Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 1, jan./abr. 2023

Espaços urbanos e metropolização no Brasil (1940-1970) | Dossiê temático

Impactos do planejamento urbano na localização das indústrias nas cidades

Um estudo sobre o zoneamento industrial nos subúrbios da metrópole do Rio de Janeiro

Urban Planning impacts on the location of industries in the cities: a study about the industrial zoning in the suburbs of the metropolis of Rio de Janeiro / Impactos de lo planeamiento urbano en la localización de industrias en las ciudades: un estudio acerca de la zonificación industrial en los suburbios de la metrópolis de Rio de Janeiro

Maria Paula Albernaz

Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ, Brasil.

paulaalbernaz@fau.ufrj.br

Marina Diógenes

Mestranda no Programa de

Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ, Brasil.

marina.diogenes@fau.ufrj.br

Resumo

O trabalho avalia impactos do zoneamento industrial na produção dos subúrbios ferroviários cariocas, discutindo o papel do Estado, o planejamento urbano e os processos de modernização. Resgata o contexto político e econômico brasileiro e o pensamento urbanístico nos anos 1930-1970, apoiado em análises cartográficas e documentação acerca da regulamentação das zonas industriais na metrópole do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: planejamento urbano; legislação urbanística; zoneamento industrial; metrópole do Rio de Janeiro.

Abstract

This work evaluates the impacts brought by industrial zoning in the production of the railway suburbs of Rio de Janeiro, discussing the role of the State, urban planning, and modernization processes. It recalls the Brazilian political and economic context and Urban Planning ideas during 1930s-1970s, supported by cartographic analysis, and documents about the industrial zones regulation in the metropolis of Rio de Janeiro.

Keywords: urban planning; urban legislation; industrial zones; metropolis of Rio de Janeiro.

Resumen

El trabajo evalúa los efectos de la zonificación industrial en la producción de los suburbios ferroviarios de Rio de Janeiro, discutiendo el rol del Estado, el planeamiento urbano y procesos de modernización. Rescata lo contexto político y económico brasileño y el pensamiento urbanístico en los años 1930-1970, apoyado en análisis cartográficos y documentación acerca la reglamentación de las zonas industriales en la metrópolis de Rio de Janeiro.

Palabras clave: planeamento urbano; legislación urbanística; zonificación industrial; metrópolis de Rio de Janeiro.

Introdução

O processo de industrialização na metrópole do Rio de Janeiro principiou de maneira contida no início do século XX, devido à prevalência da economia agrícola e ao pouco estímulo para a produção fabril no Brasil. As indústrias pioneiras instalaram-se no Centro, pelas facilidades de escoamento da produção, ou nas franjas das áreas centrais, que apresentavam como vantagem a presença de uma força motriz hidráulica (Levy, 1994). Com as transformações nas fontes energéticas, associadas às mudanças políticas e econômicas refletidas no rápido aumento da população urbana na então capital do país, os estabelecimentos fabris passaram a fixar-se nos subúrbios ferroviários da Zona Norte. As crescentes demandas por produtos manufaturados levaram os empresários industriais a buscar a região suburbana, onde além de contarem com uma recém-instalada rede de energia elétrica, encontravam grandes terrenos baratos e o acesso facilitado para a chegada de matéria-prima e a distribuição de produtos pelas linhas férreas.

Desde os anos 1920, a região suburbana, bem servida por transporte ferroviário, foi sendo ocupada por grandes fábricas, pelo incentivo que os benefícios locacionais ofereciam à sua instalação (Abreu, 1987). Somente na década de 1930, o Estado passou a se preocupar mais diretamente com o desenvolvimento industrial no país, inclusive na cidade do Rio de Janeiro, e, a partir de 1937, passou a intervir na localização dos estabelecimentos fabris no então Distrito Federal, demarcando zonas industriais. Durante as décadas seguintes, o instrumento urbanístico do zoneamento passou a ser uma das principais medidas no direcionamento da localização das funções no território urbano e metropolitano (Rezende, 1996), estabelecendo critérios e parâmetros para usos e edificações, inclusive nas recém-criadas zonas industriais.

Com o impulso dos processos de modernização adotados no país relacionados ao desenvolvimentismo, à industrialização e à ênfase no modal rodoviário, numerosos estabelecimentos industriais de grande porte foram instalados nos subúrbios ferroviários da Zona Norte do Rio de Janeiro, sendo responsáveis pelo aparecimento e fortalecimento de novas dinâmicas sociais, econômicas e urbanas nesses territórios. Assim, se mostraram decisivos à expansão da malha urbana que já ocorria na região suburbana, atendendo às exigências de remuneração do capital fundiário e imobiliário, com suporte do Estado (Abreu, 1987).

A implantação dos grandes estabelecimentos industriais foi também determinante para a ocupação nos subúrbios de formas de habitação como as vilas operárias e os conjuntos habitacionais oriundos de diferentes políticas públicas, voltadas à reprodução da mão de obra trabalhadora. Dentre essas formas de habitação decorrente da instalação das indústrias, destaca-se a disseminação e a concentração de conglomerados de favelas (Silva, 2005), que possibilitaram moradia para os operários, sem ônus para o capital e para o Estado.

Nesse contexto histórico e geográfico, interessa neste artigo compreender, sobretudo, a relevância do papel do Estado, mais especificamente através da regulamentação urbanística para instalação fabril, interferindo na produção e na transformação urbana, avaliando o alcance das interferências recíprocas entre os dispositivos legais e as dinâmicas urbanas na produção dos subúrbios do Rio de Janeiro. Desse modo, volta-se a verificar tanto os impactos trazidos pelo pensamento e instrumentos do planejamento urbano aos territórios suburbanos, quanto as influências sofridas a partir das opções por determinados processos de modernização, tendo como referência as ações para incentivo ou desestímulo à ocupação industrial nessa porção da cidade.

