Acervo, Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, set./dez. 2022

Independências: 200 anos de história e historiografia | Dossiê temático

Redes de negócios e laços familiares

A atuação mercantil da família Andrada às vésperas da Independência do Brasil

Trade networks and family ties: the Andrada family's mercantile activities on the eve of Independence of Brazil / Redes de negocios y lazos familiares: las actividades mercantiles de la familia Andrada en vísperas de la Independencia de Brasil

Renato de Mattos

Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor adjunto do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.

renato_mattos@id.uff.br

Resumo

O artigo analisa a atuação da família Andrada nas redes mercantis do Centro-Sul do Brasil às vésperas da Independência. A partir do exame de dois episódios pouco explorados pela historiografia, constata-se que as disputas comerciais entre a família e os grupos concorrentes repercutiram na prática e no discurso político de José Bonifácio e de seus irmãos, Antônio Carlos e Martim Francisco.

Palavras-chave: Independência; José Bonifácio de Andrada e Silva; relações comerciais; São Paulo.

Abstract

The paper analyzes the role of the Andrada family in the mercantile networks of South-Central Brazil on the eve of Independence. Through the examination of two episodes rarely explored by historiography, it is possible to verify that the commercial disputes between the family and the competing groups had repercussions on the practice and political discourse of José Bonifácio and his brothers, Antônio Carlos and Martim Francisco.

Keywords: Independence; José Bonifácio de Andrada e Silva; commercial relations; São Paulo.

Resumen

El artículo analiza el papel de la familia Andrada en las redes mercantiles del centro-sur de Brasil en vísperas de la Independencia. A partir del examen de dos episodios poco explorados por la historiografía, se observa que las disputas comerciales entre la familia y los grupos competidores tuvieron repercusiones en la práctica y en el discurso político de José Bonifácio y sus hermanos, Antônio Carlos y Martim Francisco.

Palabras clave: Independencia; José Bonifácio de Andrada e Silva; relaciones comerciales; São Paulo.

Ao abordar o tema da Independência do Brasil, invariavelmente nos deparamos com alguma referência ao nome de José Bonifácio de Andrada e Silva. O papel que exerceu no processo político que culminou na separação de Portugal em 1822 o levou a ser distinguido por seus contemporâneos como o “patriarca da Independência”, epíteto pelo qual até hoje é conhecido. Embora a sua atuação enquanto “artífice” do Estado nacional brasileiro tenha sido sublinhada por diversos autores desde a primeira metade do século XIX (Costa, 1986, p. 104), em grande medida, a imagem do estadista “abnegado”, comprometido com a “causa nacional”, adquiriu seus contornos mais definitivos no contexto das comemorações do centenário do episódio em 1922, ocasião em que os marcos simbólicos e as personagens que protagonizaram a Independência foram cristalizados em monumentos, exposições e publicações.

Em São Paulo, mais especificamente em Santos, o culto à memória de José Bonifácio recebeu especial atenção em 1922. Além do “Monumento aos Andrada”, de autoria do arquiteto Gaston Castel e do escultor Antoine Sartorio, e do “Pantheon dos Andrada”, templo que abriga seus restos mortais, os esforços das autoridades santistas em celebrar os feitos de um dos seus mais ilustres concidadãos resultaram também na publicação da obra Os Andradas, de Alberto Sousa (1922). Dividido em três volumes, o trabalho expõe em detalhes a trajetória de José Bonifácio, desde a sua infância na vila do litoral paulista até a sua morte em Niterói, em 1836. Nas páginas de seu trabalho, Sousa se mantém fiel ao enredo seguido com frequência por outros biógrafos do “patriarca”: o filho de uma família abastada, que ainda jovem foi estudar na Universidade de Coimbra, e em pouco tempo se tornou um dos mais respeitados mineralogistas do seu tempo, passando pela ascensão do arguto observador político que foi gradualmente se envolvendo com as questões do Brasil, destacando-se, enfim, como um dos principais articuladores da Independência.

Nesse percurso comum tanto nos escritos de Sousa quanto nas inúmeras publicações dedicadas a José Bonifácio – em que cada gesto e palavra proferida foram, na maioria das vezes, interpretados como o prenúncio do “espírito libertário” ao qual estava vocacionado e da “aversão” que nutria contra os arbítrios perpetrados pela metrópole portuguesa –, são raras as menções aos negócios praticados pela família Andrada, cujos interesses, no início do século XIX, foram enfaticamente defendidos em mais de uma ocasião pelo futuro “patriarca da Independência” e por seus irmãos. Assim, reconhecendo os nexos indissociáveis entre política, negócios e relações de mercado, notadamente suas implicações no processo de configuração da nação e do Estado monárquico brasileiros,1 o objetivo do artigo é analisar um aspecto ainda pouco explorado da vida de José Bonifácio: a atuação mercantil de seus familiares na praça de Santos e as conexões que preservavam com negociantes radicados em outras áreas da América portuguesa, principalmente no Rio de Janeiro.

Após uma breve reconstituição dos negócios empreendidos pelos Andrada desde meados do século XVIII, examinaremos dois episódios ocorridos às vésperas da Independência em que o acirramento das disputas comerciais entre a família e grupos mercantis concorrentes repercutiu na prática e no discurso político de José Bonifácio e de seus irmãos, Antônio Carlos e Martim Francisco. Ao inscrever a atuação da família Andrada em um contexto marcado por intensos conflitos travados nas esferas da política, da administração e dos negócios, os eventos analisados assumem significados mais complexos do que aqueles que foram comumente apresentados pela historiografia, contribuindo, assim, para a problematização dos fundamentos da memória que cercou a imagem mítica do “patriarca” e de seus familiares.

