Acervo, Rio de Janeiro, v. 35, n. 1, jan./abr. 2022

Perspectivas em humanidades digitais | Dossiê temático

A aderência de sistemas informatizados de gestão arquivística ao e-ARQ Brasil

Verificação de requisitos mínimos e obrigatórios

Measuring compliance with e-ARQ Brasil model: verification of minimum and mandatory requirements on record management softwares / La conformidad de los sistemas de gestión de archivos computarizados al e-ARQ Brasil: verificación de requisitos mínimos y obligatorios

Ívina Flores Melo

Doutora em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília (UnB). Tecnologista em Ciência e Tecnologia no Ministério da Saúde, Brasil.

ivinaflores@gmail.com

Charlley dos Santos Luz

Mestre em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil.

charlleyluz@gmail.com

Resumo

Este artigo tem como objetivo colaborar fornecendo subsídios para que as instituições possam escolher, instalar e implantar um sistema informatizado de gestão arquivística (Sigad), livre e gratuito. Foi feita análise da aderência de oito Sigads ao e-ARQ Brasil, por meio de pesquisa qualitativa e descritiva, com base em pesquisa bibliográfica e documental, seguida de verificação de aplicabilidade dos requisitos do e-ARQ nos oito Sigads selecionados.

Palavras-chaves: Sigad; e-ARQ; requisitos.

ABSTRACT

This article aims to provide some arguments to choose, to install and to implement a Sigad (record management software), free, and analyzes the compliance with e-ARQ Brasil model. It is a qualitative and descriptive research-based literature, followed by the applicability verification of the e-ARQ requirements on eight selected Sigads.

Keywords: record management software; e-ARQ; requirements.

Resumen

Este artículo puede colaborar en el sentido de otorgar subsidios para que las instituciones elijan, instalen e implementen uno Sigad, libre y gratuito, y tiene como objetivo analizar la adherencia de ocho sistemas de gestión de archivos computarizados a e-ARQ Brasil. Se trata de una investigación cualitativa y descriptiva cuyos análisis se realizaron a partir de una investigación bibliográfica y documental, seguida de la verificación de la aplicabilidad de los requisitos del e-ARQ en ocho Sigad seleccionados.

Palabras clave: sistemas de gestión documentales; e-ARQ; requisitos

Apontamentos iniciais

A confiança na informação fixada independentemente do suporte é uma das finalidades da arquivologia, a qual traz em sua gênese manuais que padronizam os saberes e fazeres no tocante à organização e à solução para as massas documentais acumuladas. No movimento da “manualização” da disciplina, em 1922, Hilary Jenkinson publica o Manual of archive administration. Em sua base teórica e conceitual, esse manual nos apresenta, dentre outras, as definições de imparcialidade, de autenticidade e de custódia sob o pilar da organicidade.

Por imparcialidade, Jenkinson (1965) defende que os documentos dizem ser o que se propuseram a registrar, e sua função é potencialmente ser valor como prova inequívoca do passado. A imparcialidade se sustenta, segundo o autor, por meio da custódia que tem como pressuposto a forma pela qual os documentos são sucessivamente passados e preservados de sucessor a sucessor. A responsabilidade dos produtores e seus legítimos sucessores centra-se na preservação dos documentos, garantindo assim que os arquivos não sofram corrupções/alterações ao longo do tempo. A garantia da inalterabilidade ou não corrupção, então, é resguardada pela autenticidade que se denomina pela característica na qual o documento deve ser íntegro e livre de adulteração.

A conjunção das três definições jenkinsonianas embasa pesquisas e manuais científicos posteriores. Para aqueles países colonizados pelo Reino Unido, local de atuação de Jenkinson (1965), o manual tornou-se o precursor da fundamentação teórica das práticas arquivísticas. Em alguns desses países, a prática jenkinsoniana tornou-se desconfortável e pouco próxima da realidade dos arquivos locais, como declara Schellenberg (1974) sobre a realidade presente nos Estados Unidos. Essas dissonâncias estimulam o pensar arquivístico e a formulação de novos métodos, teorias e técnicas (Melo, 2021).

