ltda., transportavam madeira extraída nas regiões de Rio Caçador (Santa Catarina, palco de ações da Guerra do Contestado) e da Linha-Sul do Paraná (do Levante Tenentista de 1926) para a capital paulista pela ferrovia São Paulo-Rio Grande. A polêmica ferrovia que teve papel decisivo na eclosão e nos desdobramentos da Guerra do Contestado.13

Pelos autos processuais e publicações jornalísticas do período, é possível notar que a figura de Hugo Guimarães dos Santos teve importância emblemática na sedição de 26 de maio na Linha-Sul do Paraná, tanto na organização como na liderança do movimento. Em função de seu ramo de negócios e vida pessoal, Santos tinha muitos contatos em diferentes partes do país. Segundo investigações contidas no processo, suas relações incluíam “oficiais desertores do exército” e “importantes figuras públicas” em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e no Rio de Janeiro (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 229).

Por ser um importante comerciante de madeiras e possuir boa reputação no ramo, Santos conhecia muita gente ao longo da ferrovia São Paulo-Rio Grande no sul paranaense. Isso ficou evidente nos depoimentos registrados no processo. A maioria das testemunhas ouvidas durante o inquérito policial ‒ comerciantes, agricultores e operários ‒, conhecia Hugo Guimarães dos Santos e o distinguia como “comprador e comerciante de madeiras na região”.

A escolha do empresário Hugo Guimarães dos Santos, figura conhecida e com credibilidade na região da Linha-Sul para liderar a sedição, certamente ajudou no recrutamento de voluntários simpáticos à causa rebelde. Contudo, não foi esse o único motivo para que ele se tornasse um dos líderes do levante. Pessoalmente, Santos via com simpatia os movimentos de resistência que agitavam a década de 1920 no Brasil (Carone, 1975; 1977).

Após permanecer 11 meses na prisão como preso político (de junho de 1926 a abril de 1927) pela acusação de liderar a sedição na Linha-Sul, ao ser libertado Santos concedeu entrevista ao jornal curitybano Gazeta do Povo, no final de abril de 1927, em parte reproduzida pelos periódicos O Diário da Noite (n. 100, 28 de abril de 1927, p. 4), O Combate (n. 4.387, de 28 de abril de 1927, p. 4) e A Gazeta (n. 6.371, de 29 de abril de 1927, p. 2), todos de São Paulo, e também no Correio da Manhã (n. 901, de 28 de abril de 1927, p. 2), do Rio de Janeiro. Nessa entrevista, Hugo dos Santos é identificado como um “ex-revolucionário, envolvido em movimentos sediciosos desde 1924, e que se tornou famoso após o Levante da Linha-Sul, movimento do qual foi inspirador e cabeça”. Sua narrativa destaca a “odisseia de um revoltoso prisioneiro” que esteve preso em “todas as bastilhas inventadas pelo governo passado”, em referência ao governo de Artur Bernardes.

Hugo dos Santos esteve nos presídios da Ilha de Bom Jesus, Ilha da Trindade e Ilha das Cobras, famigeradas prisões para presos políticos na época. Entre suas estadias no xadrez, conheceu o capitão Goitacazes, vulgo “capitão Pittoresco”, comandante do destacamento que vigiava os presos na Ilha de Bom Jesus. Segundo o “ex-revolucionário”, Pittoresco possuía carta branca do Palácio do Catete, sobretudo do general Santa Cruz, para realizar “diversões” com maus-tratos contra seus companheiros de cárcere, como privações de higiene, comida e remédios, além de ser o responsável por tomar os depoimentos dos presos, visando “arrancar confissões”. Segundo Santos, tais interrogatórios incluíam espancamentos, chicotadas e bofetadas, denunciando a realidade das condições carcerárias daquele período, corroborando o que averiguou Aragão (2011, p. 343), ao afirmar que as prisões brasileiras na década de 1920 tinham seu cotidiano marcado pelo isolamento, pela tortura, fome, doença e morte. Além de militares rebeldes, muitos civis envolvidos em revoltas ‒ deputados, jornalistas, comerciantes (caso de Hugo Guimarães dos Santos), operários e cidadãos comuns ‒ foram encarcerados, interrogados, torturados e mantidos presos ilegalmente: “trata-se de um período da história no qual as prisões permaneceram lotadas, estando os prisioneiros sujeitos à tortura e até mesmo à morte, nas mãos de uma polícia truculenta e arbitrária, respaldada por autoridades do Exército e pela Presidência da República”.14

Uma das poucas menções à trajetória de Hugo Guimarães dos Santos em outros movimentos da década de 1920 foi registrada em breve texto publicado na revista carioca O Malho (n. 1.170, de 14 de fevereiro de 1925, p. 14). A publicação informou que um grupo constituído por João Baptista, Waldemar Aragão da Silveira e Jayme de Almeida, todos desertores do 4º Regimento de Artilharia Montada; os tenentes Alfredo Malluf e Waldemar Levy Cardoso; Américo Bruno, ex-sargento da Força Pública; Paschoal Lembo, impressor de boletins sediciosos; Luiz Rebello, tenente reformado da Força Pública e Antônio Marcello Junior estavam organizando um movimento revolucionário na capital paulista em 1925. Segundo a referida notícia, Santos era um dos líderes do movimento, tendo emprestado o escritório de sua empresa madeireira para servir de quartel-general aos conspiradores. Essa informação sugere que ele, ao se engajar na Sedição da Linha-Sul do Paraná, em 1926, já possuía certa experiência na organização de revoltas.

Retomando os episódios na Linha-Sul da ferrovia São Paulo-Rio Grande, para melhor compreender a participação de Santos na sedição de maio de 1926, buscamos, como fez o delegado Quintella, responsável pela investigação sobre a revolta na região de Iraty, “seguir as pegadas de Hugo Guimarães dos Santos” (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 222).

Todavia, antes de abordar a Sedição da Linha-Sul propriamente, destacamos outro momento do ano de 1926 registrado no processo criminal, episódio que pode ser divisado enquanto prelúdio do levante de maio daquele ano. Em seu depoimento, prestado na Delegacia de Polícia de Roxo Roiz (Rio Azul), Hugo Guimarães dos Santos afirmou que, em fevereiro de 1926, encontrava-se hospedado no Hotel França, em Ponta Grossa, Paraná, quando foi procurado por oficiais desertores do Exército. Eram o capitão Carlos da Costa Leite e alguns “tenentes”, de quem se recordou somente os nomes de Cavalcante e Delson de Menezes (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 162-171).

Conforme informou, tais oficiais o procuraram para saber se ele conhecia ou possuía ligações com alguém chamado João Cony. Além disso, os militares desertores avisaram sobre um levante revolucionário que ocorreria em todo o país em 1º de março, data das eleições presidenciais. No estado do Paraná, o levante aconteceria na capital Curityba, tendo como líder principal o carioca Chistovam Barcellos. Segundo o capitão Carlos da Costa Leite, Barcellos era considerado pelos camaradas, militares desertores, como o “segundo Prestes do Brasil”, em referência a Luiz Carlos Prestes que, naquele momento, já era conhecido nacionalmente por sua liderança na Coluna Miguel Costa-Prestes.