A atuação mercantil da família Andrada na vila de Santos

Para recompor o processo de enraizamento dos interesses mercantis da família de José Bonifácio na vila santista nas primeiras décadas do oitocentos é necessário recuar ao final do século XVII, quando o seu avô paterno, José Ribeiro de Andrada – a exemplo de tantos outros portugueses que emigraram para o Brasil após as descobertas auríferas nas Minas Gerais –, partiu da região do Minho e se estabeleceu como comerciante no litoral paulista. À época, o porto de Santos vivenciava um incremento na movimentação de mercadorias e de embarcações graças à posição de principal escoadouro da produção aurífera, situação que permaneceu inalterada até 1733, ano em que o Caminho Novo de Garcia Rodrigues Paes foi aberto, conectando diretamente a região das Minas ao Rio de Janeiro (Canabrava, 1974).

Em pouco tempo, José Ribeiro alcançou prestígio na comunidade mercantil da vila, o que lhe deu acesso às “indicações para cargos públicos na vila, e a partir deles buscar maiores vantagens para seu negócio” (Caldeira, 2002, p. 12). Em 1721, administrou o contrato da dízima da Alfândega do Rio de Janeiro e de Santos e, no ano seguinte, foi promovido ao posto de capitão de infantaria da ordenança. Entre os anos de 1727 e 1732, atuou como escrivão da Fazenda Real e do Almoxarifado da vila (Sousa, 1922, p. 278).

As alianças comerciais com algumas das famílias mais ricas da região foram reforçadas após se casar com a filha do abastado negociante reinol Baltazar da Silva Borges, que também possuía laços de parentesco com Alexandre de Gusmão, diplomata e secretário pessoal do rei d. João V (Caiuby, 1949, p. 12). Enriquecido, José Ribeiro enviou os dois filhos mais velhos para estudarem na Universidade de Coimbra: José Bonifácio, que de volta a Santos atuou como médico, e Tobias Ribeiro, tesoureiro da catedral da Sé em São Paulo. O terceiro filho, Bonifácio José de Andrada, pai do futuro “patriarca da Independência”, permaneceu na vila santista cuidando dos negócios de seu pai.

Nascido em 1726, Bonifácio José exerceu ao longo da sua vida inúmeras funções na administração da capitania paulista, destacando-se nos cargos de fiscal da Intendência das Minas de Paranapanema em 1746, almoxarife da Fazenda Real de Santos, entre 1759 e 1764, e escrivão da Junta Real da Fazenda de São Paulo, entre 1768 e 1772.2 Capitão de Infantaria Auxiliar de Santos desde 1766, Bonifácio José foi promovido a coronel do Estado-Maior do Regimento de Dragões Auxiliares da capitania, em 1777, pelo então governador Martim Lopes Saldanha (Marques, 1952, p. 146). Nesse período, também atuou em diversos ramos de negócios, como na arrematação dos contratos do subsídio literário, em 1765, e das passagens do Cubatão e do rio Mogi do Pilar por dois triênios, decorridos entre 1781 e 1786 (Medicci, 2010). Ademais, Bonifácio José dedicou-se à produção de gêneros como açúcar, café, arroz, farinha e aguardente, os quais, ao serem comercializados “a preços remuneradores” no Rio de Janeiro, fizeram dele dono da segunda maior fortuna de Santos, em 1765 (Sousa, 1922, p. 289).

Naquele mesmo ano, a autonomia administrativa de São Paulo foi restaurada após Luiz Antônio de Sousa Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, assumir o posto de governador e capitão-general. Estendendo a sua permanência na vila de Santos antes de prosseguir viagem à cidade de São Paulo, sede administrativa da recém-restaurada capitania, o Morgado de Mateus reportou ao conde de Oeiras que a “falta de comércio neste excelente porto de Santos é o que tem concorrido muito para esta vila e toda a capitania estar em uma miserável decadência”.3 Embora contrastassem com a opulência da família Andrada e de outros negociantes radicados em Santos no período, os relatos sobre a “penúria” paulista persistiram nos ofícios expedidos pelo Morgado de Mateus ao longo dos dez anos em que esteve à frente do governo paulista. Com efeito, conforme demonstram pesquisas recentes acerca da capitania de São Paulo na segunda metade do século XVIII,4 “pobreza” e “decadência” eram expressões constantes nas descrições formuladas pelas autoridades paulistas da época e, na maioria das vezes, acompanhadas por medidas que, embora atendessem exclusivamente determinados grupos mercantis, eram apresentadas como os únicos meios para a “prosperidade” de todos os habitantes da região. Para o Morgado de Mateus, assim como para muitos de seus sucessores, a “falta de comércio” era associada à ausência de linhas diretas entre a vila de Santos e o reino de Portugal, o que prejudicava, em sua opinião, a obtenção de lucros maiores do que aqueles que eram auferidos com a venda do açúcar e de outros gêneros paulistas no Rio de Janeiro.

De fato, desde a segunda metade do século XVIII até o início do XIX, era notória a ascendência comercial do Rio de Janeiro sobre a capitania de São Paulo, bem como os laços que aproximavam os negociantes da praça carioca e de Santos. Nesse caso particular, é exemplar a estreita ligação que os Andrada mantinham com os Carneiro Leão. Originada da convergência de interesses mercantis, a afinidade entre ambas as famílias levou o casal Brás Carneiro Leão e Ana Francisca Rosa Maciel da Costa a aceitar o convite para batizar os dois irmãos mais jovens de José Bonifácio de Andrada: Úrsula Andrada e Francisco Eugênio (Silva Sobrinho, 1953, p. 43-44). Naquele momento, Carneiro Leão desfrutava de grande prestígio entre os homens de negócios e as autoridades locais e metropolitanas, notabilizando-se, no início do século XIX, como o chefe da “mais bem-sucedida família de negociantes do Rio de Janeiro” (Gorenstein, 1993, p. 198). Depois de se fixar na colônia em 1748, estabeleceu uma “notável e muito acreditada” casa comercial, por meio da qual acumulou grande fortuna com a importação de manufaturas portuguesas e escravos africanos, revendendo-os por atacado no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Rio Grande de São Pedro do Sul; de outra parte, recebia “em comissão gêneros de produção desses lugares, a mor parte dos quais exportava para Portugal em navios de sua propriedade” (Gama, 1880, p. 365).

