Acervo, Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, set./dez. 2022

Independências: 200 anos de história e historiografia | Dossiê temático

O Centenário da Independência na Paraíba

Os usos do passado em tempos do governo Epitácio Pessoa

The Centenary of Independence in Paraíba: the uses of the past during Epitácio Pessoa's government / El Centenario de la Independencia en Paraíba: los usos del pasado durante el gobierno de Epitácio Pessoa

Luiz Mário Dantas Burity

Doutor em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Pesquisador da Fundação Casa de José Américo, Brasil.

marioburity@hotmail.com

Resumo

Na ocasião das comemorações do Centenário da Independência, o paraibano Epitácio Pessoa era presidente da República. Tratava-se da primeira vez que um civil nortista ocupava esse posto. O objetivo desse texto é discutir como políticos e intelectuais paraibanos agenciaram essa circunstância para destacar a importância da representação política nortista e dos investimentos nas obras contra as secas para o fortalecimento do sentimento nacional brasileiro.

Palavras-chave: Centenário da Independência; Epitácio Pessoa; usos do passado; Paraíba.

Abstract

On the occasion of the celebrations of the Centenary of Independence, Epitácio Pessoa, who was born in Paraíba, was president of the Republic. It was the first time that a northern civilian had held that position. The purpose of this text is to discuss how politicians and intellectuals from Paraíba used that circumstance to highlight the importance of northern political representation and investments in works against droughts for the strengthening of Brazilian national sentiment.

Keywords: Centenary of Independence; Epitácio Pessoa; uses of the past; Paraíba.

Resumen

En el momento de las celebraciones del Centenario de la Independencia, Epitácio Pessoa, nacido en Paraíba, era presidente de la República. Era la primera vez que un civil del Norte ocupaba ese cargo. El objetivo de este texto es discutir cómo los políticos e intelectuales de Paraíba manejaron la circunstancia para resaltar la importancia de la representación política del Norte y las inversiones en obras contra las sequías para el fortalecimiento del sentimiento nacional brasileño.

Palabras clave: Centenario de la Independencia; Epitácio Pessoa; usos del passado; Paraíba.

Introdução

As comemorações do Centenário da Independência na Paraíba, no começo de setembro de 1922, ocuparam os veículos de imprensa. No dia 7, os leitores e as leitoras do jornal O Norte puderam ver em sua primeira página um artigo sobre a emancipação política brasileira, ladeado por duas imagens – no canto direito, d. Pedro I aparecia com a inscrição “1822”; na margem esquerda, o presidente Epitácio Pessoa era representado com a marca “1922”. A disposição dos retratos sugeria, dessa forma, uma correspondência entre eles, quase como uma linha do tempo, na qual seria indicada uma continuidade entre um e outro na condução desse longo processo de formação de uma nação.

As nações, com a sua definição contemporânea, de acordo com Eric Hobsbawm (1990), surgem no mundo ocidental com o advento das revoluções burguesas do século XVIII – em particular da Revolução Francesa. Esse evento, a princípio localizado, conferiu um novo sentido para a participação política das pessoas comuns. O conceito de nação passou, então, a ser pensado como sinônimo de Estado, mas um Estado que se define a partir da vontade do povo. Nesse cenário, Benedict Anderson (2008) entende as nações como comunidades imaginadas. Elas se ancoram em narrativas que legitimam a existência de um sentimento de pertencimento ao Estado-Nação. Em grande medida, portanto, essas narrativas são constructos das instituições culturais que revisitam o passado de grupos humanos, constituindo os mitos de origem que justificariam as fronteiras sociais e políticas dos territórios.

As comemorações são momentos bastante propícios para a reafirmação e/ou revisão desses enredos. Nas palavras de Angela de Castro Gomes (2017, p. 55), “comemorar significa convocar o passado [...] para encená-lo e transformá-lo em ‘lições vivas’ de história, capazes de produzir coesão social e enquadrar memórias coletivas”. A ocasião dos cem anos era, assim, uma oportunidade para revolver as narrativas construídas desde muito tempo sobre o Brasil e sua gente e dar a elas nova direção – a solidificação da República, suas instituições e rotinas. Calhou que, nessa ocasião, o presidente em exercício era um paraibano, mais que isso, o primeiro civil nortista a ocupar o posto máximo do poder político no país.

A associação entre os dois personagens – o imperador e o presidente – foi repetida várias vezes nos periódicos, na composição dos ritos e nos discursos proferidos durante os festejos. Tratava-se de um uso do passado com propósitos políticos dos mais imediatos – destacar a relevância da condução do paraibano para a definição dos destinos da nação. Essa representação política seria, nessa perspectiva, essencial na defesa dos recursos para o desenvolvimento econômico dos estados do Norte. E isso deveria impactar, dizia-se, não apenas a vida dos habitantes dessa parcela do território, mas de toda gente, na medida em que, melhorando os índices da produção da região, o país ganharia em receita e civilização.

O objetivo deste texto é discutir de que maneira as comemorações do Centenário da Independência foram agenciadas por políticos e intelectuais paraibanos para destacar um lugar para os estados do Norte no pacto federativo que conduzia o regime republicano – sua representação política e sua parcela de investimentos no orçamento público federal. O corpus documental foi composto pelo jornal O Norte; a revista Era Nova; a mensagem do presidente do estado Solon de Lucena à Assembleia Legislativa da Paraíba em 1922; e o livro A Paraíba e seus problemas, publicado por José Américo de Almeida em 1923, que redimensionou esse enredo em contornos mais decisivos e duradouros.1

As comemorações do Centenário da Independência na Paraíba e o governo do presidente Epitácio Pessoa

Foi uma surpresa geral a eleição de Epitácio Pessoa como presidente da República em 13 de abril de 1919. Em se tratando do representante de um estado pequeno como a Paraíba – posto que dispunha de uma bancada com poucos deputados e, assim, sem grande poder de barganha na cena política nacional – era muito improvável que os líderes das unidades federativas maiores decidissem apoiá-lo. As circunstâncias, contudo, pesaram a seu favor. Rodrigues Alves, recentemente eleito para o cargo, faleceu antes de assumi-lo. As negociações para a escolha de um sucessor tiveram, desde então, de correr muito rápido. Os nomes mineiros e paulistas foram vetados pelo gaúcho Borges de Medeiros. Nilo Peçanha, do Rio de Janeiro, sugeriu Rui Barbosa. O senador baiano, porém, desagradava lideranças de vários estados. O ministro paraibano ressurgiu, em meio aos acordos, como um nome de conciliação, defendido pelo Rio Grande do Sul e que formou maioria com o apoio de Minas Gerais (Viscardi, 2001).