Na década de 1990, no Canadá, Luciana Duranti (1996), no movimento de ressignificação de teorias clássicas como a de Jenkinson (1965), redefine a diplomática clássica, objeto de trabalho da autora quando da sua atuação profissional na Itália (Melo, 2021). Ela faz uma aproximação entre os ditames jenkinsonianos, os documentos arquivísticos digitais e as questões relacionadas à preservação dos documentos em longos prazos, apresentando, assim, a gênese de uma área de conhecimento dentro da arquivologia: a diplomática digital. Segundo Duranti (1996), a diplomática digital utiliza os entendimentos de Jenkinson (1965) e os aprimora a partir do entendimento de que os conjuntos de documentos, em sua gênese, são imparciais e autênticos, uma vez que possuem, no centro de sua acumulação, a relação dos produtores, que são os custodiadores e preservadores dos registros documentais (Melo, 2021).

Somando-se à imparcialidade e à autenticidade jenkinsonianas, Duranti (1996) preconiza que os documentos de arquivo possuem, além disso, as características de inter-relacionamento, unicidade, organicidade. A esses atributos, adicionam-se a fixidez, o conteúdo estável e a variabilidade limitada de formatos, fomentando assim os archival bonds (vínculos arquivísticos) entre os documentos arquivísticos digitais e seus contextos, vistos nos meios tecnológicos como metadados.

Em 1994, Duranti (1996) inicia o projeto International Research on Permanent Authentic Records in Electronic Systems (InterPARES). Esse projeto objetiva pesquisar a preservação digital em longo prazo, para garantir a confiabilidade e a autenticidade dos documentos de arquivo. Em sua segunda edição, iniciada em 2002, o InterPARES 2, ainda sob a liderança de Duranti, pressupõe o atendimento da imparcialidade e da custódia, tendo como objetivo a manutenção da autenticidade em uma cadeia de custódia ininterrupta (CoC) (Melo, 2021). A CoC considera a custódia dos documentos, ou seja, a passagem de sucessor para sucessor, desde sua captura, passando pela destinação até a preservação (Luz; Flores, 2018). A cadeia se dinamiza em instâncias de passagem dos documentos fomentando a sua sucessão, garantindo sua autenticidade, a primeira sendo a instância de produção (ambiente de gestão), escopo deste artigo; a segunda, a instância de preservação (ambiente de preservação); e a terceira, a instância de acesso (ambiente de disseminação).

O ambiente de gestão define-se pelo local onde os documentos são capturados, seja por digitalização, seja por produção nato-digital. Esse ambiente se ocupa de operacionalizar a gestão de documentos, cuja principal finalidade abrange a produção, tramitação, avaliação, uso, arquivamento e destinação, propiciando acessibilidade, confiabilidade e autenticidade, de maneira que possam apoiar as responsabilidades, funções, atividades e tarefas organizacionais. São aplicadas as primeiras intervenções arquivísticas desde a produção, seja diretamente no sistema, seja por captura de um documento eletrônico, até a destinação final (Luz; Flores, 2018).

No Brasil, o ambiente de gestão foi objeto da Resolução Conarq (Conselho Nacional de Arquivos) n. 25, de 25 de abril de 2007, que dispõe sobre a adoção do Modelo de Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos, denominado e-ARQ Brasil (Conselho Nacional de Arquivos, 2011). Segundo a resolução, o ambiente de gestão é representado, tecnologicamente, por um Sigad que conta com apoio da informatização nos processos de gestão arquivística de documentos. Quando implementado, o Sigad deve ser monitorado, e seus resultados, avaliados pela Comissão Permanente de Avaliação de Documentos Arquivísticos (CPAD).