Embora fosse vantajosa para a família Andrada, a primazia do porto do Rio de Janeiro enquanto entreposto comercial responsável pela venda de cativos e manufaturas em São Paulo foi objeto de sucessivas críticas por parte dos setores alijados da dinâmica comercial costeira que interligava as duas praças, assim como entre autoridades e negociantes interessados na manutenção do comércio direto entre o reino de Portugal e a capitania paulista (Mattos, 2009). No entanto, as conexões entre os Carneiro Leão e os Andrada persistiram, apesar dos esforços contrários de seus concorrentes, até o final do século XVIII, o que é comprovado pelo relatório redigido em 1797 pelo governador paulista Bernardo José de Lorena, em que recomendava a adoção de “muitas providências para evitar a saída dos efeitos do comércio com a Europa, para o Rio de Janeiro [...], pelo costume em que estavam os negociantes de São Paulo, de merecerem menos este nome, do que os de caixeiros dos do Rio”.5

Política, administração e negócios: a família Andrada e a disputa pelo controle do comércio marítimo paulista

Bonifácio José permaneceu à frente dos negócios da família até falecer no ano de 1789. Naquele momento, entre os seus herdeiros que ainda residiam na vila de Santos, apenas Patrício Manuel Bueno de Andrada possuía idade suficiente para assumir as atividades comerciais familiares, uma vez que José Bonifácio, à época com 26 anos, vivia no reino português, onde havia ingressado na Academia das Ciências e Letras de Lisboa (Dolhnikoff, 2000, p. 15). Nas décadas seguintes, Patrício Manuel – o único dos irmãos Andrada que seguiu a carreira sacerdotal – fortaleceu os vínculos que seu pai havia firmado com a comunidade mercantil carioca, incorporando ao patrimônio da família um engenho de açúcar no interior paulista e diversos imóveis na vila de Santos. Os negócios dos Andrada também foram ampliados por meio da sociedade com outros comerciantes da região, a exemplo de Francisco Xavier da Costa Aguiar, um dos principais exportadores de gêneros paulistas no Rio de Janeiro, casado com Bárbara Joaquina, filha de Bonifácio José (Di Carlo, 2011, p. 236-237).

No entanto, os interesses comerciais da família Andrada e de seus correspondentes foram duramente afetados pelas medidas adotadas no início do século XIX pelo governador Antônio José da Franca e Horta. Seguindo seus antecessores, em 1803, o recém-empossado capitão-general acusava a “estagnação econômica” da capitania de São Paulo e, ao mesmo tempo, destacava as vantagens do comércio direto com Portugal como a única forma de libertá-la “de comissões nos portos das outras”.6 Para que as linhas comerciais entre o litoral paulista e o reino português fossem fixadas, Franca e Horta recorreu ao apoio da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, sediada na cidade do Porto, a fim de que seus representantes enviassem para Santos embarcações carregadas com manufaturas, ferragens, vinhos e azeites (Mattos, 2019, p. 85).

Em contrapartida, o governador tomou duas providências com o intuito de assegurar a carga necessária para reabastecer os navios vindos da cidade do Porto. A primeira medida adotada foi buscar o indispensável apoio entre os negociantes paulistas concorrentes dos Andrada e de outros comerciantes ligados ao porto carioca, dentre os quais se destacavam o brigadeiro Luiz Antônio de Sousa e José Antônio Vieira de Carvalho, abastado comerciante radicado na vila de Santos e que, por indicação do governador, foi nomeado representante da Companhia do Alto Douro em São Paulo. A segunda medida consistiu na concentração das exportações da capitania no porto de Santos a partir de restrições impostas ao comércio costeiro entre os portos paulistas e as demais regiões da colônia (Mattos, 2009, p. 147).

A proibição à livre navegação de mercadorias entre São Paulo e o porto do Rio de Janeiro logo causou grande comoção entre os negociantes e produtores da capitania que, a exemplo dos Andrada, mantinham vínculos mercantis desde a segunda metade do século XVIII. Nos meses que se seguiram à publicação das restrições comerciais, diversas representações expressando a insatisfação dos habitantes das vilas litorâneas foram encaminhadas ao governador. Em setembro de 1805, ao ser informado de que a vila de Paranaguá se recusava a cumprir suas ordens, Franca e Horta expediu um ofício acusando os negociantes do Rio de Janeiro – nomeadamente Amaro Velho da Silva e Brás Carneiro Leão, sócio de Bonifácio José e de seus herdeiros – de incitarem as manifestações contrárias aos limites fixados ao comércio de cabotagem em São Paulo por estarem “descontentes” com a redução dos “lucros acostumados”.7