Sobre o movimento previsto para 1º de março de 1926, Carlos da Costa Leite e seus companheiros militares pediram ajuda a Hugo dos Santos para organizar um levante revolucionário na região de Iraty. Nessa missão, ele contaria com a ajuda de seu amigo e conhecido revolucionário rio-grandense, João Cony. Em seu testemunho, Santos informou que fora apresentado a João Cony em seu escritório comercial em São Paulo, em data não mencionada, pelo então deputado estadual pelo Partido Federalista do Rio Grande do Sul, Arthur Caetano da Silva. Cony era amigo de Silva e, segundo o deputado, homem “de muito valor e ação”. Desde esse encontro eles mantiveram amizade.

Após ser chamado pelos oficiais desertores do Exército para liderar a sedição, por ser veterano de outros movimentos rebeldes e ter prestígio na região da Linha-Sul, Santos se reuniu com Cony e outros companheiros e seguiram para Iraty, a fim de recrutar mais homens e organizar o movimento. Enquanto conversavam com pessoas e planejavam os detalhes do levante, previsto para 1º de março de 1926, Zeferino Bittencourt, então prefeito daquela cidade, soube pelo comerciante Alexandre Negro que Hugo Guimarães dos Santos e Adelino Ferreira de Moraes articulavam com oficiais desertores do Exército um “movimento sedicioso contra os poderes constituídos da nação”, que deveria ocorrer com a chegada do trem vindo do norte (Ponta Grossa), em 1º de março daquele ano (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 7).

Zeferino Bittencourt, com auxílio do delegado de polícia local, Arias Pio Martins, enviou um telegrama ao presidente do estado solicitando reforços. Temendo que não chegassem a tempo, reuniu 14 homens armados e se preparou para enfrentar o levante que, afinal, não aconteceu (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 176).

Com a chegada de um destacamento do Exército a Iraty, vindo de Porto União, Santa Catarina, na divisa com o Paraná, sob o comando do capitão Izaltino de Pinho, Hugo Guimarães dos Santos e Adelino Ferreira de Moraes se entregaram, enquanto João Cony e outros camaradas fugiram para a área rural de Iraty em um caminhão da marca Ford, furtado na cidade.15 Hugo Guimarães dos Santos e Adelino Ferreira de Moraes acabaram presos. Entretanto, por falta de provas que os ligassem à tentativa de sedição, ambos foram soltos (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 7 e 177).

A partir dos fatos expostos, é possível notar um interessante confronto de narrativas no processo. Por um lado, Hugo Guimarães dos Santos e Adelino Ferreira de Moraes declararam que o prefeito Zeferino Bittencourt sabia da conspiração e estava envolvido nela, conseguindo armas e “arrumando gente” para a revolta. Santos declarou ainda que foi somente após a chegada de um destacamento do Exército a Iraty e a denúncia do delegado Arias Pio Martins que Bittencourt resolveu mudar de lado, talvez temendo represálias como prisão e perda do cargo. Santos afirmou que o prefeito de Iraty, inicialmente a favor, traiu o movimento sedicioso em preparo. Em publicação no jornal curitybano O Dia (n. 1.699, 12 de novembro de 1927, p. 4), Santos deixou claro que a sedição, levada a cabo em maio de 1926, no sul do Paraná, não teve êxito devido à “covardia e traição de muitos”. Na edição número 1.722 do jornal, de 9 de dezembro do mesmo ano, Santos afirmaria que o fracasso do levante ocorreu devido “ao trabalho diabólico e covarde de agentes provocadores que naquele tempo [referência a 1º de março e 26 de maio de 1926] se infiltravam em todas as camadas oposicionistas” (O Dia, n. 1722, 9 de dezembro de 1927, p. 4).

As declarações de Hugo dos Santos, especialmente aquelas proferidas ao longo do inquérito policial, foram negadas pelo prefeito Bittencourt em seu depoimento, cuja versão foi corroborada pela investigação do delegado Quintella, a partir dos depoimentos dos comerciantes Alexandre Negro, Trajano Feijão, Salvi Cury e do guarda-livros Levy Felipe dos Santos (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 136-141).

Essa malograda tentativa de sedição, de 1º de março de 1926, ganhou algumas notas em dois dos principais jornais da capital paranaense. O jornal O Dia (n. 820, de 9 de março de 1926, p. 7) publicou matéria intitulada “Ecos da tentativa de sedição no interior do estado”, na qual transcreveu um boletim redigido pelo comandante militar da região, general Nepomuceno Costa, elogiando os militares que impediram a tentativa de sedição. Esse mesmo boletim seria publicado também no jornal O Estado do Paraná: Jornal da Manhã (n. 360, 10 de março de 1926, p. 2). Em ambos os jornais, foi atribuída a João Cony a organização do levante, sem alusão aos nomes de Hugo Guimarães dos Santos e Adelino Ferreira de Moraes.

Porém, mesmo não sendo mencionado nas matérias dos jornais da época, o delegado Quintella explicitou que, após Santos e Moraes serem soltos, os planos de rebelião foram retomados: “Começaram a organizar uma nova sedição que deveria irromper em toda a Linha-Sul [Ferrovia São Paulo-Rio Grande] do estado [do Paraná]” (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 8).16

A partir de então, Hugo dos Santos e Adelino de Moraes continuaram a recrutar indivíduos em toda região de Iraty, para que o movimento revolucionário explodisse em data próxima, o que acabou ocorrendo na madrugada de 26 de maio de 1926. Pelo que consta no inquérito e nos depoimentos das testemunhas, a segunda tentativa de levante ocorreria simultaneamente a outros movimentos espalhados pelo país.

Fracassado, destarte, o movimento sedicioso de 1º de março do ano corrente [1926], os sediciosos não desanimaram: resolveram levar a efeito um outro, mais eficiente nos seus propósitos, estabelecendo para tal fim um serviço de ligação mais completo entre os cabeças do novo levante e estendendo os seus tentáculos subversivos sobre um maior número de indivíduos simpáticos ao segundo movimento projetado, a fim de ser o mesmo realizado em toda a extensão da Linha-Sul. Para o fim de arranjar prosélitos, foi então destacado Hugo Guimarães dos Santos, o qual, como um dínamo sempre em movimento, confabulando ora com uns, ora com outros, não só dentro dos limites deste estado [Paraná], bem como assim em São Paulo e na capital federal, apresentou os cabeças e figuras mais salientes do novo movimento em elaboração, a fim de que a nova sedição em preparo pudesse rebentar com a eficiência desejada, no dia 25 de maio do ano corrente. (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 226, grifo nosso)

Para essa segunda tentativa de revolta, Hugo Guimarães dos Santos convidou novamente João Cony, por intermédio de oficiais desertores do Exército, para comandar as operações. Cony era chamado por seus companheiros, durante a sedição, de coronel João Cony. Nascido em 1884 em Itaqui, Rio Grande do Sul, na fronteira com a Argentina, era filho de Gregório José Cony e Jesuína Garcia. Foi membro do Partido Federalista e participou ativamente da Revolução de 1923 no Rio Grande do Sul, ao lado dos assisistas17 (Instituto Histórico de Passo Fundo, 2019).