Epitácio Pessoa estava em viagem pela Europa, como representante do Brasil na Conferência da Paz, em Versalhes, quando teve notícia da escolha do seu nome e, depois, de sua vitória no pleito. Desembarcou no Rio de Janeiro dia 21 de julho e tomou posse no palácio do Catete uma semana depois.2 Os políticos paraibanos, apesar das disputas político-partidárias que os separavam em grupos opostos, baixaram a guarda e decidiram apoiar conjuntamente a liderança que ora emergia ao cargo máximo da nação. Era uma grande conquista. Tratava-se da primeira vez que um civil nortista – e mais exatamente um paraibano – ocupava a presidência da República (Trigueiro, 1980; Lewin, 1993).

A historiografia política sobre a Primeira República tem reafirmado a imagem de Epitácio Pessoa como um presidente fraco. A pequena bancada paraibana seria incapaz de oferecer as articulações necessárias para o chefe de Estado na Câmara. Nesse sentido, Cláudia Viscardi (2001) ressalta que a bancada do Rio Grande do Sul, em grande medida, foi a que respondeu por essa base de apoio. A constituição do ministeriado também ficou com os maiores estados – dois gaúchos, dois paulistas, um mineiro e um pernambucano. Os conflitos de interesses entre as bancadas, com acordos mal-arranjados durante a escolha do presidente, acabaram por se expressar na dificuldade de aprovar os projetos do Executivo. Conforme Jaqueline Zulini (2021), durante o seu governo, a maior parte das leis promulgadas tiveram origem no próprio Legislativo.

Apesar das circunstâncias, a presença do paraibano na Presidência da República abria oportunidade para a manifestação de antigas demandas das elites nortistas na arena política nacional. Nesse quesito, entre as medidas mais polêmicas tomadas pelo governo Epitácio Pessoa, segundo Lúcia Guerra Ferreira (1993), estavam os recursos destinados às obras contra as secas. Elas correspondiam aos esforços para a construção de açudes, mas também em um empenho pelo desenvolvimento econômico e pela modernização da região, que contava com a construção e reforma de estradas de ferro, de rodagem e carroçáveis, bem como dos portos, telégrafos e correios. Essa pauta fora alvo da atenção de outros presidentes, como Nilo Peçanha e Delfim Moreira, mas foi Epitácio Pessoa o primeiro “a investir em larga escala e iniciar simultaneamente um grande número de obras na região” (Ferreira, 1993, p. 96).

A determinação do governo federal de destinar parte do orçamento para as obras contra as secas, de acordo com a mesma autora, afetava os interesses de outras bancadas na Câmara – em particular os produtores de café, que reivindicavam subsídios cada vez maiores – gerando disputas no plenário. Os recursos destinados ao Norte, diziam os deputados e a imprensa paulista, estariam sendo desviados por suas elites – discussão, inclusive, que lhes renderia a pecha de “indústria da seca”. Esses embates no entorno do orçamento público traziam em seu ensejo disputas de narrativas da história nacional. Ao passo que intelectuais nortistas apontavam a importância da região para a nacionalidade, os paulistas se acreditavam os mais preparados para guiar o país no caminho da modernidade e da civilização.3

Foi em meio a essas disputas de narrativa – sobretudo ao esforço do presidente e de seus conterrâneos para afirmar uma agenda de modernização para os estados do Norte – que se deram os preparativos para os festejos do Centenário da Independência do Brasil. Era uma boa oportunidade para revisitar o passado e construir sobre ele novos territórios. Assim, as comemorações foram cuidadosamente arquitetadas por instituições públicas e privadas em todo o país, assumindo vieses peculiares em cada localidade onde se realizaram. Ao passo em que, na capital federal, a grande tônica era apresentar a grandiosidade dessa nação que ora completava um século, mas sob a égide de um novo regime, mais moderno e eficiente, com um futuro promissor pela frente; nos estados, os discursos atendiam às estratégias políticas e culturais dos intelectuais que organizaram o calendário dos eventos e a edição dos periódicos.

A cidade do Rio de Janeiro foi palco da Exposição Internacional do Centenário. O evento qualificava-se, segundo Marly Motta (1992), como uma “vitrine do progresso”. Espelhava-se, para isso, no exemplo das grandes mostras que haviam sido montadas, no século anterior, por ocasião dos cem anos da Independência dos Estados Unidos (1876) e da Revolução Francesa (1889). Em ambos os casos, a oportunidade de revisitar os marcos fundadores da nacionalidade abria espaço para descortinar perspectivas de futuro com a apresentação do que havia de mais moderno no mundo – na arquitetura, nos meios de comunicação e transporte etc. Nos salões cariocas, a natureza, a tecnologia e a população brasileira eram redescobertas com ferramentas da ciência. Foram realizadas conferências, publicados dicionários, mapas e livros comemorativos. Na ocasião, deu-se a primeira transmissão de rádio em território nacional, com discurso proferido por Epitácio Pessoa. Uma estação de rádio foi montada no alto do morro do Corcovado e oitenta receptores instalados nas ruas onde estavam os pavilhões (Motta, 1992).

A Paraíba se fez representar nessa grande mostra constituída na capital federal. Na mensagem à Assembleia Legislativa, em 1º de setembro de 1922, Solon de Lucena contava que foram destinados cem contos de réis do orçamento estadual para os festejos do Centenário da Independência. Metade desse montante foi remetido ao Rio de Janeiro, como contribuição na arquitetura monumental e como condição para manter um stand no palácio das Indústrias – ainda em construção – em que seriam apresentados os “mais de mil” produtos da unidade federativa: “sobressaindo alguns minérios, fibras e óleos vegetais, bem assim tecidos, peles, instrumentos de ferro, trabalhos de arte doméstica, que podem oferecer uma nota decente das nossas posses naturais e da nossa promissora cultura industrial” (Lucena, 1922, p. 8).