Assim, nos inserimos em um debate que envolve as repercussões da atuação do Estado na organização territorial e na configuração do espaço metropolitano a partir do que se considera como planejamento urbano entre os anos 1930 e 1970 (Rolnik, 1999, 2015; Villaça, 1999; Maricato, 2000), que corresponde à visão que se pretendia para o país no momento de sua adoção. Nela está impressa a ideia de modernização que se difundiu na América Latina, associada ao desenvolvimentismo (Gorelik, 2005). Nesse contexto histórico, vai ganhando cada vez mais importância a aliança do Estado aos interesses do mercado capitalista, inclusive industrial, impactando modos de se viver e de se sociabilizar nos territórios suburbanos da metrópole.

Apesar de haver um debate profícuo sobre a natureza política, econômica e ideológica do planejamento urbano nas cidades brasileiras (Rolnik, 1999; Villaça, 1999; Maricato, 2000; Feldman, 2005), há ainda um campo para a discussão sobre os efeitos dos seus instrumentos, especialmente relacionados aos causados às regiões mais afetadas pela industrialização urbana. Particularmente na cidade do Rio de Janeiro, os resultados dos dispositivos legais na organização territorial, aplicados de modo pioneiro no então Distrito Federal, vêm sendo estudados desde os anos 1980, porém enfatizando o mercado imobiliário direcionado às áreas residenciais da Zona Sul, do Centro e pericentrais (Xavier, 1981; Siqueira, 1985; Oliveira, 1988; Silva, 1995; Sampaio, 2006).

Para investigar o zoneamento urbano associado à industrialização aplicado nos subúrbios cariocas, adotamos uma abordagem histórica que entrecruza o processo de regulação urbanística a partir de uma visão do planejamento urbano mais fortemente introduzida no Brasil a partir dos anos 1940; e a estrutura política e econômica voltada à modernização apoiada no tripé: industrialização, metropolização e rodoviarismo (Romero, 2004; Ribeiro; Pechman, 2015). Para isso, identificamos marcos temporais significativos em termos de normatização e intervenção urbanística na cidade do Rio de Janeiro e dividimos as seções do artigo a partir deles.

Destacam-se o período de 1937 ao final dos anos 1950, quando se introduziu de modo mais sistemático a regulamentação urbanística em todo o território da cidade do Rio de Janeiro; dos anos 1960 a meados dos anos 1970, quando as ideias desenvolvimentistas encontraram um forte respaldo no governo ditatorial; e após meados de 1970, período no qual se verificaram as repercussões da entrada do pensamento neoliberal na política econômica nacional. Como aponta o historiador e arquiteto argentino Adrián Gorelik (1991) ao tratar da ação do Estado na produção de Buenos Aires, na Argentina, os intervalos de tempo mencionados encontram paralelismo na história de muitas metrópoles latino-americanas.

Dos procedimentos para investigação nos quais se baseiam o artigo, destacaram-se as análises cartográficas fundamentadas na leitura de plantas cadastrais e imagens aéreas de diferentes épocas; e a montagem de mapas temáticos em distintas escalas, que abrangeram os marcos temporais considerados. Esses mapas foram construídos também a partir da consulta ao acervo dos arquivos da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, em documentos de legislação urbanística. A revisão bibliográfica e as entrevistas com pesquisadores e agentes governamentais complementaram as fontes cartográficas e documentais.

Uma vez que a demarcação dos subúrbios cariocas não possui uma correspondência em termos de limites administrativos nem de precisão conceitual, e, nesse sentido, vem se alterando de acordo com a identidade que se forja ao longo do tempo (Fernandes, 2011; Albernaz; Mattoso, 2017), o recorte territorial da pesquisa (Figura 1) foi definido à medida que foram sendo obtidos os resultados de levantamentos e análises. Nessa definição, serviram como referência tanto a delimitação das antigas freguesias de Inhaúma, Irajá e Engenho Novo, que correspondem aos bairros suburbanos ferroviários da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, como a concentração de remanescentes do processo da industrialização na região suburbana ferroviária da cidade.


Figura 1 – Recorte da região suburbana analisada. Fonte: produção própria, sobre mapa atual do Rio de Janeiro


Para entender o rebatimento das ações do Estado através do zoneamento urbano no território suburbano, este artigo se organiza em três seções. A primeira traz uma reflexão sobre a inserção do instrumento do zoneamento no planejamento urbano das cidades latino-americanas. A segunda apresenta particularidades da aplicação desse instrumento na cidade do Rio de Janeiro e seus impactos na metropolização. A terceira mostra uma perspectiva futura associada às antigas zonas industriais, com a retração dos estabelecimentos fabris na porção do território suburbano.

Os comentários conclusivos exploram os efeitos dos instrumentos de regularização urbanística, especificamente do zoneamento industrial, na produção e transformação urbana, conjugando-os aos processos de industrialização e de centralização de poder nas opções da modernização brasileira. Ao confrontar os impactos das zonas industriais nos subúrbios ferroviários da Zona Norte do Rio de Janeiro, buscamos contribuir para o debate sobre as implicações do papel do Estado e do pensamento urbanístico na produção da cidade.

Contextualizando o zoneamento no planejamento urbano

As primeiras definições legais de ordenamento territorial surgiram na industrialização tardia de Frankfurt, na Alemanha, ao final do século XIX. Como em outras cidades industriais, Frankfurt sofria com problemas como poluição, falta de infraestrutura sanitária e precariedade das habitações da classe trabalhadora, em face dos avanços dos processos de modernização adotados pelo modo de produção capitalista. Em busca de amenizar esses problemas, a partir de 1891, foram estabelecidas as pioneiras políticas de ordenamento territorial através do zoneamento urbano (Hall, 2014). A atividade industrial pesada foi realocada para áreas periféricas da cidade, conciliando expansão fabril e os interesses do setor imobiliário ao manter áreas valorizadas no centro, além de afastar a classe trabalhadora empobrecida das áreas centrais.