Em 1927, em publicação no periódico curitybano O Dia (n. 1.688, 18 de outubro de 1927, p. 2), Raul Péricles Carneiro de Souza, advogado de Hugo dos Santos, referia-se a Cony como “vanguardeiro de Leonel [Maria da] Rocha”, líder revolucionário camponês, que esteve vinculado aos maragatos e foi figura ativa nos movimentos revolucionários em terras gaúchas ao longo da década de 1920 (Barroso, 2021).

Em 1931, João Cony participou da fundação do Partido Populista Radical, em Passo Fundo. Posteriormente, tornou-se um dos fundadores e líderes do Partido Comunista na mesma cidade e do Instituto Histórico de Passo Fundo (Instituto Histórico de Passo Fundo, 2019). 

Sobre Cony, o delegado Quintella escreveu: “João Cony, considerado pelos seus comandados como o bravo dos bravos que, há poucos anos passados, como um centauro trilhará e retrilhará as coxilhas do Rio Grande, deixando um sulco de sangue, de dor e de luto na sua passagem de Attila revolucionário” (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 229). A julgar pelas palavras barrocas do delegado Quintella, Cony seria um temível e sanguinário revolucionário. Em notas sobre a tentativa de levante de 1º de março e sobre o levante de 26 de maio, João Cony é identificado pela imprensa paranaense como um “industrial de levantes rebeldes” (O Estado do Paraná, Curityba, n. 360, 10 de março de 1926, p. 2) e “um conhecido revolucionário” (O Estado do Paraná, Curityba, n. 427, 29 de maio de 1926, p. 1).

Tais afirmações acerca de sua figura alegórica se devem à sua participação em movimentos revolucionários no Rio Grande do Sul. Jornais gaúchos e da capital federal registraram as peripécias de João Cony. O jornal porto-alegrense A Federação (n. 157, 6 de julho 1923, p. 6) o apresentou como um dos líderes de um movimento sedicioso na zona serrana do Rio Grande do Sul em 1923, envolvendo os municípios de Passo Fundo e Boa Vista do Erechim. Em junho de 1924 A Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro, n. 126, 29 de junho de 1924, p. 1), ao apresentar um balanço dos saques perpetrados por revolucionários em 1923 no Rio Grande do Sul, destacou João Cony como líder de um grupo revolucionário que assaltou a cidade de Vacaria. Outro jornal carioca, A Manhã (n. 339, 30 de janeiro de 1927, p. 1), noticiou a participação de João Cony numa insurreição na Colônia Ernestina, zona serrana gaúcha, ocorrida em finais de janeiro de 1927.

Na década de 1930, o nome de João Cony continuou em evidência na imprensa, mas já como membro do Partido Comunista Brasileiro em Passo Fundo. O jornal Caxias: Vespertino Independente (Caxias do Sul, n. 203, 7 de maio de 1931, p. 1), publicou matéria intitulada “O contágio comunista”. Ainda em maio de 1931, o jornal catarinense O Estado (Florianópolis, n. 5.834, 9 de maio de 1931, p. 3) estampou a nota “O fantasma do comunismo”. Tais notícias, publicadas em jornais de diferentes cidades do sul do Brasil, relataram a prisão do coronel João Cony e do advogado João Junqueira Rocha, após distribuírem panfletos de um manifesto comunista em Passo Fundo. Em anos posteriores, Cony e Rocha fundariam o Partido Comunista naquela cidade (Batistella, 2008, p. 22-46).

Delineadas essas informações sobre João Cony, outra importante figura dos acontecimentos na Linha-Sul, retomamos as considerações sobre o levante ocorrido em 26 de maio de 1926 e a liderança de Hugo dos Santos nesse movimento.

Pelos depoimentos das testemunhas arroladas no processo criminal, ficou notório que Hugo Guimarães dos Santos, um empresário madeireiro de São Paulo, e João Cony, um revolucionário gaúcho, lideraram o movimento do dia 26 de maio na região de Iraty, no sul do Paraná. Ainda pelos relatos registrados, foi possível saber que os líderes denunciados e seus companheiros de revolta tinham por objetivo assaltar casas comerciais, agências bancárias e coletorias públicas, a fim de arrecadar recursos e dar suporte a uma revolução prevista para breve. O movimento foi liderado inicialmente por Santos e teve início em Roxo Roiz (atual Rio Azul, PR), de onde partiu com mais de vinte companheiros em um caminhão e um automóvel, ambos da marca Ford, em sentido à Mallet. Nesta cidade, tomaram de assalto um trem que chegava do Rio Grande do Sul. Depois, seguiram com o trem dominado para Roxo Roiz, local onde João Cony assumiria o comando geral dos revoltosos, e depois para a cidade vizinha de Antônio Rebouças. Dali, o plano era alcançar Iraty, a maior cidade naquele trecho da linha. Na sequência, partiriam para Ponta Grossa e, por fim, alcançariam a capital paranaense, Curityba. Tal roteiro, afinal, não foi cumprido como o planejado: os revoltosos se detiveram na estação de Riozinho, bairro rural de Iraty onde havia várias serrarias.

A noção de que os saques praticados nas cidades da Linha-Sul da ferrovia São Paulo-Rio Grande não eram comuns pode ser apreendida pelos testemunhos de Rafhael Bufren e Felippe Felix da Cruz (Mallet) (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 18-46); Godofredo Varella e Ângelo Meneguello (Roxo Roiz) (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 50-101); João de Goes Junior e Salib Jorge Alib (Rebouças) (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 103-127), todos proprietários de casas comerciais e armazéns desfalcados pelos rebeldes. Além de Hortêncio Martins de Mello, Cezário Dias, Antônio Mariano da Silva, Octacílio Vieira e José Lucio Sá, funcionários das coletorias públicas nas cidades da Linha-Sul.

Junte-se ainda os depoimentos de Manoel Peixoto e de Tertuliano Amaral, chefe e maquinista do trem P-8, tomado em Mallet (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 199-2.013). Consta, igualmente, o testemunho de Frederico França Júnior, proprietário do automóvel Chevrolet, requisitado pelos revoltosos em Rebouças (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 95), e as declarações dos indivíduos interrogados pelo delegado Quintella no inquérito policial. As requisições de artigos, suprimentos e dinheiro, levados pelos rebeldes dos armazéns, bancos, coletorias e estações, eram assinadas por João Cony e pelo comerciante rebelde, Raymundo Rocha dos Santos (o Cascudo), e entregues nas mãos dos que “colaboraram com a revolução”. As testemunhas declararam que foram convocadas pelos revoltosos a entregarem dinheiro, armas, munições e outros produtos. Após atenderem o solicitado, recebiam dos rebeldes um documento que comprovava a “requisição”, e não o furto dos bens.