A resistência dos moradores de Paranaguá em suspender a remessa de mercadorias para o porto carioca levou o governador paulista a ordenar que as principais autoridades da vila fossem detidas e inquiridas pelo juiz de fora santista, cargo ocupado naquele momento por Antônio Carlos de Andrada e Silva, irmão de José Bonifácio. Não obstante, em ofício dirigido à Secretaria de Governo da capitania, Antônio Carlos negou-se a cumprir as ordens expressas pelo capitão-general sem que antes tivesse em mãos a provisão régia autorizando a abertura do inquérito contra os camaristas de Paranaguá.8 Diante da recusa reiterada em executar as ordens fixadas, o juiz de fora foi advertido pelo governador de que, caso descumprisse outra determinação, seria imediatamente denunciado como “cabeça de sedição”.9

Longe de pôr termo à dissensão, essa última sentença não apenas acirrou o antagonismo entre Franca e Horta e o juiz de fora santista, como também foi suficiente para mobilizar os demais integrantes da família Andrada contra o governador. Com efeito, pouco tempo depois, uma súplica lavrada em nome do juiz Antônio Carlos e de seus irmãos José Bonifácio, Martim Francisco Ribeiro, além da matriarca do clã, Maria Bárbara da Silva foi encaminhada ao príncipe regente d. João, em que acusavam os “despóticos caprichos” infligidos por Franca e Horta contra alguns membros da família. Referindo-se ao governador paulista, os Andrada afirmavam que “este homem, que nasceu para fazer desgraçada uma capitania a mais fiel à Coroa de V. A. R. [...] em todo o tempo do seu desastroso governo tem sido o maior flagelo daqueles povos”.10

Constantemente “oprimida e enxovalhada” pelo capitão-general, a família Andrada figurava, na opinião dos suplicantes, entre as principais “vítimas” do seu “desastroso” governo. Como prova disso, aludiam ao primeiro dos muitos insultos cometidos por Franca e Horta, quando, em 1805, Martim Francisco Ribeiro, na época diretor-geral das Minas e Matas de São Paulo, foi constrangido pelo governador a entregar todos os diários de campo e as amostras de plantas e sementes colhidas durante a expedição mineralógica que havia empreendido no interior da capitania. Julgando essa determinação improcedente e recusando-se formalmente a ceder parte dos artigos solicitados, Martim Francisco, em agosto de 1806, foi intimado a comparecer perante o capitão-general, ocasião em que foi ameaçado de prisão depois de ser “severamente repreendido” e “tratado de insubordinado”.11

Entretanto, de acordo com os signatários, a série de “abusos” praticados pelo capitão-general atingiu o seu ápice em setembro de 1806, quando Antônio Carlos de Andrada, na condição de juiz de fora de Santos, constatou o “desacerto e ilegalidade” da devassa cuja execução havia sido ordenado a conduzir contra os camaristas paranaguaenses. Reconhecendo o “vexame que sofriam os povos de não poderem vender os seus gêneros nas praças do Rio de Janeiro e Bahia, e serem forçados a trazer a Santos para os entregarem a atravessadores patrocinados” pelo governador paulista, Antônio Carlos negou-se a dar prosseguimento ao processo, razão que o levou a ser “insultado, interrogado e autuado por um modo tão despótico quanto risível”.12 Por fim, os subscritores encerravam a súplica dirigida ao monarca com um apelo especial:

Confiados, pois, no magnânimo e pio coração de Vossa Alteza Real, esperam de certo proteção e amparo; e, portanto, pedem os suplicantes a Vossa Alteza Real se digne livrar os povos da sua capitania de São Paulo de um tal governador, mandando-o logo recolher à corte; e se compadeça outrossim da injúria e vilipêndio de toda a família dos suplicantes, desafrontando-a do modo que parecer ao piedoso coração de Vossa Alteza Real, de quem esperam todo o remédio, e providências [...].13

Antônio José da Franca e Horta não ignorava a gravidade das acusações formuladas por seus adversários, tampouco o prestígio e a influência que José Bonifácio dispunha no período entre alguns dos principais membros da corte, a exemplo de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares (Dolhnikoff, 2000, p. 4). Assim, em ofício dirigido ao secretário da Marinha e Domínios Ultramarinos, o capitão-general procurou esclarecer a sua versão dos acontecimentos envolvendo os Andrada. Em seu relato, Franca e Horta recordava a cordialidade que havia dispensado em seus primeiros contatos com a família, afirmando que “logo que cheguei a esta capitania, distingui, e patrocinei a família de José Bonifácio, visitando, e obsequiando publicamente a sua mãe, e patrocinando a todos os seus parentes”.14

Ainda conforme o capitão-general, Martim Francisco se destacava entre os membros do clã com quem mais simpatizara, a quem teria tratado “mais como amigo que como súdito”.15 No entanto, a relação cordial que principiara com Martim Francisco findou logo em seguida, quando o seu amigo e “protegido” Inácio Gomes Midões, praticante de cirurgia do Hospital Militar de São Paulo, foi impedido pelo governador de ocupar o lugar de cirurgião-mor da Legião de Voluntários. Após o ocorrido, Martim Francisco passou a “inquietar o sossego público com seus discursos”, além de faltar ao “respeito e obediência devida” ao governador da capitania.16

Em um tom ainda menos lisonjeiro, Franca e Horta detalhava as origens dos desentendimentos com Antônio Carlos de Andrada, a quem se referia como “insultante, temerário e sedicioso”. De acordo com a descrição apresentada pelo capitão-general, a autuação do juiz de fora de Santos por desobediência formal foi o procedimento mais adequado que encontrara para fazê-lo respeitar a autoridade que havia deliberadamente “ignorado” no instante em que se recusara a inquirir os camaristas de Paranaguá.