O zoneamento enquanto instrumento legal foi replicado em outras cidades, especialmente em Nova York, nos Estados Unidos, a partir de 1916, que foi a primeira cidade norte-americana a definir zonas urbanas mais abrangentes, combinando parâmetros de uso e ocupação do solo. Nova York adotou o instrumento, sobretudo na perspectiva de obtenção de renda fundiária, relacionando-o à valorização do solo urbano. O zoneamento dos anos 1920 nos Estados Unidos teve, portanto, como na Alemanha, um caráter de segregação, limitando o usufruto de muitos a determinadas zonas urbanas (Hall, 2014).

Há controvérsias sobre a influência das experiências europeias e norte-americanas com o zoneamento nas primeiras iniciativas no planejamento urbano brasileiro. Há uma avaliação da sua inspiração em medidas adotadas ainda nas últimas décadas do século XIX nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo (Maricato, 2000), ao mesmo tempo em que se considera que o instrumento no Brasil sofreu pouca interferência do pensamento externo, correspondendo “a interesses e soluções específicos das elites brasileiras” (Villaça, 1999, p. 178).

No entanto, tanto no país como no exterior, a justificativa inicial apontada para o emprego do zoneamento foram questões sanitárias, associando-o a um modelo do urbanismo higienista que justificou a segregação urbana, que favorecia o modo de produção capitalista da cidade. Nesse sentido, convém lembrar que os movimentos iniciais do ordenamento territorial ligados à regulamentação da edificação e às exigências da malha viária integravam os códigos de posturas municipais (Rolnik, 1999).

Convém, porém, avaliar as profundas diferenças do contexto político e econômico que levaram as cidades latino-americanas a adotar o zoneamento urbano se comparado aos identificados para os países do hemisfério Norte, destacando-se a muito recente finalização do processo de colonização e a tardia industrialização (Gorelik, 2005). Há ainda que se considerar que o zoneamento nas cidades brasileiras, por destinar-se apenas a uma porção restrita do território já ocupada por população urbana, acabou ajudando na cristalização de uma estrutura que vinha se conformando desde finais do século XIX, na qual prevalece a marcada distinção entre “cidade legal” e “cidade ilegal”, agravando o que viria a ser o traço característico da divisão territorial metropolitana excludente (Villaça, 1999).

Outro aspecto essencial da adoção do zoneamento no país refere-se ao fato de ter se tornado “um importante instrumento de dominação ideológica”, contribuindo “para ocultar a cidade real e para a formação de um mercado imobiliário restrito e especulativo” (Maricato, 2000, p. 124). Desse modo, frente a uma aparente ineficácia na aplicação desse e de outros dispositivos urbanísticos destinados ao ordenamento territorial urbano, foi constituído um arcabouço legal voltado ao favorecimento de interesses corporativos. Criam-se as bases para a adoção no Brasil de instrumentos de planejamento urbano, nos quais o zoneamento urbano passa a ser considerado essencial no controle do ordenamento do solo (Rolnik, 2015).

É preciso considerar a importância do zoneamento no planejamento urbano latino-americano enquanto estratégia de intervenção urbana adotada pelo Estado, relacionada à política desenvolvimentista, atrelando-se à “herança positivista, à crença no progresso linear, no discurso universal, no enfoque holístico” (Maricato, 2000, p. 126). Cabe ainda trazer os comentários de Adrián Gorelik acerca da “longa tradição intelectual latino-americana” na reflexão sobre a aplicação do zoneamento urbano, problematizando supostos ideológicos como

a ideia de América como continente novo, sem história; a ideia daí resultante de ‘continente vazio’ [...]; a ideia de que toda inovação e todo progresso abrem caminho nessas terras por meio de uma violência cultural produtiva [...], a convicção das elites em sua grande capacidade de manobra para impor, na medida exata, essas novas realidades. (Gorelik, 2005, p. 113)

Nessa visão de cidade latino-americana incluem-se múltiplos significados, que se impregnaram no planejamento urbano a partir do clima modernizador, incorporando uma influência keynesiana e fordista com o Estado como figura central, garantidor do equilíbrio econômico e social, e um mercado de massas (Maricato, 2000). Esses são atributos do zoneamento urbano que nos interessa aqui investigar, pois dizem respeito às ações da normatização relacionada à criação das zonas industriais.

O zoneamento urbano na cidade do Rio de Janeiro

Mesmo antes do final do século XIX, quando houve um enorme crescimento urbano na cidade do Rio de Janeiro,1 a aplicação de medidas legais urbanísticas já era primordial para se pensar políticas de ordenamento territorial e configuração espacial, por parte das autoridades administrativas (Rezende, 1996). Em princípio, antes dos anos 1870, os dispositivos legais tiveram como foco o embelezamento da cidade, já regulando “a localização de construções e atividades menos nobres nos arrabaldes e subúrbios” (Ribeiro et al., 1983, p. 1). Mas logo se dirigiram às condições de salubridade dos edifícios, trazendo o argumento higienista que viria a ser empregado para justificar as grandes reformas urbanísticas na cidade nas primeiras décadas do século XX.

O modelo higienista de urbanismo trouxe também a institucionalização das políticas de urbanização, ampliando-se o contexto administrativo governamental, incluindo seus instrumentos, para sua aplicação (Sampaio, 2008). Até então, a presença do binômio construção/reconstrução nas licenças de obras permite avaliar que a reconstrução havia sido a prática urbanística recorrente até o início do século XX, equivalente à restrição das terras urbanas disponíveis na cidade. À medida que mais terrenos passaram a ser liberados ao mercado fundiário, tornou-se necessário o surgimento de novas providências urbanísticas, correspondentes aos crescentes pedidos para desapropriações voltadas ao alargamento e prolongamento das vias e à ocupação de solo antes não urbano.