Nas requisições, escritas à mão pelos sediciosos e incorporadas aos autos como provas (Cedoc/I - PC 290.69, 1926-1939, p. 42; 89-92; 218-219; 223)18 recebidas pelos “colaboradores da revolução”, constava o cabeçalho: “O general Isidoro Dias Lopes, comandante da coluna em operações no sul do país requisita...”. Nelas eram listados os valores em dinheiro levados dos estabelecimentos.

Concluída a lista, a requisição era assinada por um dos líderes do movimento com a indicação de que os valores requisitados seriam “depositados nos cofres da revolução”, com a promessa de que seriam restituídos após o fim das operações revolucionárias; algo que nunca ocorreu.

As requisições mencionavam, portanto, uma das mais importantes figuras do tenentismo na década de 1920: Isidoro Dias Lopes (Abreu, 2010). Lopes, ao longo da segunda metade da década de 1920, a partir da formação da Coluna Miguel Costa-Prestes, seria denominado, simbolicamente, “chefe supremo da revolução” (Souza, 2010).19

Mesmo ocupando um cargo simbólico na Coluna Miguel Costa-Prestes, Isidoro continuou muito influente entre oficiais desertores do Exército. Segundo um comunicado do general Nepomuceno Costa, do 13º Batalhão de Infantaria, publicado no jornal curitybano O Estado do Paraná (n. 360, 10 de março de 1926, p. 2), referente à primeira tentativa de sedição em Iraty (1º de março de 1926), Isidoro Dias Lopes foi apontado como o “mandante” da revolução na Linha-Sul paranaense. Não por coincidência, portanto, as requisições de armas e materiais para a sedição na região de Iraty, em maio de 1926, eram feitas em seu nome.

O estado do Paraná não foi apenas o lugar do encontro da coluna tenentista vinda do Sul, comandada por Luiz Carlos Prestes, com a coluna tenentista vinda de São Paulo, comandada por Isidoro Dias Lopes, formando a Coluna Miguel Costa-Prestes. O Paraná teve, em sua região Sul, percorrida pela ferrovia São Paulo-Rio Grande, sua própria revolta tenentista, em conexão com figuras relevantes do tenentismo nacional na década de 1920.

No momento em que ocorria a Sedição na Linha-Sul da ferrovia São Paulo-Rio Grande no Paraná, comandada por Hugo Guimarães dos Santos e João Cony, a Coluna Miguel Costa-Prestes se movimentava pelo nordeste brasileiro. Fazia sentido que Isidoro Dias Lopes, refugiado na Argentina, fosse apontado como “comandante da Coluna em operações no sul do país”. O General Nepomuceno Costa, por certo, não estava mal-informado.

Enquanto a Coluna Miguel Costa-Prestes percorria o interior do Brasil, em muitas cidades o movimento rebelde estabeleceu e acionou contatos, sobretudo com oficiais desertores do Exército que conspiravam e se levantavam em diversas regiões brasileiras. Em vista desses eventos pontuais e difusos pelo país, é possível avaliar que o movimento ocorrido na região de Iraty, no sul do Paraná, reverberou as ações tenentistas da Coluna Miguel Costa-Prestes e da revolução de Isidoro Dias Lopes naqueles dias frementes. Foi naquele ímpeto do calor revolucionário e de protesto contra o governo de Artur Bernardes que Hugo Guimarães dos Santos, um empresário do ramo madeireiro, estreitou relações com oficiais desertores do Exército e com João Cony, um “conhecido revolucionário” (O Estado do Paraná, Curityba, n. 427, 29 de maio de 1926, p. 1).

Em artigo de sua autoria, publicado no jornal (O Dia, Curityba, n. 1.699, 12 de novembro de 1927, p. 2), Hugo Guimarães dos Santos, que liderou a sedição tenentista ao lado de João Cony, deixou claras as motivações do levante: “Todos sabem que em 26 de maio de 1926 rebentou na Linha-Sul um movimento revolucionário contra o governo Bernardes, que tanto desagradou a nação e no qual me vi envolvido”.

Santos e seu advogado publicaram diversas notas na imprensa curitybana. Tais notas evidenciaram, a exemplo do que mostrou o inquérito policial, que as motivações centrais da Sedição na Linha-Sul, em maio de 1926, estavam ligadas às manifestações contrárias ao governo do presidente Artur Bernardes. E havia também questões locais, envolvendo “mandos e desmandos” da Ferrovia São Paulo-Rio Grande, com relação aos seus operários e ao próprio Santos.

Em seu depoimento, ouvido pelo delegado Quintella e registrado pelo escrivão Sezino Teixeira de Amorim na delegacia de Roxo Roiz em 25 de junho de 1926, Santos relatou que, diferente da malograda primeira tentativa de sedição em 1º de março, a segunda (26 de maio) teria sido exitosa, visto que “seria aproveitado o espírito de revolta em que se achavam os operários da São Paulo-Rio Grande”. Esta “revolta dos operários ferroviários” seria motivada pelos baixos salários que vinham recebendo.

Ainda sobre esse tema, Santos declarou, em jornais da capital paranaense, como O Dia e O Estado do Paraná: Jornal da Manhã, e no periódico carioca A Esquerda, que a companhia aumentava consideravelmente as tarifas dos transportes, enquanto seguia pagando mal seus funcionários. Para Santos, o então diretor-geral da companhia, Geraldo Rocha, era o “maior dos bernardistas”, e vinha aplicando a “política de miséria” do então presidente da república Artur Bernardes (A Esquerda, Rio de Janeiro, n. 1.246, 27 de maio de 1927, p. 4).

Ao longo do ano de 1927, sobretudo após deixar a prisão em 5 de maio (O Dia, Curityba, n. 1.228, 6 de maio de 1927, p. 2), Santos, além de tratar sobre as razões que levaram à sedição ocorrida no ano anterior, iniciou por meio da imprensa uma acirrada campanha de denúncias contra a Ferrovia São Paulo-Rio Grande.