Contudo, nos meses seguintes, os esforços despendidos por Franca e Horta revelaram-se incapazes de persuadir as autoridades de Lisboa acerca da lisura de sua conduta como governador da capitania de São Paulo. Em maio de 1807, o capitão-general foi notificado da provisão régia expedida no final do ano anterior, na qual o príncipe regente e seus conselheiros acolhiam as acusações lavradas pelos camaristas de Paranaguá relativas à “tão extraordinária e ilegal medida” adotada em 1803.17 Depois disso, não restava escolha a Franca e Horta senão cumprir imediatamente as régias orientações. Assim, em 5 de junho de 1807, o governador despachou uma circular ao juiz da alfândega de Santos e a todos os comandantes das vilas litorâneas de São Paulo determinando a liberdade para “a exportação dos efeitos desta capitania para todas as mais do Estado do Brasil”.18 Poucos dias após a revogação das disposições que concentraram o comércio de cabotagem paulista por quase quatro anos, outra resolução desfavorável ao capitão-general foi expedida pela coroa. Nela, “tomando em consideração a representação junta de d. Maria Bárbara da Silva e de seus filhos, que se queixam do governador de São Paulo”, o príncipe regente ordenava a sua imediata “remoção para sossego daqueles povos, e prevenir sucessos desagradáveis”.19

Assim, o longo conflito entre o governador de São Paulo e seus principais opositores chegava ao seu termo com a decisão régia de invalidar as medidas que restringiam a navegação mercante paulista e, especialmente, com a destituição de Franca e Horta da função de capitão-general. No entanto, apesar da significativa importância que o episódio assume para a compreensão do intrincado arranjo de interesses que permeavam a prática política e os negócios em São Paulo no período, os escassos estudos que trataram da controvérsia pouco se detiveram na elucidação de seus significados mais profundos.

Exemplo disso é a descrição formulada por Alberto Sousa (1922) em sua já citada obra. Ao tratar da trajetória pessoal de José Bonifácio e de seus irmãos, Sousa interpreta o embate entre a família e o governador paulista como expressão da “incompatibilidade radical de princípios e de doutrinas” que desde então já polarizava o “espírito renovador” característico dos Andrada e a postura “retrógrada” típica de um representante da metrópole portuguesa (Sousa, 1922, p. 447). Assim, o autor traça o perfil das personagens de modo que cada uma delas pareça encarnar em si as opiniões “divergentes” que culminariam anos mais tarde na proclamação da Independência:

[Antônio José da Franca e Horta] era um verdadeiro, um genuíno representante dos ideais políticos do passado, a personificação típica do absolutismo governamental, o defensor inabalável da ordem antiga, não permitindo nem relevando desrespeitosos ataques de quem quer que fosse contra as tradições estabelecidas. O jovem Andrada, ao contrário, sentia dentro d’alma o tumultuoso referver das novas aspirações derramadas pelo mundo; e no expô-las e defendê-las, com o ardor proselítico próprio de sua organização moral, não usava publicamente das cautelas recomendáveis em que exercia não pequena parcela de autoridade oficial na engrenagem da administração da capitania. Um era o passado, com todas as suas tendências autoritaristas; outro era o futuro, que se aprestava para as próximas campanhas em nome da Liberdade. (Sousa, 1922, p. 446-447, grifos nossos)

De outra parte, ao biografar José Bonifácio, Otávio Tarquínio de Sousa faz uma breve referência à polêmica entre o juiz de fora santista e o capitão-general de São Paulo a partir de outro prisma. Sem se deter nas circunstâncias que motivaram o incidente, o autor destaca o seu desenlace com o único propósito de reiterar a grande “influência e valimento de José Bonifácio junto ao governo português” (Sousa, 1972, p. 46, grifos nossos). Em suas palavras:

José Bonifácio estava havia vinte e quatro anos ausente do Brasil, de onde partira simples estudante. Mas tornara-se personagem respeitada, que Franca e Horta temia embora brigando com os irmãos. A prova da influência Andradina não tardou: o governador e capitão-general de São Paulo foi asperamente desautorizado, seus atos anulados, ordenada a partida do seu sucessor. (Sousa, 1972, p. 46-47, grifos nossos)

A despeito das particularidades de cada uma das abordagens, os trabalhos de Alberto Sousa e Otávio Tarquínio se assemelham na medida em que apresentam a polêmica instaurada entre os Andrada e o governador Franca e Horta como evento descolado de suas dimensões políticas e econômicas mais abrangentes. Por seu turno, quando analisados à luz da documentação do período, novos significados emergem do episódio, permitindo-nos compreender a arrastada contenda no âmbito das disputas e alianças forjadas entre negociantes e representantes do poder real interessados na exploração da produção de gêneros e no lucrativo comércio paulista.

Assim, tendo em vista as redes de negócio e de parentesco que articulavam a família Andrada com importantes grupos mercantis dentro e fora da capitania paulista, é possível supor que o antagonismo estabelecido entre os seus integrantes e o capitão-general expressava a contrariedade dos negociantes atingidos pelas determinações que impediam a livre navegação costeira entre São Paulo e as demais partes da colônia. Nessa perspectiva, quando se recusou a dar prosseguimento ao inquérito das autoridades de Paranaguá, Antônio Carlos de Andrada certamente levou em consideração os interesses particulares dos grupos associados à sua família, notadamente Brás Carneiro Leão que, conforme sublinhamos linhas atrás, era reconhecido pelo próprio governador como um dos negociantes que mais lucravam com o comércio de cabotagem realizado no litoral paulista.