Há nas autorizações concedidas para ampliação do solo urbano um estímulo não só à expansão da cidade do Rio de Janeiro, mas também um indicativo de um atrelamento das ações do Estado aos interesses fundiários e imobiliários (Ribeiro et al., 1983). A constante presença de obras de urbanização governamentais junto a empreendimentos da iniciativa privada mostra o quanto, a partir daí, viria a estar cada vez mais presente uma associação entre o Estado e o mercado. O entrelaçamento da atuação desses agentes da produção da cidade se evidenciará quando da introdução das disposições legais relacionadas ao instrumento do zoneamento urbano.

Os decretos n. 2.121, de 1924, e n. 2.087, de 1925, são considerados os antecedentes do zoneamento no Rio de Janeiro, pois “já dividem a cidade em zonas, embora não se tratasse propriamente de um zoneamento funcional [...], havendo algumas poucas restrições relativas aos usos, particularmente na Zona Central” (Sampaio, 2008, p. 4). A preocupação básica do instrumento era a de garantir a qualidade construtiva das edificações em algumas das áreas da cidade, assegurando a manutenção do valor do solo urbano.

Uma atenção específica à distribuição das funções urbanas nas distintas regiões da cidade só viria a ser dada pelo plano de remodelação urbana da cidade do Rio de Janeiro, que ficou conhecido como plano Agache, elaborado ao final dos anos 1920 pelo urbanista francês Alfred Agache, por solicitação do então prefeito Antônio Prado Júnior.2 Consistia em um plano físico-territorial que priorizava a remodelação e o embelezamento da cidade, já influenciado por preceitos do movimento modernista (Villaça, 1999), que, apesar de não executado, fundamentou normas segregadoras não só de usos, mas também de camadas sociais, de zoneamentos posteriores (Sampaio, 2008).

Nos anos 1930, com a ascensão de uma nova classe hegemônica ligada ao capital industrial, há uma guinada no pensamento que influenciava os preceitos do urbanismo, com a preocupação mais contundente por princípios de eficiência, ciência e técnica associados aos novos ideais de modernização (Maricato, 2000). Com isso, o Estado passou a incidir mais efetivamente e simultaneamente em projetos e regulamentos urbanísticos, marcando as duas décadas seguintes com intervenções, por um lado, mais pesadas e, por outro, mais totalitárias, destacando, no primeiro caso, as que privilegiavam a infraestrutura viária, e no segundo, a segregação urbana (Feldman, 2005).

O primeiro zoneamento urbano da cidade do Rio de Janeiro surgiu com o decreto n. 5.595, de 1935, logo substituído pelo decreto n. 6.000, de 1937, que consolidou a legislação urbanística e passou a constituir o Código de Obras do Distrito Federal. Apesar de estabelecer zonas funcionais, admitia a ocupação por “usos tolerados”, distinguindo-se de dispositivos legais posteriores. Sua longa vigência – trinta anos – transcorreu num período de grandes alterações no pensamento do planejamento urbano, que progressivamente dispensava a ordem higienista e se orientava crescentemente por preceitos funcionalistas modernistas (Villaça, 1999).

Apesar da citada tolerância de alguns dos usos previstos, as consequências da aplicação do instrumento do zoneamento urbano até hoje se fazem sentir na organização territorial segregadora do Rio de Janeiro. Esse traço da sua estruturação aparece através da disparidade no valor do solo entre as regiões da cidade, da elitização de algumas de suas porções urbanas e da estigmatização de outras. Ainda é possível ressaltar, dentre os efeitos da adoção do zoneamento, o aumento das ocupações irregulares, notadamente dos grandes conglomerados de favelas, especialmente nas áreas que se tornaram cada vez mais valorizadas, e nas quais foram também se concentrando, além de infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos, e oportunidades de trabalho.

Após mais de trinta anos, aprovou-se o decreto municipal n. 3.800, de 1970, com algumas modificações no zoneamento urbano do Rio de Janeiro. Duas orientações básicas são apontadas nesse novo regulamento legal: a cristalização dos rumos espontâneos do crescimento da malha urbana e a aprovação das expectativas do mercado imobiliário em relação aos parâmetros de uso e ocupação do solo (Sampaio, 2008). Assim, o instrumento deixava transparecer um duplo papel – técnico e político, respectivamente: de débil orientador de um crescimento urbano que ocorria independentemente do controle do uso e da ocupação do solo; e de subordinação às pressões de interesses privados sobre o solo urbano por parte do Estado.

O decreto municipal n. 3.800, ao definir o zoneamento na cidade do Rio de Janeiro, delimitou, além das zonas residenciais e comerciais já anteriormente estabelecidas, outras “zonas funcionais rígidas com um caráter tecnocrático de cunho controlador”, as quais podemos considerar coincidentes inteiramente com a visão desenvolvimentista do Estado (Sampaio, 2008). No instrumento, foram definidas: zonas comerciais (subdivididas em duas categorias); uma zona portuária; zonas industriais (subdivididas em duas categorias); zonas residenciais (subdivididas em três categorias); e uma zona rural.

Com a definição de zonas funcionais, o instrumento urbanístico passa a ter um comprometimento maior com a segregação socioespacial, ao destinar uma porção da cidade para usos que atribuíam um menor valor ao solo urbano (Maricato, 2000). Devemos considerar também que, de um modo geral, o instrumento, ao ser aplicado à porção territorial mais valorizada da cidade, só prestava a ratificar as tendências existentes. Entretanto, em áreas destinadas a outros usos que os residenciais, interferia na morfologia existente, tornando o uso residencial secundário ou mesmo proibido (Sampaio, 2008), reafirmando desigualdades e privilégios.