Entre as primeiras denúncias, ocorridas no mês de maio de 1927, Santos abordaria o interesse da Cia. São Paulo-Rio Grande pelo Sindicato de Comerciantes de Madeiras. Ele questionaria o repentino empenho de Geraldo Rocha, diretor da ferrovia, em tutelar o sindicato, uma vez que sua “malfadada empresa sempre foi o seu algoz [do sindicato], e que em todos os seus passos lhe criou entraves e embaraços” (O Dia, Curityba, n. 1.249, 31 de maio de 1927, p. 4). Santos, em diversas notas publicadas no jornal O Dia, denunciaria que a direção da Cia. São Paulo-Rio Grande no Paraná vinha interferindo e corrompendo a direção do Sindicato de Comerciantes de Madeiras para atender a seus interesses. Não bastando essas interferências escusas, a companhia vinha se negando a transportar a madeira daqueles que não possuíam vínculo com o sindicato.20

Diante das críticas de Santos pela imprensa, a Cia. São Paulo-Rio Grande não tardou em revidar. Em 9 setembro de 1927, Santos voltaria à prisão, mas agora na cidade de Iraty (O Dia, Curityba, n. 1.682, 11 de setembro de 1927, p. 4). Após a decisão do juiz federal João Baptista Carvalho Filho, de abril daquele ano, desconsiderando o crime de sedição, o processo criminal foi remetido à comarca de Iraty, onde seriam julgados os crimes de roubo, lesão corporal, ameaças, depredação e arrombamento de patrimônio público e privado, todos previstos nos artigos 356, 357 e 358 do Código Penal de 1890.

Em publicação no jornal O Dia (Curityba, n. 1682, 11 de outubro de 1927, p. 4), a prisão de Hugo dos Santos, segundo seu advogado Raul Péricles, tratava-se de uma indiscriminada perseguição por parte do juiz daquela localidade (Iraty). Na publicação em questão, o advogado de Santos listou uma série de crimes que o magistrado estaria cometendo contra seu cliente e anunciava que entraria com um pedido de suspeição, visto que o juiz não estaria julgando o caso de forma imparcial, como se esperava e estava prescrito em lei.

No pedido de suspeição, a defesa de Santos destacava que, por “interesse particular da causa contra o excipiente, [o juiz] manifestava contra o mesmo a maior animosidade possível [...] o perseguindo de forma atroz”, em função de o juiz ter sido uma vítima dos eventos sediciosos de 1926, e que, portanto, não julgaria a causa de forma isenta. Consta no processo criminal que Eduardo Xavier da Veiga, juiz da comarca de Iraty, era sócio em uma casa comercial saqueada pelos revoltosos na cidade vizinha, Rebouças. Da mesma forma, a defesa ainda alegou que Hugo Guimarães dos Santos foi o único participante da sedição a ter mandado de prisão expedido, além de ter a sua soltura protelada mesmo após ter obtido habeas corpus (Cedoc/I – PC 290.69, 1926-1939, p. 366-367). Por fim, defendeu que o magistrado Veiga confabulava com os advogados da Cia. São Paulo-Rio Grande contra seu cliente. A argumentação da defesa de Santos foi acatada. Em outubro de 1927, o egrégio Superior Tribunal de Justiça do Estado do Paraná concedeu habeas corpus a Santos (O Dia, Curityba, n. 1.689, 19 de outubro de 1927, p. 4).

Além da relação um tanto amigável entre a Cia. São Paulo-Rio Grande e o juiz da comarca de Iraty, indicada pelo advogado Péricles, outra represália contra Santos partiu de João Moreira Garcez, então diretor representante da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande no Paraná. Garcez enviou um telegrama à estação de Iraty, ordenando que os funcionários da companhia apreendessem os vagões de propriedade de Hugo Guimarães dos Santos como forma de indenização pelos prejuízos sofridos em decorrência da sedição de 26 de maio de 1926.21

Santos, em comunicado publicado no jornal O Dia (Curityba, n. 1.699, de 12 de novembro de 1927, p. 4) intitulado “As vítimas é quem são os ladrões”, denunciava:

Sabendo que eu me achava preso, incomunicável, primeiro nesta capital [Curityba] e depois nas ilhas: das Cobras, Bom Jesus e Trindade, os presídios prediletos do presidente Bernardes, aproveitou-se covardemente da minha situação, determinando por um simples telegrama aos seus subordinados que meus vagões, em circulação naquela via férrea, fossem apreendidos, deles retirando o meu nome, o qual foi substituído pelo da Companhia [São Paulo-Rio Grande], o que constituiu o cúmulo da audácia e do cinismo.

Em resposta às perseguições, Hugo dos Santos moveria um processo contra a ferrovia solicitando a devolução de seus vagões, bem como o pagamento de uma indenização.22 Este processo se estenderia entre os anos de 1927 e 1930 e ganharia grande repercussão na imprensa paranaense e de outros estados. Destaque para o jornal O Dia, que, enquanto durou o processo, publicou mais de trinta matérias sobre o assunto.23

As cartas de Santos e de seu advogado Raul Péricles, publicadas no periódico curitybano O Dia, acusavam veementemente Geraldo Rocha, diretor-geral da ferrovia, de ser um servidor dos interesses capitalistas ingleses no Brasil e de perseguir os moradores das áreas percorridas pelos trilhos da São Paulo-Rio Grande (O Dia, Curityba, n. 1.722, 9 de dezembro de 1927, p. 2). O discurso, ao mencionar “os interesses capitalistas ingleses” e as perseguições aos moradores das matas de araucárias pelos agentes da ferrovia, deixava entrever suas preocupações sociais. Seriam influências comunistas de seus contatos revolucionários, talvez de Cony? A Guerra do Contestado havia terminado dez anos antes, contudo, segundo Santos, as perseguições às populações caboclas ainda eram comuns na região, por parte de funcionários da ferrovia. Santos percorria as áreas de matas onde comprava madeira e conhecia a gente que vivia nos faxinais e suas dificuldades.

Outro jornal que acompanhou o desenrolar desse processo e seus desdobramentos, entre 1928 e 1930, foi o carioca A Esquerda.24 Em suas publicações sobre o tema, observa-se um tom ácido contra a figura de Geraldo Rocha, diretor-geral da companhia. Em matéria publicada em 11 de fevereiro de 1928, intitulada “No Paraná, onde manda o sr. Geraldo Rocha ‒ a Estrada de Ferro S. Paulo-Rio Grande resolve suas questões mandando prender os antagonistas”, o articulista escreveu: “Curityba e grande parte das estradas de ferro do Paraná estão se transformando num grande feudo onde manda e desmanda o argentário [Geraldo Rocha] que ofereceu 500 contos pela cabeça do general [Luís Carlos] Prestes” (A Esquerda, Rio de Janeiro, n. 191, 11 de fevereiro de 1928, p. 3). Na sequência, relatou sobre o caso de Hugo Guimarães dos Santos e o processo que movia contra a Cia. São Paulo-Rio Grande, e a perseguição da empresa contra ele.25 Ainda em fevereiro de 1928, o jornal publicaria uma carta de Santos narrando em detalhes as apreensões de seus vagões. Na carta, fica evidente sua cordialidade e admiração para com o jornal e o trabalho de seus redatores (A Esquerda, Rio de Janeiro, n. 199, 11 de fevereiro de 1928, p. 4).26

Após quatro anos tramitando, a ação movida contra a Cia. São Paulo-Rio Grande chegou ao termo. Em finais de janeiro de 1930, o Superior Tribunal de Justiça do Estado do Paraná emitiria uma decisão definitiva em favor de Santos. A ferrovia foi obrigada a devolver os vagões tomados, bem como condenada a pagar uma polpuda indenização de 1.625 contos de réis – pouco mais de três vezes o valor da recompensa oferecida pela captura de Luiz Carlos Prestes –, sendo o pagamento de um terço do montante em vinte dias e o restante em sessenta dias (O Dia, Curityba, n. 2.452, 29 de janeiro de 1930, p. 3).