A referida resolução está organizada em duas partes, sendo a primeira de cunho teórico e metodológico, em que são descritos os requisitos estruturais da gestão de documentos. A segunda parte consiste de listas de requisitos das funcionalidades de um Sigad. O documento traz um conjunto de procedimentos e operações técnicas característicos do sistema de gestão arquivística de documentos, processado eletronicamente e aplicável em ambientes digitais ou híbridos, isto é, compostos de documentos digitais e não digitais (Conselho Nacional de Arquivos, 2011).

Ainda segundo a resolução, é idealizada a existência de um Sigad para realizar a gestão e posterior preservação documental em um repositório para documentos digitais, com o objetivo de “assegurar a preservação, o acesso e a autenticidade de longo prazo dos materiais digitais” (Conselho Nacional de Arquivos, 2011, p. 8). Entendemos que o planejamento e a implantação desses sistemas são complexos, demandam a participação de diversos setores institucionais e, em muitos casos, têm custo elevado.

Nesse ponto, cabe destacar que a implementação de um Sigad, em ambiente de gestão, atendendo a cadeia de custódia, também acrescenta desafios para as instituições públicas e privadas que ainda trabalham arduamente para instituir uma cultura mínima de gestão de documentos. Pensar e planejar ambientes de gestão com tamanho nível de complexidade e de funcionalidades ainda é aspecto distante diante da realidade dos arquivos públicos e privados brasileiros. Uma realidade marcada por massas documentais acumuladas, falta de instrumentos de gestão de documentos, falta de políticas e programa de gestão de documentos que, por sua vez, estão recomendados na parte 1 do e-ARQ Brasil como requisitos para se implementar o modelo.

Metodologia

Algumas pesquisas e iniciativas foram efetuadas na temática, para fins de discussão deste artigo. Destacamos o Observatório de Documentos Digitais1 liderado pelo professor Daniel Flores, cuja finalidade é analisar o cenário nacional quanto à criação, à gestão, ao acesso e à preservação de documentos arquivísticos públicos digitais. O observatório monitora as ações desenvolvidas no contexto digital e visa acompanhar a evolução do cenário e estimular práticas adequadas à gestão, à preservação e ao acesso aos documentos. O observatório ainda aponta oito Sigads, livres e gratuitos, possíveis de serem implantados nas instituições como soluções aos ambientes de gestão. São eles (Quadro 1):

Quadro 1 – Sigads analisados

Sistema

Descrição

Versão analisada

Local de acesso/ Download

Nuxeo DM

ECM (Enterprise Content Management) – software de código aberto projetado para ser escalável e extensível, desenvolvido pelo grupo Hyland

10.3 (a)

https://www.nuxeo.com

Knowlegde Tree®

Software de gerenciamento de documentos de código aberto desenvolvido pela Jam Warehouse

Professional Trial Version

http://orion.knowledgetree.com/Main_Page

Agorum Core

Sistema de gerenciamento de conteúdo corporativo gratuito e de código aberto da Agorum Software da Alemanha

8.3.0

https://www.agorum.com

Alfresco

Plataforma de código aberto. Tem em seu escopo gerenciamento de documentos, arquivos, colaboração e também conteúdos web. Desenvolvido pela Alfresco Software, Inc.

6.0

https://www.alfresco.com

Archivista Box

Sistema de gerenciamento de documentos de código aberto desenvolvido pela Archivista GmbH

DMS & ERP

http://archivista.ch/cms/en/home/

Maarch

Solução de ECM de código aberto desenvolvida pela empresa francesa Maarch SAS

Maarch RM 2.5

https://maarch.com

Owl Intranet

Repositório de documentos multiusuário (base de conhecimento), gerenciador de documentos e/ou sistema de gerenciamento de documentos (DMS)

Owl Intranet Knowledgebase

https://sourceforge.net/projects/owl/

Archivist Toolkit™

Sistema de gerenciamento de dados de arquivamento de código aberto a fornecer suporte amplo e integrado para o gerenciamento de arquivos. Desenvolvido a partir de um projeto colaborativo entre as bibliotecas das universidades da Califórnia, Nova Iorque, Five College e Fundação Andrew W. Mello

2.0

http://archiviststoolkit.org

Fonte: elaboração própria.