É possível inferir que, em meio ao empenho comum dos presidentes dos estados para evidenciar as unidades federativas sob seus comandos nos festejos que contornavam uma data magna para a nação, Solon de Lucena almejava uma posição mais notável, usando para isso a ideia de que o presidente da República era um paraibano. Havia nas páginas de seus relatórios, e em todos os materiais que então se produzia, um orgulho ora declarado, ora implícito de ter o conterrâneo, aliado e amigo nessa destacada posição. Mais do que isso, estabeleceu-se quase que um compromisso em tornar o pequeno estado – como dizia-se nas leituras da representação política nacional – o mais notório possível, o que era uma maneira de celebrar a figura de seus políticos e, sobretudo, fortalecer a imagem de Epitácio Pessoa às vésperas do término de seu mandato. Esse mesmo desejo, diga-se de passagem, se faz perceber na forma como foram organizados os festejos que ocuparam as ruas da capital e do interior.

Os preparativos das comemorações que teriam vez nos municípios da Paraíba foram anunciados ao longo de todo o ano nos periódicos. Fabrício de Sousa Morais (2007) conta que diversas notas foram publicadas no jornal A União com o intuito de antecipar o espírito da população e conclamar a sua participação nos festejos. Uma campanha para arrecadação de fundos para cobrir os custos das efemérides era constantemente noticiada e os nomes dos contribuintes, publicitados. Essa folha foi certamente o órgão de imprensa que dedicou maior atenção ao evento. Em se tratando de um veículo mantido pelo estado, seus editores e redatores tinham uma afinidade política e intelectual com o presidente Solon de Lucena, garantindo um alinhamento em relação à montagem das celebrações e, nesse ínterim, das narrativas que se pretendia conduzir a partir dele.

Na Paraíba, foram sete dias de festa, com grande circulação de pessoas pelas ruas da capital. Os estudantes hastearam a bandeira, cantaram o hino nacional e ouviram dos professores discursos sobre a importância da data. Um destaque, em meio a tudo isso, foram as comemorações no Grupo Escolar Epitácio Pessoa, que havia sido inaugurado quatro anos antes e levava o nome do presidente como patrono. Na ocasião, conforme Genes Duarte Ribeiro (2017), um retrato dele envolto pela bandeira do estado foi afixado no pátio onde os discentes assistiram a uma palestra. No dia seguinte, escolares foram reunidos em uma grande passeata nas principais vias do centro, acompanhados por quatro filarmônicas militares. O desfile contava, por meio dos estandartes que os alunos e as alunas empunhavam na frente de cada ala, uma história da Independência do Brasil.

As bandeiras e os andores constituíam, em sequência, um enredo: a bandeira da cruz de Malta simbolizava o Descobrimento, em 1500; a esfera manuelina representava o reino de Portugal; a bandeira da Inconfidência Mineira, de 1789; a imagem de Tiradentes; a bandeira das quintas portuguesas, lembrando a vinda da família real no ano de 1808; a bandeira do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, de 1815; a bandeira da Revolução de 1817; o busto de José Bonifácio e – ponto que merece maior atenção – o carro alegórico com os retratos de Epitácio Pessoa e d. Pedro I. Nessa ocasião, ladeavam o presidente os estudantes da escola secundária de maior prestígio – o Liceu Paraibano. Finalmente, era trazida a bandeira do estado da Paraíba. A marcha encerrava com uma recepção no Clube Cabo Branco (Ribeiro, 2017).

Nos dias que se seguiram, competições desportivas tomaram os campos e as ruas da cidade. O time de futebol do Clube Cabo Branco realizou uma partida contra a embaixada esportiva de Natal; foi pleiteada uma corrida do palácio do Governo à praia de Tambaú; escolares do Colégio Pio X fizeram demonstrações de esgrima na rua General Osório; foram realizadas disputas de salto com vara, em altura e em distância. O Clube do Remo promoveu exposições náuticas no rio Sanhauá – nas proximidades da localidade onde se realizavam as obras do porto – e competições de nado animaram as torcidas. Banquetes e soirées foram oferecidos aos atletas e transeuntes. Nesse meio tempo, reuniões foram realizadas em instituições culturais – Liceu Paraibano e Instituto Histórico e Geográfico Paraibano. Apresentações musicais e dramáticas tiveram vez no Teatro Santa Rosa; à noite, foram promovidos bailes no Clube Astréa (O Norte, 3 set. 1922, p. 2; O Norte, 5 ago. 1922, p. 2).

O parque Arruda Câmara e o jardim público, na praça Comendador Felizardo, receberam decorações auriverdes e apresentações musicais em memória da imperatriz Leopoldina, personagem feminina fundamental do processo de emancipação do Brasil. Na mesma ocasião, acadêmicos homenagearam Solon de Lucena (O Norte, 6 ago. 1922, p. 2). O dia 7 de setembro, no entanto, deveria marcar o ponto alto das comemorações. Ficou para esse dia o lançamento da pedra fundamental das obras da praça da Independência, em uma das pontas do centro da cidade, a mais próxima em direção à praia, de onde seria aberta, anos depois, a avenida Epitácio Pessoa. Solon de Lucena explicou, em sua mensagem aos deputados, que destinara recursos para aquisição do terreno e edificação do monumento que iria compor o passeio: “um vasto quadrilátero, cujo nome relembre o feito da Independência e onde um obelisco de pedra sustente inscrições adequadas em bronze”. As obras ficaram a cargo do prefeito da capital, Guedes Pereira, que pessoalmente teria doado alguns metros quadrados de uma propriedade sua na localidade para compor as dimensões necessárias ao campo que se pretendia construir, com oito linhas retas convergindo para o centro (Lucena, 1922, p. 9).