Em 1976, foi incluído um novo regulamento de zoneamento no decreto municipal n. 322, de 1976, até hoje vigente em grande parte da cidade do Rio de Janeiro, que obedece aos mesmos princípios estabelecidos pelo instrumento anterior. O novo dispositivo de zoneamento é pautado pela lógica do decreto de 1970, de restrição/permissão de usos, priorizando a funcionalidade do espaço urbano, inclusive em relação à densidade habitacional. A principal questão que ambos buscam responder ao criar zonas monofuncionais é a de incomodidades ao uso residencial, que possam trazer uma desvalorização do solo urbano, impondo restrições aos ganhos com uma renda associada às vantagens locacionais, trazendo como efeito a segregação socioespacial e a estigmatização territorial (Villaça, 1999; Rolnik, 1999; Maricato, 2000).

Zoneamento industrial nos subúrbios cariocas ferroviários

As primeiras zonas industriais: de 1937 ao final dos anos 1950

Até finais do século XIX, os interesses da produção capitalista da cidade do Rio de Janeiro voltaram-se apenas aos solos urbanos já ocupados nas áreas centrais, implicando a prioridade da ação do Estado para essa porção urbana. Entretanto, ainda nos primeiros anos do século XX, o potencial de ganhos fundiários e imobiliários oferecidos por fronteiras de urbanização recém-abertas ampliou o alcance territorial da atuação governamental, levando a intervenções, principalmente na implantação de infraestrutura, em territórios onde havia possibilidades de ganhos futuros pelo capital ‒ de início fundiário e imobiliário, e depois dos anos 1930, industrial.

Para favorecer os investimentos no setor industrial, a atuação governamental estendeu-se à regulamentação urbanística, direcionando e controlando o crescimento da cidade através do zoneamento urbano. No decreto municipal n. 6.000, de 1937, conhecido como o primeiro código de obras do Rio de Janeiro, o governo do então Distrito Federal incluiu de modo pioneiro a indicação da localização das indústrias (Silva, 2005) na legislação urbanística. Desse modo, o Estado passou a intervir em um setor até então não contemplado na regulamentação urbanística (Abreu, 1987), enquadrando-o nos interesses da produção urbana capitalista.

Chama atenção a exclusão, na demarcação das zonas industriais no decreto 6.000, de bairros da Zona Sul, mesmo incorporando áreas outrora escolhidas para ocupação por fábricas pioneiras, e consideradas nesse momento como subúrbios cariocas, como o bairro da Gávea. Coincidentemente, esses bairros faziam parte da região da cidade do Rio de Janeiro que progressivamente vinha se tornando alvo priorizado pelo mercado imobiliário para construção de edifícios residenciais. A partir de então, o solo urbano da Zona Sul iria se tornar cada vez mais valorizado em relação ao da Zona Norte, no qual se demarcaram zonas industriais, pelo investimento maciço do mercado imobiliário associado à atuação do Estado.

Porém, nesse momento, há uma preocupação no zoneamento urbano em criar uma diferenciação mesmo no interior da Zona Norte da cidade. A zona industrial demarcada no dispositivo legal de 1937 englobava, no interior do seu perímetro, estabelecimentos fabris existentes nos bairros de São Cristóvão – na área pericentral – e de Maria da Graça – na região suburbana. A faixa ao longo do ramal ferroviário próxima aos núcleos mais densos, junto às estações de trem, de interesse para o mercado fundiário, foi deixada de fora do zoneamento industrial. A zona industrial abrangia áreas mais próximas à orla da Baía da Guanabara, nas quais o Estado já projetava abrir uma nova via de acesso à cidade, a avenida Brasil (Figura 2), favorecendo o escoamento de mercadorias.3


Figura 2 – Primeira zona industrial urbana e localização das indústrias pioneiras. Fonte: decreto n. 6.000, de 1937. Produção própria, sobre mapa atual do Rio de Janeiro


Na zona industrial definida, o decreto n. 6.000, de 1937, permitia apenas a instalação de fábricas, oficinas e outros estabelecimentos relacionados às atividades fabris, e tolerava demais usos já preexistentes, inclusive o residencial. As indústrias que não foram inseridas na delimitação do zoneamento industrial foram consideradas núcleos industriais, que deviam seguir as condições estabelecidas para a zona industrial, ou seja, de instalação apenas de fábricas, oficinas e outros estabelecimentos relacionados às atividades fabris. Previa-se que os núcleos inseridos nos terrenos ou glebas dos próprios imóveis de uso industrial integrariam zonas para as quais se destinavam outros usos.

Nas décadas seguintes, entre 1937 e 1960, progressivamente, as zonas industriais ampliaram-se em número e extensão, abarcando maior porção da região suburbana, em faixas ao longo das linhas férreas e da recém-inaugurada avenida Brasil ‒ já no final dos anos 1940. Essas zonas estenderam-se pelo bairro de Bonsucesso e pelas franjas do bairro de Ramos, ambos na região suburbana, entre outras novas faixas estabelecidas (Figura 3), preservando as áreas que já haviam se consolidado pela ocupação por residências.


Figura 3 – Delimitação de zonas industriais entre 1937 e 1959 e localização das indústrias inauguradas no período. Fonte: Abreu (1987). Produção própria, sobre mapa atual do Rio de Janeiro


Na demarcação das zonas industriais, verifica-se uma dupla orientação apontada em relação à definição do zoneamento urbano (Sampaio, 2008). O zoneamento industrial de fato buscou cristalizar alguns dos encaminhamentos espontâneos do crescimento do parque industrial na cidade, mas apenas nos subúrbios cariocas da Zona Norte do Rio de Janeiro, e mesmo neles, liberando áreas mais densamente ocupadas que poderiam ser de interesse para o mercado fundiário e imobiliário.