Os Sigads destacados estão também pontuados no Manual do archivematica, publicado pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) em 20162 e pelo grupo de pesquisa CNPq-UFSM Ged/A3 liderado pelo professor Daniel Flores. Nesse contexto, questionamos: os oito sistemas são aderentes (compliance) ao e-ARQ Brasil? Eles poderiam representar uma solução para a lacuna da realidade dos arquivos, a cadeia de custódia e a resolução Conarq n. 25?

A partir dessas breves considerações históricas e teóricas apresentadas até aqui, o objetivo é analisar a aderência dos oito sistemas informatizados de gestão arquivística ao e-ARQ Brasil. Entendemos que este artigo pode colaborar no sentido de fornecer subsídios para que as instituições possam escolher, instalar e implantar um desses Sigads, livres e gratuitos. Trata-se de pesquisa qualitativa e descritiva, cujas análises foram realizadas com base em pesquisa bibliográfica e documental seguidas de verificação de aplicabilidade dos requisitos do e-ARQ nos Sigads selecionados.

Com vistas ao objetivo geral, os oito sistemas foram instalados e/ou acessados em modo default4 com a finalidade de verificar suas funcionalidades de maneira a identificar os requisitos do e-ARQ Brasil e a aderência deles ao modelo e-ARQ. A versão do e-ARQ utilizada foi a versão 1.1, de 2011. A observação dos Sigads foi feita pela última versão deles disponível entre 2018 e 2019. Para a análise, partiu-se das operações descritas para um Sigad, que segundo o Conarq (2011) são:

Essas seis operações foram organizadas pelo Conarq (2011) em dez grandes grupos de requisitos, nos quais foram classificados no campo obrigatoriedade por: O – obrigatório; AD – altamente desejável; F – facultativo. Neste artigo, foram analisados apenas os requisitos obrigatórios,5 não considerando, no universo de pesquisa, os altamente desejáveis e os facultativos. Em um segundo momento, aplicou-se o critério de separação dos requisitos mínimos e obrigatórios.

Os requisitos mínimos e obrigatórios, segundo Holanda (2019), são aqueles critérios mínimos para garantir a produção, manutenção e preservação de documentos arquivísticos autênticos, confiáveis, precisos e acessíveis. Acresce-se à Holanda (2019) o entendimento de que os requisitos mínimos são aqueles centrais e fundamentais para o funcionamento das seis operações propostas pelo e-ARQ Brasil. Sendo assim, aplicando-se esses critérios, selecionaram-se os quarenta requisitos mínimos e obrigatórios a seguir (Quadro 2):

Quadro 2 – Requisitos mínimos e obrigatórios selecionados com base em Holanda (2019)