Houve uma missa campal, às 7 horas, ao pé do cruzeiro da igreja de São Francisco. O oficiante foi o arcebispo d. Adauto de Miranda Henriques, acompanhado de muitos dos monsenhores da mais alta hierarquia eclesiástica estadual. Foi organizada uma parada militar. O hino nacional foi executado ao nascer e ao pôr do sol, com hasteamento da bandeira, no quartel do 22º Batalhão de Caçadores. Às 10 horas, soldados estavam a postos na nova praça para a revista do presidente do estado Solon de Lucena; em sequência, fizeram um passeio pelos bairros. Duas outras festas encerraram o calendário comemorativo. Um concerto de música clássica do tenor italiano David Brillantini, acompanhado pela pianista mademoiselle Zulmira Botelho, foi oferecido para a elite da cidade e um outro para a população em geral nas ruas. Festejos também foram registrados nas cidades do interior. Os editores do jornal anotavam: “A Paraíba não pode desvanecer-se de ter dado a mais alta nota de civismo no Nordeste” (O Norte, 12 set. 1922, p. 1).

As comemorações também ocuparam os espaços de maior destaque na imprensa do estado. O texto de abertura de O Norte, em 7 de setembro de 1922, trazia a assinatura do escritor norte-americano Langworthy Marchant, apresentando os “feitos memoráveis de um século de Independência” – ele começava, assim, no Grito do Ipiranga e terminava com a emergência da República. Nesse enredo, eram apresentados os personagens e os eventos considerados por ele os mais relevantes para a história nacional. Por ser um autor estrangeiro traduzido copiado no impresso, pouca margem foi dada nesse ensaio à Paraíba – uma breve menção foi feita à Revolução de 1817, mesmo assim fazendo referência ao protagonismo dos pernambucanos. Os editores do jornal, contudo, não deixaram passar, inseriram a fotografia do presidente na capa e, no final do artigo, um nada despretensioso post scriptum:

Ao sr. presidente Epitácio Pessoa pertence o grande privilégio de fechar a porta de bronze e dar volta à chave de ouro sobre o primeiro século da independência brasileira no meio das aclamações unânimes do mundo. Ao mesmo tempo ele gozará do não menos alto privilégio de abrir aquela outra porta que dá para a realização transcendental dos destinos do Brasil no século a seguir. Mas a glória refletida que cobrirá o presidente Pessoa nessa ocasião não diminuirá de modo algum o ilustre dos muitos e iminentes serviços que constituem a sua feliz contribuição para o tesouro geral dos feitos memoráveis do século. (O Norte, 7 set. 1922, p. 2)

Imediatamente em sequência ao texto do escritor norte-americano, na segunda página do mesmo periódico, quase que como um esforço de olhar para dentro, foi impresso o artigo “Dentro de um século”, em que Coriolano de Medeiros observava a trajetória da Paraíba de 1822 a 1922 – não sem antes citar, ainda que brevemente, a Revolução de 1817 – destacando o seu lugar na história nacional.

Os cem anos marcariam, assim, a fronteira entre o passado e o futuro da nação. Epitácio Pessoa, nessa conta, tivera o “privilégio”, como o texto demarca, de selar o final de um ciclo e dar início a outro. Mas não se tratava de uma figura qualquer. Muito mais do que um homem que circunstancialmente ocupava a Presidência da República, ele seria a figura certa, quase que necessária, para conduzir essa transição entre o que a nação foi e o que ela viria a ser – um continuador da obra de d. Pedro I, mas também um promotor de novos projetos, que apontaria a direção do novo século. Instituía-se, dessa maneira, uma cronologia que prezava pela continuidade entre os regimes políticos colonial, imperial e republicano, como se correspondessem aos três tempos de um longo processo civilizatório ainda em curso. A próxima etapa seria aprofundar a experiência republicana e federativa – o presidente paraibano era uma marca disso, fazendo valer uma representação política nortista na cena pública nacional.

Esse enredo construído para ressaltar ou inventar as continuidades em detrimento das rupturas foi um tópos comum na virada do século. Angela de Castro Gomes (2009), nesse sentido, explica que o desafio dos historiadores na República – sobretudo dos sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – era construir marcos fundadores do novo regime sem abdicar totalmente da narrativa que fundou e garantia a permanência de uma unidade nacional para o território brasileiro. Afinal de contas, “periodizar, nomear um ‘tempo’ é um ato de poder” (Gomes, 2009, p. 21). Ao construir sentidos para o passado, conforme Eric Hobsbawm (1998), lançamos perspectivas de futuro, priorizamos eventos, atores e atrizes em detrimento de outros, dimensionamos prioridades para uma nação. Nesse caso em discussão, o esforço é destacar um marcador de região como arcabouço fundamental para o desenvolvimento do país.

Mas não era qualquer região, isso é importante de se demarcar. Falava-se do espaço mais densamente ocupado em tempos coloniais e que primeiro teria rendido bons frutos para a metrópole; de uma gente que pegara em armas para expulsar os holandeses; e, um século e meio depois, lutara pela emancipação na Revolução de 1817. O repertório para a composição desse enredo estava tomando assento nas discussões e publicações do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, fundado em 1905. Margarida Dias Oliveira (1996) ressalta como os paraibanos reivindicaram seu protagonismo nesses eventos, principalmente no conflito separatista, destacando o heroísmo do último cavaleiro a entregar suas armas, que teria assim se sacrificado pela Independência – Peregrino de Carvalho. Nesse caminho, os festejos petrificavam a ideia de que o almejado desenvolvimento e a modernização brasileira também não se fariam possíveis sem a contribuição dos nortistas. Coriolano de Medeiros, nesse sentido, escrevia:

A Paraíba vive por si mesma graças às suas riquezas naturais, ainda de incipiente exploração a sua agricultura, sendo difícil calcular-se até onde se elevará sua prosperidade, tendo nos quinze últimos anos feito mais por seu progresso do que em três séculos de existência.

E assim não é de admirar que a capitania que o ocupou por seu florescimento nos tempos coloniais o terceiro lugar, chegue um dia a colocar-se ao lado dos primeiros no Estado do Brasil. (O Norte, 7 set. 1922, p. 2)

Os esforços para destacar o presidente Epitácio Pessoa em meio às narrativas que construíam sentidos para a história da Independência, contudo, nem sempre seguiram esse mesmo repertório. Um artigo publicado dias antes, escrito por Théo Filho, ao invés de inseri-lo na linha do tempo, comparava-o a um personagem fundamental da emancipação, o regente Diogo Feijó: “Ambos lutaram contra a demagogia, ambos tiveram de fazer frente ao perigo do militarismo, ambos consolidaram o prestígio da autoridade” (O Norte, 30 ago. 1922, p. 1). Também é importante atentar que nem todos os discursos proferidos na Paraíba naquela ocasião citaram o então chefe de Estado. Mas a constância com a qual isso se deu, assim como a disposição dos retratos nas primeiras páginas dos periódicos, afixados nos prédios e nos estandartes dos desfiles, fez com que essa fosse uma presença inescapável aos transeuntes e leitores que vivenciaram as comemorações no estado.