“Infames” e “facciosos”: a família Andrada e a “bernarda” de Francisco Inácio

Embora o desfecho do embate contra o governador paulista tenha sido favorável aos Andrada, os representantes da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro estabelecidos em São Paulo continuaram a exercer grande influência política e econômica na região. Com efeito, após a transferência da corte para o Rio de Janeiro, em 1808, o comércio realizado entre a cidade do Porto e a vila de Santos adquiriu proporções ainda maiores. Entre os anos de 1813 e 1821, a Companhia do Alto Douro se consolidou como uma das principais compradoras de gêneros embarcados no porto santista, além de se destacar como uma importante fornecedora de manufaturas, ferragens, tecidos, vinhos e azeites consumidos na região (Mattos, 2019, p. 215). Nesse sentido, mesmo depois da decisão régia de abolir as restrições à navegação de cabotagem paulista em 1807 e do afastamento de Antônio José da Franca e Horta do governo da capitania, o controle do comércio realizado a partir do porto de Santos foi objeto de intensas disputas entre os grupos vinculados à Companhia do Alto Douro e negociantes concorrentes durante todo o período joanino, assumindo contornos mais graves às vésperas da proclamação da Independência, notadamente após a deflagração da “bernarda de Francisco Inácio”, ocorrida em maio de 1822.

A análise do conflito que envolveu diretamente José Bonifácio e, em especial, seu irmão, Martim Francisco, requer a apreensão das circunstâncias políticas em que se deu a instauração da junta provisória de governo de São Paulo, em meados de 1821. No âmbito do processo inaugurado pela revolução liberal do Porto, em agosto de 1820, a organização do governo provisório paulista só foi levada a cabo quatro meses depois que d. João VI jurou as bases da Constituição que estava sendo elaborada em Lisboa, e dois meses após a assinatura do decreto de 24 de abril de 1821, em que as Cortes Constituintes declaravam legítimos todos os governos “estabelecidos, ou que se estabelecerem nos Estados portugueses de ultramar e ilhas adjacentes, para abraçarem a sagrada causa da regeneração política da nação portuguesa”.20 Conforme Leme (2010), em São Paulo, a repercussão das notícias sobre o juramento à Constituição e as determinações das cortes recrudesceram os conflitos em curso desde o início do século, exigindo das forças políticas a composição de um governo capaz de conciliar os interesses divergentes e concorrentes dos negociantes, proprietários, arrematantes de contratos e comandantes milicianos da província.

Depois que “povo e tropa” saíram às ruas da capital paulista reivindicando a formação de um governo que estivesse em consonância com os “pressupostos do constitucionalismo”, a junta foi composta em 23 de junho de 1821 pelos representantes dos diferentes grupos que na época se enfrentavam: a presidência ficou a cargo de João Carlos Augusto de Oeynhausen, último capitão-general de São Paulo, enquanto a vice-presidência foi ocupada por José Bonifácio. Martim Francisco foi nomeado secretário do Interior e da Fazenda da província e, para os cargos de vogais da área do comércio, foram designados o brigadeiro Manuel Rodrigues Jordão e o coronel Francisco Inácio de Sousa Queiroz (Delatorre, 2003, p. 47; Medicci, 2010, p. 217-218).

Nos meses seguintes, a disputa entre os principais membros do governo da província precipitou o esfacelamento da junta paulista em 23 de maio de 1822, data da eclosão da “bernarda”.21 Assim que duas portarias determinando a retirada imediata do presidente João Carlos Oeynhausen e do ouvidor da comarca de São Paulo, José da Costa Carvalho, chegaram ao conhecimento da junta provisória, grupos liderados por Francisco Inácio destituíram Martim Francisco e Manuel Rodrigues Jordão dos respectivos cargos que ocupavam no governo da província.22 Em pouco tempo, as notícias sobre a “expulsão” de dois importantes membros do governo provisório e a recomposição da junta paulista chegaram à corte onde, desde o mês de janeiro daquele ano, José Bonifácio ocupava o lugar de ministro e conselheiro do príncipe d. Pedro.23 A partir de então, a ação conduzida por Francisco Inácio e seus aliados – entre eles o presidente Oeynhausen e o negociante Antônio Cardoso Nogueira – passou a ser designada por seus opositores como um movimento “faccioso” contrário à “causa do Brasil” e ao governo de d. Pedro no Rio de Janeiro (Delatorre, 2003, p. 167).

Por sua vez, de acordo com as pesquisas de Damasceno (1993), Delatorre (2003) e Bittencourt (2006), a “bernarda” estava diretamente relacionada ao acirramento da luta que os diferentes setores da sociedade paulista travavam na época pela hegemonia política e econômica da província. Em um dos lados do conflito estava o grupo liderado pelos irmãos Andrada, os quais, conforme mencionamos anteriormente, eram ligados desde fins do setecentos a poderosos negociantes radicados no Rio de Janeiro. Em São Paulo, os Andrada mantinham laços com alguns dos mais importantes homens de negócios da região, tais como Francisco Xavier da Costa Aguiar, Manuel Rodrigues Jordão e seu sobrinho, Antônio da Silva Prado (Amaral, 2006, p. 358).

Por seu turno, o grupo que se opunha aos irmãos Andrada era formado, em sua grande maioria, por negociantes que conservavam estreitas relações comerciais com o reino português, dentre os quais se notabiliza o coronel de milícias Francisco Inácio de Sousa Queiroz. Matriculado na Real Junta de Comércio desde 1813, Francisco Inácio herdou em 1819 alguns dos principais contatos que seu tio e sogro – o brigadeiro Luiz Antônio de Sousa – possuía com renomadas casas comerciais de Portugal (Marques, 1952, p. 285; Medicci, 2010, p. 220).