Aspectos de funcionalidade

Requisitos mínimos e obrigatórios

1 Organização dos documentos arquivísticos: plano de classificação e manutenção dos documentos

1.1 Configuração e administração do plano de classificação no Sigad

1.2 Classificação e metadados das unidades de arquivamento

1.3 Gerenciamento dos dossiês/processos

1.4 Requisitos adicionais para o gerenciamento de processos

1.5 Volumes: abertura, encerramento e metadados

1.6 Gerenciamento de documentos e processos/dossiês arquivísticos convencionais e híbridos

2 Tramitação e fluxo de trabalho

2.1 Controle do fluxo de trabalho

2.2 Controle de versões e do status do documento

3 Captura

3.1 Procedimentos gerais

3.2 Captura em lote

3.3 Captura de mensagens de correio eletrônico

3.4 Captura de documentos convencionais ou híbridos

3.5 Formato de arquivo e estrutura dos documentos a serem capturados

3.6 Estrutura dos procedimentos de gestão

4 Avaliação e destinação

4.1 Configuração da tabela de temporalidade e destinação de documentos

4.2 Aplicação da tabela de temporalidade e destinação de documentos

4.3 Exportação de documentos

4.4 Eliminação

4.5 Avaliação e destinação de documentos arquivísticos convencionais e híbridos

5 Pesquisa, localização e apresentação dos documentos

5.1 Aspectos gerais

5.2 Pesquisa e localização

5.3 Apresentação: visualização, impressão, emissão de som

6 Segurança

6.1 Cópias de segurança

6.2 Controle de acesso

6.3 Classificação da informação quanto ao grau de sigilo e restrição de acesso à informação sensível

6.4 Trilhas de auditoria

6.5 Assinaturas digitais

6.6 Criptografia

6.7 Marcas d’água digitais

6.8 Acompanhamento de transferência

6.9 Autoproteção

6.10 Alterar, apagar e truncar documentos arquivísticos digitais

7 Armazenamento (itens de infra de TI)

7.1 Durabilidade

7.2 Capacidade

7.3 Efetividade de armazenamento

8 Preservação

8.1 Aspectos físicos

8.2 Aspectos lógicos

8.3 Aspectos gerais

9 Funções administrativas

10 Usabilidade

Fonte: elaboração própria a partir do Conarq (2011).

O processo de análise dos quarenta requisitos mínimos e obrigatórios, que ocorreu entre junho e agosto de 2019, observou os sistemas em uma visão definitiva que contemplasse a implantação do Sigad, ou seja, sob o prisma de uma instituição que gostaria de instalar e utilizar o sistema. Cabe novamente destacar que essa é uma referência generalista e recortada, pois os requisitos do e-ARQ Brasil são mais abrangentes (233) que os analisados (quarenta).

Análise de aderência aos requisitos mínimos e obrigatórios

A análise concentrou-se em verificar a existência dos requisitos mínimos e obrigatórios em funcionamento categorizando-os por cores (vermelho, amarelo e verde):

Os requisitos foram analisados nos sistemas; caso não fosse facilmente identificado por meio de navegação ou utilização, era verificada sua disponibilidade em documentação de suporte ou documentação técnica. Como resultado da análise dos requisitos mínimos e obrigatórios, temos os seguintes resultados por Sigad analisado no Quadro 3:

Quadro 3Aderência dos Sigads aos requisitos mínimos e obrigatórios

Fonte: elaboração própria.

Ao compilar as informações apresentadas no Quadro 3, temos a visão do status quantitativo de cada sistema, por categorias, conforme Quadro 4:

Quadro 4 Classificação (cores) dos Sigads

Nuxeo DM

Knowledge Tree

Agorum Core

Alfresco

Archivista Box

Maarch

Owl Intranet

Archivist Toolkit

Com adequação (laranja)

14

0

12

11

11

12

11

11

Não atende (desenvolvimento)

10

40

11

12

15

12

17

13

Atende nativamente

16

0

17

17

14

15

12

16

Fonte: elaboração própria.

Por meio da análise dos dados acima, que resultaram do estudo dos requisitos obrigatórios, conseguimos fazer inferência por cenários. Do ponto de vista de requisitos nativos (cenário 1), o Agorum Core e o Alfresco são os dois sistemas que possuem maior quantidade de requisitos atendidos. Se observamos sob a perspectiva de requisitos nativos e aqueles passíveis de adequação (cenário 2), o Nuxeo DM e o Agorum Core são os sistemas com maior aderência ao modelo.

Se pensarmos em eliminar sistemas com possíveis altos custos para adequação (cenário 3), o Knowledge Tree e o Owl Intranet seriam aqueles com maior número de requisitos a serem desenvolvidos e, portanto, aqueles descartados para implantação. Para este artigo, consideramos a soma dos requisitos de adequação (laranja) e os nativos (verde) (cenário escolhido). Os sistemas com maior aderência a essas duas categorias foram o Agorum Core, Alfresco e Nuxeo DM.