Mas havia uma outra presença, igualmente destacada no cenário das cidades e, principalmente, na imprensa, que remetia diretamente à figura do presidente da República – as obras contra as secas. A terceira página do jornal O Norte, no dia do centenário, esteve dedicada exclusivamente a esse tema:

Quase que se pode dizer que os serviços contra as secas têm, na Paraíba, a mesma idade, datam da mesma época do fenômeno climático que visam combater. Nunca houve, porém, propriamente, luta contra as estiadas, mas medidas de ocasião para lhes minorar o efeito, medidas de emergência, em socorro a flagelados.

[...] A investidura do sr. dr. Epitácio Pessoa à presidência da República trouxe a todos nós a esperança de que algo se iria fazer contra o mal periódico, que, vez por outra, nos assola, esgotando não só as energias do erário e da fortuna particular como diminuindo a nossa população, a nossa reserva de braços pela morte e pela imigração. (O Norte, 7 set. 1922, p. 3)

Fotos da construção dos açudes, abertura de estradas e, principalmente, das obras do porto pululavam nas páginas do periódico, nos espaços mais inusitados, muitas vezes sem que necessariamente um texto as acompanhasse. Se essa era uma tônica geral daqueles anos, ela se fez ainda mais constante durante os festejos, num esforço para demarcar os feitos do governo Epitácio Pessoa, mas também como entendimento de que o empreendimento fazia parte da história da nação. Ainda no dia 7 de setembro, às 11 horas, em meio ao fervor comemorativo, estava agendada a aposição do retrato do ministro de Viação e Obras Públicas no 4º Distrito das Obras Contra as Secas (O Norte, 7 set. 1922, p. 2).

É válido registrar que Oscar Soares, proprietário e orientador do jornal O Norte, como o periódico então o apresentava, era deputado federal pela Paraíba, do grupo aliado ao presidente da República. Nessa medida, podemos pensar como essa folha se alinhava ao programa comemorativo do governo. A revista Era Nova também tinha compromissos com o estado – e por consequência com o poder político. Os editores e redatores do magazine eram, via de regra, membros do partido situacionista e, em sua maioria, ocupavam cargos de destaque como funcionários públicos. Essa relação estreita, diga-se de passagem, foi imprescindível para que fosse possível imprimi-lo e colocá-lo em circulação. Tratava-se de um projeto caro – uma revista ilustrada, em papel couché, colorida e com um design moderno. A máquina estadual arcou com a maior parte dos custos ao permitir que as tiragens saíssem pela tipografia oficial.

A revista Era Nova preparou um número comemorativo para a ocasião das festas, embora o volume só tenha ficado pronto, de fato, alguns meses depois.4 A arte da capa (Figura 1) insistia na correspondência entre os anos 1822 e 1922, inscrevendo o título da revista no centro, acima do nome do estado “Parahyba do Norte” e do seu brasão, abaixo de uma imagem em que se fazia representar um jardim e, mais ao fundo, um prédio – provavelmente o jardim público da praça Comendador Felizardo e o edifício da Escola Normal, localidade onde se montou o pavilhão do Centenário. O projeto editorial da revista, em sua sequência, construía uma narrativa a respeito dos festejos. Após as páginas com as propagandas do comércio local, José Américo de Almeida assinou o artigo de abertura do periódico “A Independência na Paraíba” (Figura 2).


Figura 1 – Capa da revista Era Nova na edição comemorativa do Centenário da Independência. Fonte: Era Nova, 7 set. 1922, capa



Figura 2 – Página do artigo “A Independência na Paraíba”, de José Américo de Almeida. Fonte: Era Nova, 7 set. 1922, p.2


Tendo se ocupado em narrar a participação da então capitania na Independência, o autor ponderou sobre os eventos que marcaram o ano de 1822: “Não fomos indiferentes à ideia emancipadora, mas não tivemos, no momento, uma atuação notável na marcha dessa aspiração geral, como outros centros que estavam ao contato da propaganda”. Citou alguns eventos como a ação do paraibano Arruda Câmara no Areópago de Itambé e um manifesto de solidariedade da população da Vila Nova da Rainha ao imperador, por intermédio de José Bonifácio. Mas, se em vez de entender a emancipação como o evento do Grito do Ipiranga, pudéssemos pensá-lo como um processo mais longo, dizia, o cenário que se apresentava era outro. Nesse caso, “nossa contribuição foi valiosa; foi das maiores que precipitaram o desfecho patriótico” – e destacou o protagonismo dos conterrâneos na Revolução de 1817 (Era Nova, 7 set. 1922, p. 25).

A sessão subsequente, intitulada “Parahyba do Norte”, esteve dedicada a exaltar, mais uma vez, as possibilidades econômicas e culturais dessa unidade federativa do país. Enquanto isso, na página ao lado, uma imagem (Figura 3) homenageava Epitácio Pessoa. O retrato aparecia no centro da montagem, ladeado por uma figura feminina, desenhada em preto e branco, erguendo uma coroa de louros sobre a cabeça do presidente. Seria possível associá-la a Marianne, figura símbolo da República? É possível, mas não temos o barrete frígio que a remetia à Revolução Francesa. Em todo caso, ela sopra uma corneta, decerto anunciando os novos tempos. Abaixo de ambos, uma locomotiva e um navio a vapor indicavam o progresso. A ilustração fazia alusão, portanto, ao projeto modernizador das obras contra as secas, o qual estava circunscrito – ao menos era essa a tônica dos discursos – como principal frente de ação no programa de investimentos do presidente na região.