O zoneamento industrial nesse período mostra também o caráter autoritário característico dos preceitos modernistas e funcionalistas (Villaça, 1999), ao estabelecer um rumo monofuncional para o ordenamento urbano, voltado apenas aos interesses do desenvolvimento nacional e da cidade, e não local. A consequência da sua atuação até hoje prevalece: a fragmentação do tecido urbano em partes da Zona Norte carioca, a favelização do entorno de áreas destinadas ao uso industrial, a presença no imaginário coletivo da identidade operária relacionada a todos os subúrbios cariocas ferroviários da Zona Norte.

A expansão das zonas industriais: dos anos 1960 a meados de 1970

Como em toda a América Latina, o planejamento urbano no Brasil, nos anos 1960 e 1970, passou a ser orientado por “uma visão que atribuía ao Estado o papel de portador da racionalidade, que evitaria as disfunções do mercado, bem como asseguraria o desenvolvimento econômico e social” (Maricato, 2000, p. 126). Esse período coincidiu com mudanças estruturais políticas e econômicas decorrentes dos golpes militares nos países latino-americanos e com forte centralização de recursos e processos decisórios, que resultaram, pelo menos no Brasil, na intensificação da metropolização e da industrialização.

Enquanto nos países centrais o movimento moderno na arquitetura e urbanismo e o caráter tecnocrático e funcionalista do planejamento urbano sofriam críticas e eram questionados com novas propostas, na América Latina estavam no apogeu. No ambiente pouco democrático, o zoneamento, ao mesmo tempo em que abria campo para excepcionalidades, permitindo atender interesses específicos, desconsiderava as necessidades da maior parte da população (Feldman, 2005). O afastamento de prioridades das populações locais na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, já apontado, se acentuou, particularmente tendo em vista que a legislação urbanística era atribuição do ente federativo estadual, o estado da Guanabara, priorizando interesses de maior alcance territorial.

No contexto de grande crescimento populacional e econômico dos anos 1960 e 1970,4 as zonas industriais na região suburbana carioca ferroviária restringiram-se, liberando territórios que passaram a ser visados pelo mercado imobiliário, estendendo-se a outros. O decreto municipal n. 3.800, de 1970, prolongou a faixa contínua delimitada como zona industrial nos dispositivos anteriores, abrangendo o bairro pericentral de São Cristóvão e o seu prolongamento na região suburbana. Zonas industriais foram criadas, correspondentes a núcleos nos subúrbios onde já havia estabelecimentos industriais instalados (Sampaio, 2008).

Além das áreas já apontadas, de maior atração ao mercado imobiliário – por serem núcleos urbanos mais antigos e, portanto, mais populosos, como Méier, Piedade e Madureira ‒, outras localizadas ao longo do ramal férreo que seria substituído por uma linha de metrô, como Vicente de Carvalho, foram liberadas da destinação ao uso industrial. É possível também considerar uma valorização imobiliária decorrente da própria expansão industrial em áreas da orla de Ramos, Brás de Pina e proximidades ‒ que se tornaram objeto de obras de aterro pelo Estado, em uma intervenção que liberou terrenos para a indústria. Essas áreas algumas vezes seriam objeto igualmente de tentativas de remoção de favelas existentes.

A expansão das zonas industriais se deu para subúrbios mais distantes do Centro, nos limites do município, nas margens da avenida Brasil, em áreas para as quais as indústrias já haviam se direcionado5 (Figura 4).


Figura 4 – Delimitação de zonas industriais entre 1960 e 1976 e localização das indústrias inauguradas no período. Fonte: Abreu (1987). Produção própria, sobre mapa atual do Rio de Janeiro


Com a ampliação das áreas correspondentes a zonas industriais, a legislação urbanística passa a ter um comprometimento maior com a monofuncionalidade, a fragmentação urbana e a estigmatização de áreas da cidade, além de reafirmar a simbiose entre industrialização e periferização. Indica ainda a associação entre a avenida Brasil, uma intervenção pública de grande envergadura, e a criação de oportunidades para investimento da iniciativa privada – no caso do capital industrial. Trata-se de fortalecer a lógica da produção capitalista, com dinâmicas voltadas à abertura de frentes para o desenvolvimento econômico.

Perspectivas para as antigas zonas industriais: de meados dos anos 1970 até hoje

A matriz de planejamento urbano funcionalista e modernista que orientou o crescimento das cidades brasileiras passou a ser desmontada a partir dos anos 1980, em decorrência das mudanças na nova ordem econômica mundial. As propostas neoliberais que acompanharam a reestruturação produtiva no âmbito mundial no final do século XX e esfacelaram barreiras nacionais, resultando no enfraquecimento do Estado, levaram a um novo encaminhamento no pensamento sobre a atuação urbana brasileira (Rolnik, 2015).

Uma das principais consequências da introdução de uma nova ordem econômica na esfera mundial foi o desmantelamento dos até então estimulados processos de produção industrial na escala nacional (Maricato, 2000), diluindo os ideais desenvolvimentistas, antes definidores dos incentivos do Estado à economia. O resultado foi uma eliminação crescente de plantas industriais nas metrópoles brasileiras, que tiveram um rebatimento com a introdução de processos de desindustrialização na região suburbana da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. As consequências foram a elevação das taxas de desemprego no nível nacional, a degradação de áreas urbanas e a abertura de territórios à criminalidade urbana.

A implicação da nova ordem econômica na legislação urbanística, particularmente no zoneamento urbano, foi muito lentamente absorvida. Nos anos 1970, no contexto político do regime da ditadura militar no país, prevalece uma forte centralização de poder e a interferência nas políticas urbanas locais, cujo pensamento em torno do planejamento urbano se volta ao apoio das políticas desenvolvimentistas e centralizadoras (Lipietz, 1989; Klink, 2013). Para acompanhar e avaliar a implantação das regiões metropolitanas, em 1974, criou-se a Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU), vinculada à Secretaria de Planejamento da Presidência da República,6 que pouco depois, em 1975, já recebia recursos provenientes do recém-instituído Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano (FNDU).7 Grande parte desses recursos foi direcionada para a Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU),8 que os aplicou em programas de transporte, principalmente nas rodovias das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte.