Para além dos requisitos tecnológicos e arquivísticos, é necessário ponderar sobre outros requisitos de negócio que têm impacto na definição de tecnologia em longo prazo e que incorporam questões de desenvolvimento, ou seja, menor custo para implantar. Um primeiro requisito de negócio a se destacar é em relação ao suporte. E nesse caso, não só ao suporte de implantação, mas também em relação à manutenção e evolução do Sigad, visto que os requisitos em laranja demandam produção e podem ser melhorados ao longo do tempo em direção à pós-implantação, objetivando um MVP (Minimum Viable Product/Produto Mínimo Viável).

Dos Sigads do cenário escolhido, o único que oferece suporte no Brasil é o Alfresco. Por ser um software implantado mundialmente e em empresas com presença mundial, o Sigad possui representantes no país. Além disso, por ter código aberto, há possibilidade de se contratarem empresas especialistas na linguagem de programação com mínimo esforço de curva de aprendizagem e com apoio da empresa (por meio do Alfresco Developer Support Services). O Agorum Core e o Nuxeo DM não possuem suporte no Brasil, sendo oferecidos por suas respectivas fábricas de software. O suporte de todos os três sistemas não é gratuito, muito embora se encontrem comunidades de discussão e documentação no GitHub.

No que diz respeito à língua apresentada na interface dos Sigads destacados, o Agorum Core possui como língua nativa e principal o alemão, e como segunda opção, a língua inglesa. O Nuxeo DM possui versões em inglês, francês, holandês, italiano, espanhol e alemão. Seria necessário, para ambos, desenvolver uma interface complementar para o usuário em língua portuguesa para facilitar sua utilização. O Alfresco já possui o pacote em língua portuguesa (às vezes com termos do português de Portugal) desde 2011, facilitando a utilização disseminada do sistema no Brasil.

Outro requisito de negócio é em relação à nuvem (cloud computing). O Alfresco disponibiliza o serviço para contratação em nuvem diretamente com suporte. Caso seja necessária a utilização de nuvem privada já contratada, o Alfresco disponibiliza uma API (Application Programming Interface) específica para interoperar o software como o serviço de nuvem. O Archivist Toolkit funciona com servidor local, seria necessário desenvolver aplicação específica para comunicação com servidor em nuvem. O Agorum Core oferece serviço em nuvem, mas todos os serviços são originados na Alemanha. O Nuxeo DM possui a possibilidade de utilização de servidores de arquivo com armazenamento em nuvem quando da instalação e vinculação do armazenamento do sistema.

Considerações finais

De Jenkinson (1965) para Schellenberg (1974) até Duranti (1996), a trajetória da autenticidade sustenta-se pela forma de produção do documento, registrado nos diversos tipos de suportes. A autenticidade é amparada, em sua gênese, pela organicidade, a qual garante aos documentos de arquivo a confiabilidade e a integridade. Os documentos, nesse contexto, são passados de sucessor a sucessor no decurso do tempo. Na atualidade, essa sucessão é representada pela cadeia de custódia (CoC), a qual se divide em três partes de execução (Melo, 2021). Luz e Flores (2018) reiteram que a CoC é um conceito, compartilhado entre áreas como a jurídica e a arquivística, que trata daqueles que exercem a guarda e aplicam princípios de gestão e segurança em determinado bem ou patrimônio acumulado, isto é, é a “responsabilidade jurídica de guarda e proteção de arquivos e condiciona a relação de custódia com a responsabilidade normativo-jurídica”.