Figura 3 – Representação de Epitácio Pessoa na revista Era Nova. Fonte: Era Nova, 7 set. 1922, p.27

Os textos subsequentes que compuseram o volume deram sequência a esse enredo. Em “A promessa”, Carlos Dias Fernandes tratou da participação política de José Bonifácio nas negociações que culminaram no Grito do Ipiranga; no artigo “O Amazonas”, Danilo Armond contou uma breve história da colonização dessa região, primeiro pelos bandeirantes em busca de ouro, depois para a exploração do látex, e os muitos problemas sociais e econômicos que os deslocamentos provocavam; o monsenhor Pedro Anísio escreveu “A escola e o nacionalismo”, em que tratava da importância das comemorações no calendário escolar. Outros textos relataram a história da Independência; uma matéria de várias páginas deu notícia dos festejos do centenário no estado; poesias retrataram o sentido da data e, ao longo da revista, fotografias das festas ilustravam as páginas. No mais, homenagens foram feitas ao presidente Epitácio Pessoa, contando sua trajetória – nascimento, formação, cargos públicos que ocupou e atuação política até alcançar a Presidência da República –, assim como a seu sucessor, já eleito, Artur Bernardes, e ao presidente do estado Solon de Lucena (Era Nova, 7 set. 1922).

Uma última e volumosa parte da edição especial do Centenário da Independência também foi dedicada às obras contra as secas, com 43 páginas, algumas inteiramente tomadas de fotografias dos açudes, do porto e das estradas em construção:

O advento do governo de Epitácio Pessoa trouxe para a região nordestina, esquecida e assolada pelos fenômenos climáticos, a certeza de que uma nova fase ia começar para a sorte dessa gente, sucumbida a esse martirológio de muitos anos.

Efetivamente, essa esperança se objetivou na mais consoladora das realidades, porque a redenção do Nordeste, com a extinção definitiva do flagelo aniquilador, é hoje um fato.

E, no momento de comemorarmos o centenário de nossa Independência política para as populações atingidas por esse mal, nada podia ser mais grato quanto ver tornado uma coisa positiva esse problema, uma obra de patriotismo e abnegação (Era Nova, 7 set. 1922, p. 219).

As comemorações abriram um leque de possíveis narrativas para a história nacional, algumas com maior e outras com menor destaque na cena geral. Nas ruas e nos periódicos da Paraíba, articulados a um projeto amplo de projeção do estado na arena política do país, montado a partir da chefia do presidente do estado Solon de Lucena, prevaleceu o enredo que pensava a nação como uma longa construção – iniciada em tempos da colonização, que tivera no Império uma etapa indispensável, mas que se coroava com a República. Nessa estrada, os paraibanos teriam um papel fundamental, devido ao heroísmo e às possibilidades da terra. A importância de Epitácio Pessoa, nesse sentido, era dupla – além de representar os valores e as potências de um homem nascido nessa localidade para o bem de todo o país, ele estaria fazendo justiça ao povo do Norte, investindo na próspera economia da região e, com essa visão, alargando as possibilidades de desenvolvimento do Brasil, que nessa data simbólica se abria para o futuro.

A publicação do relatório A Paraíba e seus problemas (1923): as obras contra as secas e a emancipação das populações do Norte

Nos meses que sucederam os festejos do Centenário da Independência do Brasil, que coincidiram com o término do mandato de Epitácio Pessoa – dia 15 de novembro –, o presidente do estado Solon de Lucena decidiu seguir as homenagens com a preparação de um relatório que atestasse como a gestão do conterrâneo na Presidência da República impactou a vida da população da Paraíba. A proposta não só deveria render bons frutos para a imagem de ambos, como seria material estratégico para a ação política nacional, por meio do qual seria possível atestar, com informações de pesquisa empírica – em um tempo que a ciência ganhava um espaço cada vez maior como saber capaz de explicar o mundo –, a importância das obras contra as secas no desenvolvimento social e econômico da região. Pensando assim, convidou dois intelectuais do circuito literário paraibano, habilidosos com temas históricos e sociológicos, afinados com os propósitos do governo, para realizar a tarefa – Celso Mariz e José Américo de Almeida.

As pesquisas tiveram início em novembro de 1922. Na ocasião, os dois escritores tomaram um carro em direção ao interior do estado numa viagem de caráter exploratório. O propósito era mapear a geografia da região e observar in loco o impacto das estiagens nas diferentes formações geológicas e de organização social. Assim, as paradas incluíam as obras contra as secas – sobretudo os açudes e estradas –, mas também os acidentes geográficos como o pico do Jabre, que não subiram, mas puderam ver da serra de Teixeira. Ao longo do caminho, encontraram algumas surpresas, como um grupo de tropeiros de algodão que seguiam em direção a Campina Grande: “Colhemos a impressão do centro dos grandes melhoramentos. Por toda a parte, até nos pontos mais segregados da vida civilizada, se mudava a feição primitiva” (Almeida, 1980, p. 37).

O retorno foi tempo de pesquisas na bibliografia e nos arquivos, sobretudo nas coleções privadas, devido à dificuldade de acessar documentos nas repartições públicas. Celso Mariz, nessa altura, desligou-se do compromisso devido a uma demanda dos jornais para que escrevesse outro livro – A Paraíba no parlamento nacional. José Américo, assim, continuou sozinho. Leitor de Euclides da Cunha, impressionado com as notas sociológicas do livro Os sertões, mas também de uma bibliografia sobre miscigenação e eugenia, o autor tinha duas variáveis constantes em seu diário de bordo – as questões geográficas e raciais. Era sua tarefa entender como se deu a formação racial da população paraibana e de que maneira aquele grande empreendimento modernizador e civilizatório, como ele qualificava as obras contra as secas, teria impactado o destino dessas pessoas.