Ao longo desta seção, discutimos parte da trajetória e da iniciativa de Hugo Guimarães dos Santos, um empresário-revolucionário, durante a segunda metade da década de 1920. Destacamos sua participação ativa na tentativa de sedição em 1º de março de 1926 e na liderança de uma revolta, levada a cabo em 26 de maio de 1926. Ambas na região de Iraty, sul do Paraná. Da mesma forma, evidenciamos parte de seu círculo de influências, dentro e fora do estado do Paraná, além dos embates travados com uma grande empresa da época, a Companhia de Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande.

Pela análise de informações fragmentadas e dispersas em jornais de diferentes estados do período, confrontada com depoimentos do processo criminal aberto para apurar os fatos sobre uma sedição tenentista no sul do Paraná em 1926, aqui nomeada Sedição da Linha-Sul, foi possível compreender mais acerca daquele movimento, sobretudo a partir da perspectiva de um de seus líderes, Hugo Guimarães dos Santos.

Retomamos a carta de Hugo dos Santos, publicada em 1927 no jornal curitybano O Dia (n. 1699, 12 de novembro de 1927, p. 4), na qual o empresário-revolucionário advertia que ainda era cedo para “escrever a história de tais fatos”.

Decorrido quase um século daqueles eventos, sucedidos nas matas de araucárias do sul do Paraná, tais fatos emergem das fontes, parte delas sob a guarda do Centro de Documentação e Memória (Cedoc/I) da Universidade Estadual do Centro-Oeste, campus de Iraty, situado a poucos metros do leito desativado da ferrovia São Paulo-Rio Grande. Naquele lugar ficava a estação do Riozinho, parada final do trem tomado de assalto em Mallet por Hugo Guimarães dos Santos, João Cony e os rebeldes da Linha-Sul, em maio de 1926.

Considerações finais

A década de 1920, como afirmou Nícia Vilela Luz (1969, p. 67-75), reuniu eventos de importância fundamental para a compreensão da história do Brasil do século XX. Tal período configurou-se como um tempo de transformações, rupturas e quebra de padrões. Nesse extenso e complexo “recorte temático” acerca daquele pulsante período observam-se agitações políticas que constituem um valioso elemento analítico para compreender a formação do pensamento social brasileiro. As revoltas tenentistas mais conhecidas como a dos 18 do Forte de Copacabana, em 1922, a Revolta de 1924, em São Paulo, ou de Isidoro Dias Lopes, também chamada de Revolução Esquecida, e a Coluna Miguel Costa-Prestes, entre 1925 e 1927, além das insurreições e pequenos levantes em diferentes pontos do país, ainda pouco estudados, corroboram o quadro de instabilidade geral vivida naqueles anos, que culminariam com a Revolução de 1930.27

A historiografia brasileira clássica acerca do tenentismo o apresenta como um movimento estritamente militar, dando a impressão de que suas manifestações eram autônomas em relação ao conjunto da sociedade. Entretanto, estudos recentes (Castro, 2023ab; Ferreira, 1993; Prestes, 1997; Pinto, 2010) abordados neste artigo oferecem novas perspectivas acerca daquele efervescente momento histórico nacional. Sobretudo, visões mais abertas que permitem “considerar a pluralidade do movimento tenentista, o que talvez seja um bom caminho para compreender a autonomia e diferentes alianças que marcaram o tenentismo” (Farias, 2011, p. 3). Esses estudos contribuem para considerarmos outros horizontes e agentes históricos envolvidos nos movimentos tenentistas da década de 1920, além de suas filiações políticas, inserções sociais e expectativas pessoais (Castro, 2023b).

Ao abordarmos aqui a Sedição da Linha-Sul, a partir da trajetória de um de seus líderes, o empresário da madeira Hugo Guimarães dos Santos, visamos reforçar que esse movimento constituiu um capítulo entre os vários episódios revolucionários daquele turbulento período da história brasileira. No levante ocorrido nas matas de araucária do sul do Paraná, envolvendo as cidades de Mallet, Rio Azul, Rebouças e Iraty, ficou nítida a influência e a conexão com personagens importantes do tenentismo nacional, como o general Isidoro Dias Lopes, o capitão Costa Leite, entre outros.

A historiografia da segunda metade do século XX e início do XXI, como os estudos de Boris Fausto (1978; 1991), Marieta de Morais Ferreira (1993) e Surama Conde Sá Pinto (2010), reconheceu a importância da agitada década de 1920 para os desdobramentos políticos nacionais nas décadas posteriores. Contudo, é necessário investigar os diversos movimentos tenentistas sucedidos em diferentes lugares no interior do Brasil, além daqueles mais conhecidos e estudados, como os ocorridos no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, para apreender suas peculiaridades locais e nuances políticas.28

Dessa maneira, o estudo aqui apresentado trouxe luz à trajetória e ao protagonismo de um empresário-revolucionário que liderou um movimento tenentista praticamente desconhecido, encerrado num processo criminal esquecido por décadas. No entanto, ao chegar a um arquivo histórico universitário, ficou disponível e acessível para pesquisa, possibilitando conhecer aspectos da atuação e a rede de relações de um comerciante de madeiras, bem como as características, estratégias e pautas de um levante tenentista que durou apenas um dia, mas foi notícia na imprensa paranaense, paulista e da capital federal.

O levante tenentista da Linha-Sul paranaense teve suas particularidades. Apesar da participação de desertores do Exército em sua articulação intelectual, o movimento foi, contudo, liderado e colocado em prática por civis. Dele participaram brasileiros, imigrantes europeus e seus descendentes moradores da região: agricultores, operários e pequenos comerciantes que se levantaram tanto contra a política do governo federal, representada pela figura do presidente Artur Bernardes, quanto contra questões locais, envolvendo os “mandos e desmandos” nas relações trabalhistas da ferrovia São Paulo-Rio Grande e seus operários. Mesmo naquela área interiorana, então coberta pelas matas de araucárias, em pleno processo de exploração e desmatamento, ficou evidente que as implicações políticas, sociais e econômicas daquele período alcançavam diferentes regiões, não se restringindo aos grandes centros urbanos, e que, tampouco, envolviam apenas militares.