Na CoC, a primeira etapa é o ambiente de gestão que se operacionaliza nos sistemas informatizados de gestão arquivística de documentos (Sigad), objeto da análise deste artigo. O Sigad possui um papel importante no processo de gestão arquivística e preparação para a preservação digital. Esta última incorpora as funcionalidades necessárias para acolher os sistemas, dados, informações e documentos criados no âmbito de ação e atividades das instituições. No Brasil, no âmbito da atuação do Arquivo Nacional e do Conarq, o Sigad é modelado pela resolução Conarq n. 25, de 27 de abril de 2007, a qual dispõe sobre a adoção do Modelo de Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos (e-ARQ Brasil) pelos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Arquivos (Sinar). Esse modelo apresenta requisitos para a implantação de um sistema que contemple as etapas da gestão de documentos preconizadas pela lei n. 8.159, de 1991.

Destaca-se que as instituições públicas e privadas deparam-se com dificuldade na implantação do modelo do e-ARQ, tendo em vista os altos custos de desenvolvimento de sistemas, preços elevados de ponto de função, dificuldades de comunicação e de trabalho cooperativo com a tecnologia da informação e constantes mudanças nos cenários tecnológicos. Além disso, essas instituições, em geral, ainda trabalham na instalação de uma cultura mínima de gestão de documentos e implementação de procedimentos e instrumentos de gestão básicos. Não obstante, nos últimos anos, algumas normas e práticas, tais como a digitalização e o decreto n. 10.278, de 18 de março de 2020, foram publicadas e realizadas, levando a gestão de documentos a novos rumos e a novas formas de se operacionalizar.

Vale considerar que não há no Brasil nenhum sistema que atenda completamente aos requisitos exigidos pelo e-ARQ Brasil. Ademais, a pesquisa de Jasmim (2016) demonstra que, em geral, a aderência comum é algo em torno de 50 a 60%. Ressalta-se, também, que não há um manual, no Brasil, de indicadores que verse sobre níveis de maturidade e/ou de aderência de sistemas ao e-ARQ. Observa-se a necessidade de pesquisas em arquivometria que deem conta da proposição não apenas de indicadores quantitativos (número de requisitos atendidos), mas de indicadores qualitativos que meçam a qualidade do documento produzido, a qualidade da guarda e do armazenamento, dentre outras características que endossam a autenticidade e a organicidade.

Cabe pontuar também que o próprio Arquivo Nacional (AN), instituição que preside o Conarq e o Sinar (Sistema Nacional de Arquivos), não possui e não utiliza um Sigad próprio. Até a elaboração deste artigo, usava o Sistema Eletrônico de Informações (SEI), sistema de processo eletrônico indicado aos órgãos do Poder Executivo federal desenvolvido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF-4). Nota-se que o AN tampouco possui o serviço de homologação ou certificação de softwares e demais plataformas e ferramentas da CoC, tais como repositórios confiáveis e plataformas de acesso e difusão. Esses serviços de certificação/acreditação não estão expressamente previstos em suas atribuições regimentais, bem como nas normas de criação do AN, o que denota que a instituição arquivística brasileira ainda deve galgar esse espaço, por ora ocupado por outras instituições. O Conarq, nesse contexto, em seu papel de instância colegiada do Sinar, indica os requisitos necessários (e-ARQ Brasil) para a confiança em sistemas e softwares, cabendo à instituição escolher a opção que mais esteja adequada a sua realidade e recursos. Essas constatações talvez justifiquem o fato de sistemas que poderiam ser considerados Sigads estarem sob responsabilidade de suas instituições de origem e não comporem uma estratégia ou política nacional. Sabe-se também que eles foram desenvolvidos à margem da colaboração do AN.