Segundo Bittencourt (2006, p. 330), as acusações sobre os vínculos entre Francisco Inácio e as cortes portuguesas se baseavam nas relações mercantis que o negociante preservava com a região duriense e, em especial, com a Companhia do Alto Douro. Assim, para os oponentes do negociante, os contatos comerciais estabelecidos com o reino eram suficientes para designá-lo como partidário dos grupos políticos de Portugal. Para a autora:

D. Pedro e aliados como Silva Lisboa haviam construído vigorosa argumentação contra as cortes e imputavam-lhes a intenção de “recolonizar” o Brasil. Assim, estar ligado às iniciativas emanadas de Lisboa representava um peso político, naquele momento, muito negativo, na posição que d. Pedro defendia. (Bittencourt, 2006, p. 330)

Não obstante as alegações que procuravam vinculá-la aos ideais “constitucionalistas” das cortes de Lisboa, a “bernarda” expressava a reação de setores paulistas contrários ao projeto separatista engendrado no Rio de Janeiro. Afinal, para Francisco Inácio e os demais negociantes que atuavam no comércio entre a província paulista e as praças portuguesas, a separação entre Brasil e Portugal significava a extinção das conexões com os correspondentes de Lisboa e do Porto, levando-os a disputar o competitivo mercado do Rio de Janeiro (Bittencourt, 2006, p. 331).

De fato, a correlação formulada por Bittencourt entre o movimento “bernardista” e a ação de importantes homens de negócios intimamente vinculados à exploração das rotas atlânticas que conectavam o porto de Santos ao reino de Portugal reforça-se ainda mais ao examinarmos a carta enviada pelo então ministro José Bonifácio ao príncipe d. Pedro, na ocasião em que ele se preparava para partir para a vila santista, em 5 de setembro de 1822. Em um dos trechos da missiva, o ministro alertava que

em Santos há um grande partido a favor das cortes de Portugal e contra V. A. R. que de mãos dadas com os bicudos de São Paulo pediram tropas de Lisboa para Santos, São Sebastião e Paranaguá, oferecendo uma contribuição voluntária para as despesas da expedição entram neste infernal conluio além de todos os bernardistas e infames de São Paulo um padre chamado José Inácio dos Santos, o meu célebre cunhado José de Carvalho, o coronel [Antônio José] Vieira e todos os mais mercadores e negociantes da mesma praça. Com as tropas que esperam propõem-se recrutar na província à custa da Companhia dos Vinhos e Comércio do Porto, de que são agentes os dois últimos nomeados. (Taunay, 1927, p. 70, grifos nossos)

Assim como aconteceu com Francisco Inácio e os demais líderes da “bernarda”, a associação entre os dois negociantes santistas e a Companhia do Alto Douro foi manipulada por José Bonifácio com o propósito de desestabilizar os grupos que se opunham às medidas tomadas na corte que “pudessem prejudicar suas atividades de comércio interoceânico” (Bittencourt, 2006, p. 350). Nesse sentido, ao acusar Vieira de Carvalho e José Carvalho da Silva de serem adeptos do “conluio infernal” do qual faziam parte os “bernardistas e infames de São Paulo”, o futuro “patriarca da Independência” procurava romper os nexos mantidos entre os negociantes da vila de Santos e da cidade do Porto, os quais, conforme destacamos anteriormente, foram desde a sua implantação, nos primeiros anos do século XIX, objeto de disputa e confrontos entre os interesses radicados em São Paulo, Rio de Janeiro e Portugal.

Considerações finais: prelúdio ao grito do Ipiranga

Com a carta de José Bonifácio em mãos, na madrugada do dia 5 de setembro, o príncipe regente e sua comitiva deslocaram-se da capital paulista rumo a Santos. Curiosamente, a visita à vila litorânea corresponde ainda hoje a um dos episódios menos conhecidos da viagem que d. Pedro empreendeu pela província de São Paulo entre os meses de agosto e setembro de 1822. Em seu clássico Quadro histórico da província de São Paulo, Machado d’Oliveira (1978, p. 286) afirmava que a viagem a Santos havia sido motivada pelo desejo do próprio príncipe regente em “visitar a família do seu amigo paulista José Bonifácio de Andrada”. Décadas mais tarde, Alberto Sousa (1922, p. 625) referia-se à “excursão de Santos” como a “parte mais lacunosa que existe na narração da visita de d. Pedro à nossa província”.

Por seu turno, a despeito da “omissão dos cronistas” e dos “escassíssimos documentos” existentes sobre a visita do príncipe regente, Sousa destaca que, além do “desejo de conhecer e cumprimentar a respeitável família dos Andrada”, d. Pedro reconhecia a “necessidade de verificar pessoalmente o estado das fortificações e as condições de defesa de Santos” (Sousa, 1922, p. 626). De fato, conforme indicações de Francisco Martins dos Santos (1986, p. 271), o príncipe regente inspecionou o arsenal, bem como alguns dos destacamentos responsáveis pelas fortificações da vila, entre elas os fortes de Nossa Senhora do Monte Serrate e de Vera Cruz de Itapema, ambos comandados na época pelo coronel Antônio José Vieira de Carvalho, um dos principais rivais da família Andrada.

Muito provavelmente, a advertência que José Bonifácio havia feito sobre o recrutamento financiado pela Companhia do Alto Douro de tropas favoráveis às cortes de Lisboa pesou na decisão de d. Pedro de examinar pessoalmente as instalações militares subordinadas ao negociante. Nesse sentido, a despeito das alegações do ministro contrárias a Vieira de Carvalho e à companhia duriense terem ou não algum fundamento, o encontro do príncipe regente com alguns dos mais ricos integrantes da comunidade mercantil santista foi decisivo para que d. Pedro assegurasse a sua autoridade, a partir do necessário apoio daquela importante praça do Centro-Sul brasileiro.