Entretanto, nos anos 1980, com as mudanças políticas e econômicas no país, o consequente fim de repasses financeiros e o aparecimento de novos atores, principalmente os prefeitos eleitos e os movimentos sociais, há um esvaziamento desse planejamento centralizador e metropolitano (Klink, 2013). Do pensamento tecnocrata e autoritário, o zoneamento foi o instrumento que se manteve, tornando-se o único protagonista no controle do ordenamento das cidades brasileiras (Maricato, 2000).

Em 1976, foi realizada uma ampla atualização na legislação urbanística da cidade do Rio de Janeiro, inclusive no zoneamento urbano, com a aprovação do decreto n. 322. Até hoje seus parâmetros estão vigentes em grande parte do território municipal, incluindo aqueles que se aplicavam à maioria das zonas industriais previstas.

Porém, com o início do processo de desindustrialização na cidade, as zonas industriais foram revistas, tanto no que se refere aos seus limites quanto aos seus critérios para uso e ocupação. Acréscimos na demarcação de zonas industriais na região suburbana ferroviária da Zona Norte corresponderam apenas à destinação ao uso industrial de áreas mais desvalorizadas pela presença do conglomerado de favelas e que já haviam sido ocupadas por estabelecimentos fabris anteriormente. Vale enfatizar que a favelização em torno de antigos parques fabris pode ser considerada como um provável impacto do estímulo representado pelo zoneamento industrial implementado pelo Estado.

Uma novidade que surge no decreto n. 322, de 1976, é a divisão das zonas industriais em três categorias: a Zona Industrial 2, destinada à indústria pesada e sua armazenagem; ao uso industrial com característica nociva, perigosa ou incômoda; correspondendo às áreas dos subúrbios ferroviários da Zona Norte, mais limítrofes ao município do Rio de Janeiro; a Zona Industrial 1, destinada ao uso industrial que produz ruído, congestionamento de tráfego ou risco mas, por suas dimensões e características, não constitui ameaça e prejuízo às áreas vizinhas, correspondendo às áreas suburbanas cujos estabelecimentos fabris foram os pioneiros, mas que foram se adensando no tempo.

Em ambas as zonas industriais, tolera-se apenas o uso residencial já implantado, não se admitindo novas residências. No zoneamento industrial do decreto 322 abriu-se uma nova categoria, que admitia o uso residencial. Trata-se da Zona Predominantemente Industrial, correspondente às áreas que foram sendo densamente ocupadas, especialmente por ocupações irregulares. Os territórios abrangidos pela nova categoria, antes considerados zona industrial, tiveram as normas de uso e ocupação do solo atualizadas (Figura 5).


Figura 5 – Delimitação de zonas industriais a partir de 1976 e localização de indústrias inauguradas no período. Fonte: Portal Geo/PCRJ. Produção própria, sobre o mapa atual do Rio de Janeiro


Nesse período, há ainda a promulgação de uma lei federal atribuindo competência à entidade metropolitana do governo do estado para demarcar zonas destinadas às indústrias. A lei estadual n. 466, de 1981, denominou Zonas de Uso Estritamente Industrial (ZEIs) e Zonas de Uso Predominantemente Industrial (Zupis) para a região metropolitana do Rio de Janeiro, definidas e delimitadas pela portaria n. 176 da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema), órgão de controle ambiental do governo do estado do Rio de Janeiro. As ZEIs são destinadas, exclusivamente, à localização de estabelecimentos industriais cuja convivência com outros usos, mesmo com controle e tratamento de efluentes, são inadequados; e as Zupis são destinadas àqueles que, mediante controle e tratamento de efluentes, não causem incômodos nas áreas adjacentes.

No recorte da região suburbana ferroviária foram previstas a Zupi de Del Castilho/Inhaúma e a Zupi de Guadalupe, nunca implementadas, prevalecendo na sua regulamentação as normas das zonas industriais municipais do decreto n. 322, de 1976. Os resultados da delimitação de ZEIs e Zupis nas áreas, então pouco ocupadas, das Zonas Norte e Oeste da cidade do Rio de Janeiro foram menos de estímulo à industrialização e mais de agravamento de processos de fragmentação territorial característicos do urbanismo contemporâneo.

Ainda é preciso considerar que, no Brasil, as décadas de 1980 e 1990 caracterizaram-se também por mudanças políticas voltadas à redemocratização, iniciando-se uma etapa de reverberação da consciência social e de movimentos populares nas questões urbanas (Villaça, 1999). A presença das associações de moradores e entidades preservacionistas vem resultando em uma pressão no Estado, apesar de insuficiente no seu rebatimento, com alguns impactos na legislação urbanística.

Em 2012, no contexto da desindustrialização – com a degradação e a insegurança nos territórios atingidos –, é aprovada a lei n. 116, de 2012, que flexibiliza os usos para as Zonas Industriais 1. No dispositivo legal, passam a ser adequados usos residencial, comercial, serviços e misto, além de ser estimulada a ocupação de remanescentes industriais desocupados, medidas que até hoje não se tornaram atrativas o suficiente para o mercado imobiliário atuar na região. A presença de edificações ociosas e/ou com apropriações não previstas vem induzindo o aparecimento de ocupações irregulares, em especial para moradia, evidenciando uma frágil relação entre planejamento de indústria, moradia e território.

Considerações finais

Compreender o alcance do zoneamento urbano como ação do Estado no controle do processo de produção de cidade e a história de sua inserção na cultura urbanística enquanto instrumento que domina o país é fundamental para entendermos que visão de cidade e política urbana tem dominado nossa experiência de planejamento e seu rebatimento no espaço urbano.