Ainda que em um cenário incipiente, durante os levantamentos dos requisitos e análises dos Sigads, pesquisamos cases brasileiros em instituições públicas de maneira a entender, ainda que en passant, como estava a situação da implantação de Sigad. Em Santa Maria (RS), a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) utiliza o SIE, que é um sistema integrado que abrange várias áreas, e cada área contempla diversos módulos. Possui um sistema de workflow (fluxo de trabalho) associado à gestão de documentos, o que possibilita a automação dos processos de trabalho na instituição. O Siga-doc (Sistema Integrado de Gestão Documental), desenvolvido pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), é uma solução gratuita e licenciada como software livre, e tem como escopo a produção e tramitação de processos digitais. O e-Doc (Sistema de Gestão Eletrônica de Documentos), desenvolvido pela Dataprev, se propõe a substituir a tramitação de papel e processos físicos. Em 2020, anunciou-se a colaboração técnica do AN no desenvolvimento do Super.BR (Sistema Único de Processo Eletrônico em Rede), o qual incorpora os preceitos da gestão de documentos e, consequentemente, os requisitos do e-ARQ em seu escopo.

A partir da aplicação da metodologia proposta, a seleção de quarenta requisitos mínimos e obrigatórios e verificação da aplicabilidade dos Sigads, observa-se que, em sua maioria, os sistemas necessitam de evolução de maneira a contemplarem o e-ARQ Brasil em sua totalidade. Como entendimento final, a partir da verificação da aplicabilidade das funcionalidades, pode-se considerar que o Alfresco se apresenta como uma solução de mercado mais acessível de ser internalizada pelas instituições. Entre um de seus benefícios, o sistema é o que atende parte dos requisitos já em versão default, o que geraria menor esforço de configuração.

Declarar um sistema Sigad não é uma tarefa muito clara, tampouco simplista, uma vez que sabemos que não dispomos de parâmetros normatizados (indicadores) que nos conduzam ao entendimento de que um sistema pode ser considerado, declarado e certificado como um Sigad. Entendemos que a verificação da aplicabilidade e aderência de e aos requisitos são apenas parte dos aspectos e das variáveis a serem verificadas. Há diversos outros requisitos que devem ser considerados, tais como arquitetura dos sistemas, metodologia de desenvolvimento, volumetria, questões relacionadas à viabilidade técnica e econômica de desenvolvimento, dentre outros. O impasse de altos custos para o completo desenvolvimento de todos os requisitos é uma questão presente, nos levando a apreender que dificilmente um Sigad será integralmente aderente ao e-ARQ. Sendo assim, é importante e, sobretudo, necessário que os requisitos sejam revisados e adaptados às realidades e às necessidades de cada instituição, tendo-se a clareza de que um Sigad não deve ser linear, tampouco estanque, pelo contrário, ele deve evoluir de maneira a atender a complexidade do ambiente de gestão, o tornando interativo, promovendo autenticidade e confiabilidade e, principalmente, acessibilidade.

Referências

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HOLANDA, Alex Pereira. Recomendações para elaboração de política de preservação digital. Série: Recomendações para gestão de documentos nos órgãos e entidades do Poder Executivo federal. Arquivo Nacional, 2019.

JASMIN, Marcos de Castro. A gestão arquivística de documentos digitais da Marinha do Brasil: um estudo de caso – produto técnico-científico. Dissertação (Mestrado Profissional em Gestão de Documentos e Arquivos) – Programa de Pós-Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2016.

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MELO, Ívina Flores. As funções arquivísticas à luz do princípio da proveniência: um habitus em construção. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Universidade de Brasília, 2021.

SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1974.

Recebido em 28/7/2021

Aprovado em 21/10/2021


Notas

1     Os resultados das análises do observatório estão disponíveis em https://observatoriodedocumentosdigitais.wordpress.com/apresentacao.

2     O manual está disponível em https://livroaberto.ibict.br/bitstream/123456789/1063/4/Manual-Archivematica.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.

3     Grupo de pesquisa vinculado ao curso de graduação e ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense. O grupo dissemina seus resultados no http://documentosarquivisticosdigitais.blogspot.com/. Acessso em: 28 jul. 2021.

4     O sistema foi instalado tal qual se apresenta. Não foram feitas customizações ou modificações em seu código fonte.

5     Ao todo, são 233 requisitos obrigatórios.



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