O resultado de um ano intenso de trabalho foi o livro A Paraíba e seus problemas, com mais de setecentas páginas, publicado em 1923. José Américo de Almeida defendia que as secas não eram um fenômeno meramente climático, mas produto de um descaso histórico do poder público com uma parcela importante e, sobretudo, fértil de seu território e de sua gente. As tragédias climáticas, afinal de contas, não eram exclusividade do Norte – como se via nas inundações de São Paulo, nas ondas geladas e chuvas elétricas de certas regiões dos Estados Unidos – e as obras hidráulicas foram recorrentes na história do mundo desde as primeiras organizações sociais sedentárias:

Entrando nessa convicção, o sr. Sampaio Correia assegurou, com a consciência de seu valor profissional, abeberado em elementos positivos: “O nordeste brasileiro, ao contrário do que em geral se supõe, apresenta tais condições de clima e de solo, que as obras reclamadas pelos seus habitantes jamais poderão ser consideradas como de mero socorro público; constituirão, de preferência, serviços de desenvolvimento econômico”. (Almeida, 1980, p. 157)

O povo nordestino, portanto, não seria “inconstante, volúvel e sem ambição”, como dissera Paulo Morais de Barros, mas “experimentado lutador” e “incessantemente laborioso” (Almeida, 1980, p. 44-45). Ele seguia, dessa maneira, o argumento mais famoso de Euclides da Cunha no clássico Os sertões, conforme o qual “o sertanejo é, antes de tudo, um forte” (Cunha, 2009, p. 95). Fazia mais, usava-o como metodologia, como podemos notar no sumário. Nos primeiros capítulos, “Terra ignota” e “O clima”, fez uma descrição das condições geográficas do estado. Em “O martírio” e “O abandono”, tratou da psicologia racial dessa gente e suas potências. Nesse momento, o autor andava fascinado com a obra de Oliveira Viana. E citou alguns dos seus livros, a exemplo de Populações meridionais no Brasil (1920) e Pequenos estudos de psicologia social (1921). Mas surpreende notar o caso de Evolução do povo brasileiro (1923), publicado naquele ano de 1923 e já lido e usado na análise.

Era com essa perspectiva que compreendia os efeitos da miscigenação na psicologia das populações brasileiras. Essa conta se baseava na ideia de que haveria uma hierarquia entre as raças, em que pessoas negras estariam em um estágio civilizacional anterior ao dos indígenas e estes, ao dos brancos e brancas. Mas ia além disso, o escritor fluminense defendia que a mistura das raças poderia resultar em melhores ou piores grupos, capazes de uma maior ou menor adaptação às diferentes formações geográficas. José Américo então concluía, com orgulho e baseado em toda uma tradição intelectual eugenista, que a população paraibana tinha uma boa formação racial. Seria produto da mestiçagem prioritária de gente branca e indígena, com poucos casos de “degeneração”. Tratava-se de um “ambiente saneável”, que teria outro destino se o estado empreendesse os investimentos necessários:5

A população sertaneja é quase toda clara. Parece que, além de tudo, sempre se forrou ao recruzamento com o africano, por essa repugnância que caracteriza o índio. É tão clara, até nas classes inferiores, que não pode constituir os “caribocas puros”, apresentados por Euclides da Cunha como tipo normal desse povo. (Almeida, 1980, p. 524)

O autor também se interessou em apresentar, por meio dessas descrições, as peculiaridades da formação morfológica e climática da região, e desmentir, com isso, uma máxima muitas vezes repetida no parlamento e opinião pública. Dizia-se que a população cearense seria a mais drasticamente assolada pelas secas, o que teria tornado o Ceará alvo prioritário dos investimentos do Estado. José Américo defendia que, apesar da porção de várzea e brejos, as terras paraibanas também foram cenário para verdadeiras tragédias. Ele narrava, dessa forma, com certa dose de dramaticidade e tomado de recursos literários naturalistas, a história dos migrantes famintos e doentes que deixavam crianças e idosos pelo caminho e invadiam as cidades. Os socorros montados de maneira improvisada nos corredores dos mosteiros, das escolas e das Santas Casas não eram capazes, portanto, de dar conta das demandas por saúde e assistência social, de modo que o caos se instalava. Era assim, aliás, que ele explicava a incidência dos casos de banditismo, consequência da ausência da ação efetiva do Poder Judiciário. Também era nas estiagens que aumentavam os casos de estupro – “infundiam as perversões sexuais” (Almeida, 1980, p. 196).

Em outras palavras, o argumento central do livro era que as condições naturais e as características raciais da população do estado forneceriam potencialidades para o seu desenvolvimento social e econômico, mas que a ausência histórica de investimentos por parte do poder público na região minava suas possibilidades de progresso. As estiagens, no final das contas, seriam resposta do pouco espaço que políticos nortistas, em particular os paraibanos, tiveram no poder central ao longo da história. Devido a isso, a eleição de Epitácio Pessoa teria se mostrado como um divisor de águas no tratamento do problema das estiagens e, consequentemente, na abertura de novas possibilidades para a população sertaneja paraibana. Os capítulos seguintes do livro, portanto, discutiam essa mudança, com “O homem do Norte”, e finalmente, os seus efeitos: “A redenção”, “O problema das distâncias”, “O porto”, “O saneamento”, “A ação dispersa”, “Consequências sociais”, “Consequências econômicas” e “Impressão geral”.

A representação política nortista na cena pública do país não seria, portanto, uma mera disputa de interesses entre as elites regionais. Estava inscrita nela a sobrevivência de uma parcela enorme da população brasileira, suas possibilidades de desenvolvimento econômico e, nessa esteira, seu pertencimento ao Estado nacional. Epitácio Pessoa, ao defender uma agenda de investimentos que tivesse como objetivo melhorar as condições de subsistência e produção econômica, dinamizar a economia e modernizar os meios de comunicação e transporte no sertão nortista, também estava reequilibrando os investimentos do país e revisitando o pacto federativo que fundara a República. Isso equivalia a elevar uma questão até então entendida como local à dimensão de problema nacional. Em um país ainda tão carente do sentimento de brasilidade, explicava o autor, era preciso que os políticos e os cidadãos pusessem os interesses da nação à frente das particularidades estaduais.

A Paraíba e seus problemas foi publicado pela Imprensa Oficial no ano de 1923 e foi bem recebido nos circuitos intelectuais, principalmente nos estados mais próximos – Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte – o que não era de se estranhar, considerada a defesa que o livro então construía. O cônego Florentino Barbosa deu destaque a ele em um artigo sobre escritores paraibanos na revista ABC (9 ago. 1924, p. 13). Gilberto Freyre e Odilon Kestor fizeram longos comentários para o Diário de Pernambuco (15 mai. 1924, p. 2; 20 mar. 1924, p. 5). Notas extensas saíram nos periódicos paraibanos – A União, O Norte e Era Nova. Mas seu impacto decisivo se deu, de fato, em prazo mais longo. O livro teve três edições no tempo de vida do autor – 1923, 1937 e 1980 – e foi usado por políticos e intelectuais nos mais variados momentos para defender uma política mais incisiva de investimentos no Norte – depois entendido como Nordeste – e mais especificamente na Paraíba (Burity, 2021).