Fontes

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Recebido em 6/4/2023

Aprovado em 10/10/2023


Notas

1 Cedoc/I – PC 290.69, 1926-1939, p. 8-9. Este telegrama encontra-se entre as páginas de um processo criminal, lavrado inicialmente pelo Superior Tribunal de Justiça do Paraná na capital paranaense, Curityba, em 1926, e remetido à Comarca de Iraty no ano seguinte. O processo ficou sob a posse do Arquivo da Comarca de Iraty por quase um século. Recentemente, por meio do projeto de extensão Preservação de Acervos do Poder Judiciário da Região Centro-Sul do Paraná, teve sua guarda transferida para o Centro de Documentação e Memória (Cedoc/I) da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (Unicentro), campus Iraty. Sobre este e outros acervos, ver Pereira; Franco (2021).

2 Optamos por grafar Iraty e Curityba, na forma original da documentação primária.

3 O trabalho de Santa Rosa inspirou os estudos de Nelson Werneck Sodré (1965) e Edgard Carone (1975; 1977).

4 Nesses três estudos ‒ monografia de conclusão de curso, tese e artigo científico, respectivamente – Maria Clara de Castro se dedicou ao movimento tenentista em São Paulo na primeira metade da década de 1920. Neles, confirmou a participação de diferentes agentes históricos, sobretudo aqueles que não possuíam patentes militares. Ao apreender a presença de diversas categorias de trabalhadores e seus matizes ideológicos, as análises de Castro ampliaram o horizonte desse importante tema da historiografia brasileira.

5 Tal denominação deriva de como esse movimento era referenciado nas fontes documentais consultadas para este estudo: um processo criminal e matérias publicadas em diferentes jornais da época. O termo Linha-Sul definia o trecho da ferrovia São Paulo-Rio Grande situado no sul do estado do Paraná, palco das ações dos sediciosos.

6 Conforme Aragão (2014), os meios de comunicação do período eram restritos. Controlar a comunicação telegráfica possibilitava aos rebeldes trocar informações com companheiros em locais distantes. No caso da Sedição da Linha Sul, inutilizar os telégrafos tinha a finalidade de impedir que o movimento fosse denunciado, mantendo assim seu caráter sigiloso e o efeito surpresa.

7 Desses estabelecimentos, levavam dinheiro, armas, munições, roupas e chapéus.

8 As agências bancárias assaltadas foram: Banco Nacional do Comércio, Banco Francês & Italiano, Banco Pelotense e Banco do Brasil em Roxo Roiz (Rio Azul) e bancos: do Brasil, Francês & Italiano, Nacional do Comércio e Alemão Transatlântico em Antônio Rebouças.

9 Os apontados como autores foram: os comerciantes Hugo Guimarães dos Santos, Raymundo Rocha dos Santos e Francisco Orocil de Medeiros; os barbeiros João Barbosa e Henrique Corrêa Lima; o agenciador de negócios Sebastião Tácito Correia; o engenheiro agrônomo Miguel Joseph de Kisielewski; João Cony, Waldemar Rodrigues, Hygino Azeredo e Emilio Cordeiro, de profissões desconhecidas.

10 Os apontados como cúmplices foram: O chofer Ismael Pedroso, o comerciante Marcilio Nunes, o guarda-chaves Benedicto de Paula, o caixeiro Pedro Orokoski; o feitor da Estrada de Ferro Demétrio Koloda, o alfaiate Miguel Kaust; os turmeiros austríacos José Kutsi e Estephano Scozoski e os brasileiros Gregório Paulino, Basílio Kurassi e Simão Kurduna; os carpinteiros Alberto Adulfato e Alberto Hibrante; os lavradores Joaquim Pedroso, Plácido Caule, Sebastião Constante, Zacharias Pedroso, João Carlos Cardoso, José Ferreira Franco, Benedicto Corrêa Lima, Henrique Schilipacki, Manoel Carneiro Sobrinho, João Francisco de Souza. Ainda foram arrolados como cúmplices: Octavio Cordeiro, Lionel Cordeiro, Theodoro Laurentino, Sebastião Fernandes, João Cezario, João Laurentino, João Kutz, João Bevilaqua e Alfredo Jacques, de profissões ignoradas.

11 O Relatório Final do Inquérito estampou a primeira página de dois jornais em 17 de agosto de 1926: o curitybano O Estado do Paraná (n. 493) e o paulistano O Combate (n. 4.220). Este último era um jornal anarquista e operário que circulou a partir de 1914 e durante a década de 1920.

12 Outras publicações naquele ano também reforçavam as denúncias contra o comerciante: O Dia, Curityba, números: 236, de 1 de abril de 1924, p. 6 e 248, de 15 de abril de 1924, p. 8.

13 Sobre este marcante episódio da história da região Sul brasileira, ver, entre outros, Machado (2004) e Queiroz (1981).

14 Contudo, ainda conforme a autora, as prisões também permitiram a construção de sociabilidades e solidariedades nas quais “a luta pela sobrevivência desses militares, que passaram por experiências dramáticas na prisão e no exílio, tornou-os mais resistentes, tendo criado um grupo de conspiradores e revoltosos profissionais” (Aragão, 2011, p. 343-344). Por vezes, os rebeldes presos eram enviados para o exílio. Muitos retornavam, eram recapturados e voltavam à prisão. Houve casos de rebeldes fugitivos do cárcere que se engajaram em novas insurreições, atuando na clandestinidade. Como exemplo dessas práticas entre os revolucionários, lembramos o caso do capitão Carlos da Costa Leite, desertor do Exército, fugitivo de muitos presídios e que delegou a chefia da Sedição na Linha-Sul para Hugo Guimarães dos Santos e João Cony. Sobre Carlos da Costa Leite e suas fugas de diferentes presídios, ver: Pereira e Martins (2022, p. 649-650).

15 Seria com esse mesmo caminhão que Hugo Guimarães, e mais vinte companheiros, seguiriam de Roxo Roiz (Rio Azul) para Mallet, na madrugada do dia 26 de maio de 1926, quando iniciariam a Sedição da Linha-Sul da Ferrovia São Paulo-Rio Grande, no Paraná.

16 Na prática, o levante ocorreu no trecho entre Mallet e Riozinho, pequena estação próxima a Iraty. O trecho entre União da Vitória e Mallet, mais ao sul do Paraná, na divisa com Santa Catarina, não fez parte das ações sediciosas de 26 de maio de 1926.

17 Referência a Joaquim Francisco de Assis Brasil, daí o termo assisistas, conhecidos também como maragatos, que usavam lenço vermelho ao pescoço.

18 Na maioria das requisições, constavam apenas os valores estimados do que foi requisitado. Contudo, uma delas, entregue a Angelo Meneghello, proprietário da Casa Paulista na cidade de Rio Azul (Roxo Roiz), foi mais detalhada. Por ela, é possível conhecer os itens levados pelos sediciosos dos estabelecimentos comerciais atacados. Meneghello “forneceu à revolução” seis pares de camisas de lã, três chapéus, nove caixas de balas para revólver Winchester e dois revólveres Winchester calibre 44 (Cedoc PC 290.69, 1926-1939, p. 91).