Embora rápida, a passagem do príncipe regente por Santos foi imprescindível para a consolidação da base de sustentação do seu governo. Afinal, logo após vistoriar as fortalezas, d. Pedro seguiu pelas ruas da vila de Santos acompanhado por um cortejo formado por camaristas, membros do clero e “comandantes das milícias locais e distintos cidadãos” até a igreja matriz, onde foi celebrado um Te Deum (Sousa, 1922, p. 629). No dia seguinte, em 6 de setembro, d. Pedro concedeu audiência pública e solene beija-mão às principais autoridades da vila, entre elas o próprio Antônio José Vieira de Carvalho. Assim, depois de asseverar publicamente a sua adesão ao príncipe regente, o negociante continuou a exercer a função de representante da Companhia do Alto Douro em Santos até outubro de 1822, quando, por determinação do governo imperial, a correspondência comercial entre o porto paulista e a barra do Douro foi completamente interrompida.24

Encerrava-se, assim, a longa disputa pelo controle do comércio marítimo realizado a partir da vila de Santos que, desde os primeiros anos do século XIX, opôs os grupos mercantis coligados ao clã dos Andrada e os negociantes empenhados na manutenção das linhas mercantis entre o litoral paulista e a cidade do Porto. Valendo-se do prestígio que desfrutavam junto à administração joanina e, posteriormente, da influência direta que exerciam sobre d. Pedro, José Bonifácio e seus irmãos habilmente empreenderam a defesa de seus interesses e dos setores mercantis que, na ocasião, aderiram ao futuro imperador, oferecendo o suporte, material e político, necessário para a consolidação da monarquia em terras brasileiras.

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Recebido em 21/2/2022

Aprovado em 27/4/2022


Notas

1    Sobre o entrelaçamento entre política e negócios na gênese da nação e do governo monárquico brasileiros, ver Oliveira e Marson (2013).

2    Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco – Arquivo Histórico Ultramarino. Relação dos ofícios referentes ao Estado da Fazenda que o governador e capitão-general da capitania de São Paulo, Martim Lopes Lobo de Saldanha, expediu, pela Secretaria de Estado da Repartição da Marinha e Domínios Ultramarinos [...]. 9/5/1781. AHU_ACL_CU_023-01, cx. 35, doc. 2975.

3    Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. Ofícios do capitão-general D. Luiz Antônio de Sousa Botelho Mourão – Morgado de Mateus (1765-1766). São Paulo: Gráfica João Bentivegna, vol. 72, 1952, p. 72.

4    Os discursos de “pobreza” e “decadência” da capitania de São Paulo em fins do século XVIII foram problematizados por Medicci (2010), Di Carlo (2011) e Mattos (2014).

5    Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. Correspondência recebida e expedida pelo general Bernardo José de Lorena, governador da capitania de S. Paulo, durante o seu governo (1788-1797). São Paulo: Duprat & Cia., vol. 45, 1924, p. 208. Grifos nossos.

6    Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. Ofícios do general Horta aos vice-reis e ministros (1802-1808). São Paulo: Editora Unesp, vol. 94, 1990, p. 17-18.

7    Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. Correspondência oficial do capitão-general Antônio José da Franca e Horta (1804-1806). São Paulo: Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, v. 56, 1937, p. 141.

8    Museu Paulista da Universidade de São Paulo (MP-USP). Andrada: alguns documentos que lhe são referentes, existentes no Arquivo de Marinha e Ultramar da Biblioteca Nacional de Lisboa. Notação: 037137, fl. 9.

9    Ibidem, notação: 037137, fl. 10.

10    Ibidem, notação: 037137, fls. 1-3. Grifos nossos.

11    Ibidem, notação: 037137, fl. 2.

12    Ibidem, notação: 037137, fl.2.

13    Ibidem, notação: 037137, fls. 2-3. Grifos nossos.

14    Ibidem, notação: 037137, fl. 18.

15    Ibidem, notação: 037137, fl. 18.

16    Ibidem, notação: 037137, fl. 20.

17    Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco – Arquivo Histórico Ultramarino. Provisão régia ao governo e capitão-general de São Paulo. 27/10/1806. AHU_ACL_CU_023, cx. 30, doc. 1322 (anexo).

18    Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. Correspondência oficial do capitão-general Antônio José da Franca e Horta (1806-1810). São Paulo: Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, vol. 57, 1937, p. 146.

19    Museu Paulista da Universidade de São Paulo (MP-USP). Andrada: alguns documentos que lhe são referentes, existentes no Archivo de Marinha e Ultramar da Biblioteca Nacional de Lisboa. Notação: 037137, fl. 13. Grifos nossos.

20    Coleção das Leis do Brasil. Decreto de 24 de abril de 1821. Declara legítimos os governos estabelecidos, ou que se estabelecerem nos Estados portugueses de ultramar, para abraçarem a causa da regeneração política. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, p. 9-10.

21    Segundo Monteiro (1927, p. 411), as conspirações militares eram chamadas de “bernardas” pelas tropas portuguesas no início do século XIX. A partir de então, o termo passou a significar de forma genérica todo movimento político promovido pelas armas.

22    Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. A “bernarda” de Francisco Inácio em São Paulo em 23 de maio de 1822. São Paulo: Cardozo Filho & Cia., vol. 1, 1913, p. 47-49.

23    Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. Correspondência do governo geral (1815-1822). São Paulo: Tipografia do Diário Oficial, vol. 36, 1902, p. 151.

24    A Junta da Fazenda de São Paulo confiscou em outubro de 1822 cerca de 22:900$000 réis em propriedades, ações e mercadorias pertencentes à Companhia do Alto Douro. Em 1825, quando diversos tratados bilaterais entre Portugal e Brasil foram firmados, parte desse valor foi finalmente devolvido aos acionistas da companhia duriense (Sousa; Pereira, 2008, p. 295-298).



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