A narrativa hegemônica que conduziu as comemorações do Centenário da Independência na Paraíba alinhava-se à estrutura fundamental da tese sociológica apresentada por José Américo: a afirmação da importância da presença de Epitácio Pessoa como presidente da República, uma imagem da singularidade da população paraibana na história nacional e das possibilidades que sua gente oferecia no futuro que ora se abria para a nação. As diferenças ficavam a cargo da maneira como essa argumentação fora construída – no primeiro caso, a partir de um repertório disperso e plural de referências; no segundo, por meio de uma pesquisa empírica, com observação e crítica documental e, nessa esteira, com resultados mais assertivos e menos idealizados. Mas também, e esse talvez seja o ponto mais relevante, devido ao modo como os enredos se inscreviam no tempo. As comemorações tiveram um poder enorme de mobilização, mas com efeito efêmero, ao passo que o livro conformava uma narrativa, a princípio de menor impacto, mas que teria vida longa na cena cultural do estado e do país.

Considerações finais

A ocasião dos cem anos da emancipação política brasileira colocou na agenda dos intelectuais e políticos o desafio de revisitar a história nacional e, assim, realinhar suas perspectivas de futuro com os propósitos do novo regime. Cada grupo se arvorou a percebê-la a partir de seus próprios pontos de vista – leituras, valores, circunstâncias, interesses. Os paraibanos se valeram da ocasião de terem um conterrâneo na Presidência da República para compor as suas narrativas. Epitácio Pessoa despontava, dessa maneira, como um dos heróis da nação e, por consequência, as obras contra as secas se mostravam como um grande feito, que reajustava as direções da nação.

Decerto as festas na Paraíba não foram as maiores do país, como se almejava. Longe disso, o orçamento – nesse quesito – atrapalhou bastante. Mas houve um esforço efetivo para que os festejos atendessem de maneira satisfatória à grandiosidade da data e fizessem jus ao representante máximo da nação e chefe do partido situacionista local, que tinha esse estado como lugar de origem. Dessa forma, se a historiografia a respeito da Primeira República tem razão ao afirmar que a baixa representatividade da bancada paraibana dirimiu o poder de barganha do presidente no Congresso Nacional, também devemos considerar que os seus aliados lutaram para se mostrar mais presentes. Para isso, negociaram postos e arquitetaram novas narrativas para a nação na cena pública.

Entender de que maneira isso pode ter se expressado nos jornais e revistas da capital federal e dos outros estados da federação é tema para outra pesquisa, e que depende de como esse jogo de forças estava organizado, mas um repertório já estava constituído e foi usado pelos intelectuais e políticos paraibanos sempre que possível, como pudemos ver na maneira como as comemorações tomaram acento em seu próprio território. As narrativas do passado, afinal, também são espaços para disputas de poder. As obras contra as secas, nesse ínterim, deram um sentido mais pragmático e imediato a essas releituras, na medida em que a afirmação da importância desse programa de modernização e desenvolvimento econômico era também uma forma de barganhar a permanência dessa política para além do tempo do mandato, que então terminava, do presidente Epitácio Pessoa.

Entre as comemorações que tomaram as ruas da cidade e os veículos de imprensa no mês de setembro e o livro A Paraíba e seus problemas, de José Américo de Almeida, encomendado pelo presidente do estado Solon de Lucena, havia uma sintonia de objetivo, mas uma diferença nas ordens do tempo. As festividades impactaram uma ampla parcela da sociedade, mas tinham vida efêmera. A tese sociológica, por sua vez, demorou mais para se fazer sentir na sociedade, mas teve uma duração longa. Ao ancorar a segunda na ambiência das primeiras, portanto, era como se esse enredo recobrasse novo fôlego. Essa luta pela afirmação da narrativa dos intelectuais e políticos paraibanos para a história nacional, portanto, não se encerrava no ano do centenário – ela teria vida longa, muito longa.

Fontes

Hemeroteca Digital. Fundação Biblioteca Nacional

ABC, 9 de agosto de 1924

Diário de Pernambuco, 20 de março e 15 de maio de 1922

Era Nova, 7 de setembro de 1922

O Norte, 30 de agosto a 12 de setembro de 1922

Referências

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Recebido em 20/2/2022

Aprovado em 24/5/2022


Notas

1    O jornal A União, na ocasião, foi o periódico que fez a mais ampla cobertura dos festejos, mas no momento em que produzo essa pesquisa, os números de 1922 se encontram indisponíveis para consulta nos arquivos físicos ou digitais que pude visitar – o arquivo do jornal A União; Arquivo Público do Estado da Paraíba Waldemar Bispo Duarte; Fundação Casa de José Américo; Instituto Histórico e Geográfico Paraibano. As informações que trago a respeito desses volumes em específico advém de forma indireta, por meio de outros pesquisadores que consultaram essa documentação no passado (Morais, 2007; Ribeiro, 2017).

2    Conforme verbete “Epitácio Pessoa”, de autoria de Sônia Dias, no Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro (Abreu, 2010).

3    É interessante pensar o paralelo desses discursos com as narrativas sobre a nação construídas pelos institutos históricos e geográficos de Pernambuco – que se inscrevia como berço da nacionalidade, devido à importância econômica da capitania em tempos de colônia e à Batalha de Guararapes – e de São Paulo – que conferia à bravura dos bandeirantes a colonização dos sertões e, em tempos de República, se entendia como a locomotiva da nação (Schwarcz, 1993).

4    O número de 1º de novembro de 1922 indica que sairia no dia quinze a edição comemorativa da revista Era Nova.

5    Solange Rocha (2009) defende que a publicação do livro A Paraíba e seus problemas, de José Américo, foi crucial na consolidação de uma cultura histórica conforme a qual haveria pouca expressividade na presença da população negra na Paraíba, em particular entre as pessoas sertanejas. Concordo com a observação da autora, sobretudo se ponderarmos os demais momentos em que esse livro apareceu na cena pública, a publicação da segunda edição em 1937 e da terceira em 1980, quando leitores de outras gerações tiveram acesso ao texto e novas interpretações a seu respeito se espalharam na opinião pública.



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