19 O veterano revolucionário estava na casa dos sessenta anos e decidiu que não lutaria à frente das tropas da coluna. Uma vez que a estratégia militar de luta adotada seria a guerra de movimento, ficou determinado que Isidoro Dias Lopes se fixaria na Argentina, de onde “organizaria uma rede de apoio externo às operações” (Castro, 2016).

20 Sobre as publicações de Hugo Guimarães dos Santos no periódico O Dia, ver números: 1.246, 27 de maio de 1927, p. 4; 1.247, 28 de maio de 1927, p. 4; 1.249, 31 de maio de 1927, p. 4 e 1.255, 7 de junho de 1927, p. 5.

21 Sobre o conteúdo do telegrama de João Moreira Garcez, enviado a funcionários da Cia. S. Paulo-Rio Grande em Iraty: “Chegou ao meu conhecimento que Hugo Guimarães dos Santos, à frente de um grupo de bandoleiros armados, atacou o trem P-8 em Mallet, no dia 26 do mês findo, em vista de ter o assaltante roubado do aludido trem o cofre contendo as remessas deste, recomendo-vos mandar retirar seu nome dos vagões que contratou a Cia. e empregar esses veículos em serviços exclusivos de transporte da estrada até que a Cia. seja indenizada dos prejuízos que lhe foram causados” (O Dia, Curityba, n. 1.699, de 12 de novembro de 1927, p. 4).

22 Cabe informar que as retaliações da Cia. São Paulo-Rio Grande não recaíram somente sobre os ombros de Santos. Seu advogado Raul Péricles também sofreria. Segundo notícias na imprensa da época, Péricles foi acusado de participar de um movimento revolucionário comandado pelo coronel Fabricio Vieira, nas terras do antigo Contestado, em meados de 1927. Raul era advogado do coronel Vieira e, segundo ele, foram sujeitos vinculados à Cia. São Paulo-Rio Grande que o denunciaram como participante do movimento. Sobre estas questões, ver: A Esquerda, Rio de Janeiro, n. 191, 11 de fevereiro de 1928, p. 3 e O Dia, Curityba, números: 1.233, 7 de abril de 1927, p. 4; 1.919, 27 de abril de 1928, p. 4; 1.921, 29 de abril de 1928, p. 2 e 2.003, 4 de agosto de 1928, p. 4.

23 Os números contendo publicações acerca do caso foram: O Dia, Curityba, n. 1.209, 9 de agosto de 1927, p. 1; 1.216, 17 de agosto de 1927, p. 4; 1.224, 27 de agosto de 1927, p. 4; 1.682, 11 de outubro de 1927, p. 4; 1.688, 18 de outubro de 1927, p. 2; 1.695, 8 de novembro de 1927, p. 2; 1.699, 12 de novembro de 1927, p. 4; 1.722, 9 de dezembro de 1927, p. 2; 1.725, 18 de dezembro de 1927, p. 4; 1.728, 26 de dezembro de 1927, p. 2; 1.740, 30 de dezembro de 1927, p. 2; 1.741, 24 de janeiro de 1928, p. 2; 1.743, 26 de janeiro de 1928, p. 2; 1.745, 28 de janeiro de 1928, p. 2; 1.748, 1 de fevereiro de 1928, p. 2; 1.753, 7 de fevereiro de 1928, p. 2; 1.754, 9 de fevereiro de 1928, p. 2; 1.773, 3 de março de 1928, p. 4; 1.900, 4 de abril de 1928, p. 2; 1.904, 10 de abril de 1928, p. 2; 1.937, 10 de maio de 1928, p. 2; 1.948, 20 de abril de 1928, p. 4; 1.951, 8 de junho de 1928, p. 2; 1.999, 31 de julho de 1928, p. 2; 2.012, 18 de agosto de 1928, p. 2; 2.037, 13 de setembro de 1928, p. 2, 2.038, 14 de setembro de 1928, p. 2; 2.039, 15 de setembro de 1928, p. 2; 2.077, 30 de outubro de 1928, p. 2; 2.082, 9 de novembro de 1928, p. 2; 2.118, de 15 de dezembro de 1928, p. 2; 2.144, 19 de janeiro de 1929, p. 2 e 2.452, 29 de janeiro de 1930, p. 1.

24 Destacamos outros jornais da época, em diferentes estados, até mesmo no Nordeste, que publicaram notas acerca do processo movido por Hugo dos Santos contra a ferrovia São Paulo-Rio Grande. Foram eles: os cariocas Diário Carioca (n. 239, 7 de maio de 1929, p. 2); O Correio da Manhã (n. 10.335, 7 de maio de 1929, p. 12) e O Paiz (n. 16.538, 30 de janeiro de 1930); o paulista Diário Nacional: A Democracia em Marcha (n. 565, 7 de maio de 1929, p. 12); os catarinenses O Estado (n. 4.631, 8 de maio de 1929, p. 4) e Correio do Povo (n. 520, 11 de maio de 1929, p. 1); os pernambucanos Jornal do Recife (n. 105, 8 de maio de 1929, p. 4) e Diário de Pernambuco (n. 106, 8 de maio de 1929, p. 1); o maranhense O Combate (n. 1.267, 22 de maio de 1929, p. 4) e o paranaense Diário da Tarde (n. 10.664, 28 de janeiro de 1930, p. 8).

25 Para outras publicações do jornal sobre o processo movido contra a Cia. São Paulo-Rio Grande, ver: A Esquerda, Rio de Janeiro, números: 199, 22 de fevereiro de 1928, p. 4; 280, 28 de maio de 1928, p. 6; 335, 30 de julho de 1928, p. 3; 405 de 28 de agosto de 1928, p. 2 e 4.

26 A Esquerda seria processada em 1928 por Geraldo Rocha, pelo crime de calúnia. Contudo, o periódico foi inocentado de tal acusação. Sobre o processo, ver: A Esquerda, Rio de Janeiro, números: 256, 30 de abril de 1928, p. 1; 289, 6 de junho de 1928, p. 2; 307, 24 de agosto de 1928, p 1 e 6; 309, 27 de agosto de 1928, p. 2.

27 Na década seguinte, muitos “tenentes” integraram ou apoiaram o governo de Vargas. Outros, ao se identificarem com o comunismo, passaram a atuar na clandestinidade e fazer oposição ao governo.

28 Nessa perspectiva, encontram-se os estudos de Castro (2013; 2023ab), Aragão (2011; 2014) e este estudo que ora apresentamos, corroborando que a própria noção de tenentismo vem ganhando novos contornos e trazendo à luz outros protagonistas.

29 Houve um erro por parte da redação do jornal O Dia na numeração de seus exemplares. O correto seria que, ao longo do mês de agosto, seus exemplares se iniciassem a partir do número 1.300, contudo, retrocedeu para 1.200. Optamos aqui por manter a numeração presente nos exemplares.


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