Ao compararmos a inserção da localização de estabelecimentos industriais na região suburbana ferroviária da Zona Norte do Rio de Janeiro, nos perímetros demarcados como zonas industriais, nos três momentos analisados, observamos que em 1937, no contexto do zoneamento industrial pioneiro, o dispositivo legal abrangeu cerca de 40% das indústrias. Este dado permite avaliar a importância do instrumento, ou seja, da ação do Estado, como um direcionador da produção da cidade, desassociado de preexistências.

Entre 1937 e 1960, há uma progressiva coincidência da localização dos estabelecimentos fabris, aproximadamente 90%, com a demarcação das zonas industriais, podendo ser entendida como um aproveitamento da vantagem oferecida pela proximidade dos seus limites com a obra pública viária de infraestrutura, de relevante alcance na produtividade das indústrias. Revela também as condições mais impositivas da legislação urbanística, fruto de uma atuação cada vez mais direta do Estado no desenvolvimento industrial.

Até 1976, a proximidade do principal acesso viário da cidade, a avenida Brasil, parece ter se tornado gradualmente insuficiente para justificar a localização fabril em zonas industriais na região suburbana ferroviária da Zona Norte do Rio de Janeiro. Nesse período, vai se reduzindo a localização dos estabelecimentos fabris, cerca de 80%, no interior do perímetro das zonas industriais lá demarcadas. Alguns aspectos ajudam a justificar essa retração: a diminuição do porte e do impacto urbano das indústrias instaladas na região, com as vantagens de menor custo e maior eficiência, que se apresentavam em franjas distantes das áreas mais populosas, além do início da crise econômica que já se anunciava no âmbito mundial e refletiu muito fortemente em processos de desindustrialização.

Desse modo, por um longo período, dos anos 1940 a 1970, a normatização das zonas industriais teve a capacidade de produzir impactos muito efetivos na realidade, transformando-a em muitos aspectos de suas dimensões urbanas. Importante considerar também a incompletude na concretização da ideia original do desenvolvimento nacional associada à industrialização, mostrando uma condição paralela àquela verificada por Gorelik (1991), ao analisar ações do planejamento urbano na América Latina. As regiões afetadas por esses processos, como o autor observa, mudaram a partir da tensa convivência resultante de representações e realidades, “entre o que fica do desígnio programático, incompleto e desmentido, e a própria realidade que, em seu fracasso, esse desígnio chegou a constituir” (Gorelik, 2005, p. 114), que deixaram um rastro de novos problemas e novas oportunidades.

Merece menção a necessária construção de uma nova matriz urbanística hoje, passando por uma nova abordagem do planejamento urbano, que talvez não esgote o campo de planos ou regulamentos urbanísticos, mas exige “decisões participativas descentralizadas” (Maricato, 2000, p. 177). Há que estar atento para evitar manter a tecnocracia de Estado, cada vez mais subordinada ao capital, e substituí-la por “um pacto territorial cujo sujeito seja uma multiplicidade de grupos-sujeito” (Rolnik, 2015, p. 359), requerendo substituição nos instrumentos de planejamento. Certo é que “o desconhecimento da cidade real só facilita a implementação de políticas regressivas carregadas de simbologia” e o conhecimento é “um antídoto necessário para o desmonte da representação ideológica e para o fornecimento de uma base científica para a ação” (Maricato, 2000, p. 186).

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Recebido em 29/8/2022

Aprovado em 24/10/2022


Notas

1    Entre 1872 e 1890, a taxa de crescimento demográfico do Rio de Janeiro, cidade brasileira então mais populosa, foi de 90,1%, enquanto a população do país cresceu a uma taxa de 44,3% (Censos de 1872 e 1890). Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25477_v1_br.pdf e https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25490.pdf. Acesso em: 2 dez. 2022.

2    A cidade do Rio de Janeiro só teria outro plano diretor abrangente como o Agache em 1965, com o plano Doxiadis, um “plano altamente técnico”, atrelado à ideologia desenvolvimentista da época, que buscou, em amplos diagnósticos e prognósticos, uma eficiência em todas as dimensões urbanas. Na sequência temporal dos planos diretores está o plano urbanístico básico da cidade do Rio de Janeiro (PUB-Rio), de 1977, que, diferentemente dos anteriores que visavam um “modelo de cidade ideal”, se limitou a ser “um plano de diretrizes”. Cabe observar que esses três grandes planos têm uma visão funcional da cidade (Rezende, 1982).

3     Construída e inaugurada entre 1939 e 1946, a avenida Brasil é um componente fundamental da suburbanização na cidade do Rio de Janeiro, destacando-se a mudança, por parte do Estado, da perspectiva “ferroviária” para “rodoviarista”, que acabou destituindo o protagonismo das linhas férreas na produção dos subúrbios (Abreu, 1987).

4    De 1950 a 1960, a taxa de crescimento demográfico da cidade do Rio de Janeiro foi de 39,1%, enquanto no Brasil foi de 36,7% (Censo 1960). No período de 1960 a 1970, apesar de ligeiramente inferior à taxa no Brasil (de 31,2%), também foi muito alta, alcançando 30,5% (Censo 1970). Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?id=768&view=detalhes e https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?id=769&view=detalhes. Acesso em: 2 dez. 2022.

5    Nesse sentido, a avenida Brasil é também fundamental para a metropolização na cidade do Rio de Janeiro, ressaltando-se seu papel, especialmente nos anos 1960, de indutora do deslocamento das indústrias para os limites externos da cidade, favorecido também pela abertura da rodovia Presidente Dutra, em busca de impostos e taxações mais baixas, associado a uma ocupação dispersa e irregular (Abreu, 1987).

6    Decreto federal n. 74.156, de 6 de junho de 1974, revogado pelo decreto de 25 de abril de 1991.

8    Instituída pela lei n. 6.261, de 14 de novembro de 1975, extinta pelo decreto n. 230, de 15 de outubro de 1991.



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